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Ensaios-->OS ESCRITORES E A NATUREZA -- 11/07/2003 - 15:25 (Daniel Cristal) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
[Este ensaio rondava já as mil leituras ou visitantes, mas foi apagado para ser melhorado. Voltamos a editá-lo]

os ESCRITORES e a NATUREZA


ensaio de Armando de Figueiredo

1. Portugal poético
Portugal é um País pródigo em poetas, uns melhores, outros piores, e a
quantidade é tão grande que às vezes há dificuldade na sua escolha, e também em
classificá-los e catalogá-los. Quer dizer que algumas vezes classificamo-los por
gostos pessoais, sem grande objectividade, se é que na Arte pode haver
objectividade. Há, sim, certos parâmetros, regras, técnicas, escolha de recursos
artísticos de época e da moda, teorias de ponta que se conjugam com os avanços
científicos e as alterações no quotidiano dos cidadãos. São os leitores que nos
apontam as preferências, e estas são indicadoras da Arte que se aprecia, quando
a crítica e os lobbies de marketing ideológico (o oficial e o 'outro') não
manipulam, ao contrário do que acontece com alguma sorrateira ou simulada
insistência. Não quero dizer qual é o 'outro', porque toda a gente sabe, basta
ver quem são e em que se apoiam os 'não-oficiais', isto é, qual é o grupo que os
suporta para conquistarem a notoriedade...Quanto aos oficiais, eles são
apoiados pelos grupos que alcançam o poder político. Há efctivamente vendilhões
na terra sagrada que é o templo da independência, da integridade e da
individualidade. E não há só vendilhões, há também bajuladores, chicos espertos,
patos bravos, carapaus de corrida, arrivistas, videirinhos, povoando o espaço,
ainda que num tempo de muito curta duração. Daqui a dez anos ninguém mais os
reconhece... e em vinte anos, desaparecem das Artes e das Letras.
São muitos os poetas. Possivelmente, as condições territoriais e climatéricas
favorecem esta raça bastante híbrida, e põe-na a contemplar o mar e as serras
como se fossem paraísos. Paraísos onde o homem contemplativo se compraz em
admirar todo o envolvimento natural e o torna um panteísta, dizendo-se cristão
enquanto ser religioso, mas, na realidade, quando e enquanto escritor, leva-o a
procurar Deus nas coisas, as enormes e as ínfimas, que fazem parte da Natureza,
a terra e o mar, as planícies e as montanhas, a flora e a fauna, os homens e os
seus sentimentos relacionados com a humanidade e o Universo, identificar-se com
tudo isto, integrar-se na harmonia que nos transcende, pulsar com a Vida total.
É este Portugal o “jardim à beira-mar plantado”, conhecedor desta feliz
expressão de Tomás Ribeiro, a qual não mais deixámos de repeti-la, porventura
um verso do nosso hino futuro, que um dia nos simbolizará, e provavelmente neste
termos e neste modo. Recortado pelos caudais dos rios Minho, Douro, Mondego,
Tejo e Guadiana ; erguido pelos contrafortes graníticos das cadeias de Montanhas
Ibéricas da Raia-Seca, Gerez, Estrela, Malcata e Adiça ; embelezado pelos
canteiros deslumbrantes de Abrantes, Aveiro, Beja, Braga, Castelo Branco,
Cascais, Coimbra, Estoril, Évora, Guarda, Lisboa, Marialva, Ovar, Porto,
Portalegre, Póvoa do Varzim, Santarém, Sintra, Viseu, Viana do Castelo, Vila
Real e Vilamoura ; mesclado de forte verde pelas elevações da Arrábida, Buçaco,
Caramulo, Gerez, Monchique, Montejunto, pelas estâncias da Curia, Monfortinho,
Pedras Salgadas, Vidago, Sintra, os vales do Tejo, e as escarpas do Douro;
seduzido na sua costa pelo canto da sereia que sibilina sem cessar apelando à
aventura, à descoberta e à expansão, no Oceano Atlântico ; vertendo o Sol a
jorros, o suor, a luta pela emancipação e pela dignidade colectiva, o grito de
aventura dum povo que deu “novos mundos ao mundo”, este País no cantinho mais
ocidental da Europa, cabeça dum grande Império perdido pela emancipação dos
povos colonizados, afirma-se como um dos mais individualizantes do planeta na
Cultura ( lembro o papel da missionarismo na aculturação dos indígenas das
colónias e dos povos com quem estabelecemos relações comerciais no Oriente) e
em especial nas áreas da Religião, da Poesia, da Cerâmica e da Escultura. Como
foi possível um País tão pequeno com tão fracos recursos gerar o terceiro
Império maior da Europa quinhentista e mantê-lo tanto tempo? Foi possível...
algo de muito íntimo e misterioso veio com a necessidade de emancipação nos
confrontos enigmáticos de S. Mamede, perto de Guimarães entre D. Afonso
Henriques e D. Teresa (sua mãe), que regia já o condado portucalense com
bastante autonomia, em 24 de Junho de 1128, e a batalha de Ourique em 1139, algo
que já vinha sendo congeminado desde o tempo dos tártaros, algo secreto que foi
introduzido e solidificado no cristianismo permeável, bem fortalecido pela
tenacidade de um judaísmo inabalavelmente persistente, um judaísmo enraizado com
a precisão da sobrevivência e onde não faltava o desejo de uma expansão
territorial estratégica. Portugal foi terra-fortaleza, refúgio e subterfúgio de
perseguições religiosas, foi ânsia de aumentar a extensão dos horizontes, não
tanto assim desconhecidos quanto a errada propalação da falta de conhecimentos
culturais e científicos pretendia fazer crer. Os descobridores portugueses
estavam à altura da sua missão, conheciam as rotas, sabiam o que os esperava,
tinham conhecimentos científicos e técnicos capazes de lhes suportar a aventura,
embora houvesse o medo de encontrar vicissitudes e contrariedades de difícil
torneamento. Essa alegoria do Admastor, é mesmo uma imagem poética cheia de
Arte, metafórica e simbólica.
Os meninos das Escolas até ficam estupefactos ao confrontarem-se com um
monstro daqueles, e começam a conjecturar que os portugueses não são homens
normais para vencer figuras tão anormais, são mas é deuses, ou extraterrestres
postos aqui por sua vontade. Haja professores que lhes ensine a distinguir o que
é a Poesia, mesmo que passem todos a ser poetas, no fundo, no fundo, todos os
portugueses são poetas, sem o dizer a ninguém, porque julgam que o Poeta é um
ser meio hermafrodita. Nem é homem nem mulher. É um ser repulsivo escorregadio
um tanto ou quanto peçonhento, com taras e psicoses de difícil - senão
impossível cura, com aqueles esquisitos homosexuais no meio e à mistura. Mas, no
fundo, no fundo, são mesmo são todos poetas. Uns melhores, outros piores,
evidentemente.
2. A Natureza e as origens culturais hebraicas
Qual é o valor da poesia na civilização judaica, na cultura hebraica,
incluída nas Escrituras que fazem parte da compilação chamada de Antigo
Testamento? O CÂNTICO DOS CÂNTICOS de Salomão é uma maravilha poética que
durante a hegemonia cultural judaica só era permitido ler-se quando as criaturas
humanas ultrapassavam os trinta anos de idade, de contrário o mancebo que o
fizesse poderia ser pervertido pelas suas imagens fortes e sensuais,
ofuscando-lhe o discernimento moral, e acicatando-lhe qualquer paixão
embrionária, pronta a explodir. A alegoria existe com sentido simbólico
diferente do habitual : divino / humano, como se houvesse uma separação
contrária à imanência ; é exactamente o contrário : humano / divino ; não é de
origem celeste submetida ao transporte para o mundo bem real dos seres vivos
enquanto finalidade (como acontece em Gil Vicente) ; mas aqui é o seu reverso,
também contrariando a imanência : realidade animal / transcendência ; parte do
mundo real, palpável, odoroso, gustativo, auditivo, táctil, sensual e deve
transportar o receptor para o mundo do espírito, impesante, etéreo, volátil,
seráfico, insustentável, renunciando à paixão terrena imbuída de luxúria. Começa
também assim nesta circunstância o grande corte divisório com certas religiões
orientais que apregoam a integral satisfação do corpo para se atingir a
divindade, comungando e vivendo com esses objectivo e finalidade.
Desenho de Lima de Freitas

O CÂNTICO DOS CÂNTICOS é o transporte do espírito do mundo sensorial para o
transcendente, o imanente, o invisível : por intermédio da matéria, pelo gozo
dos sentidos, o espírito atinge o gozo excelso do reino da felicidade espiritual
: lembramos o paladar - o prazer do vinho, da maçã, da romã e da uva ; do
olfacto : a fragrância da mirra, da maçã, e de outras plantas aromáticas ; da
vista : a elegância das gazelas, veados, das palmeiras, dos lírios ; da audição
: a dança a dois coros ; do tacto : o poema inicia-se com o ósculo, o tacto e o
paladar do amor ; com o odor : o cheiro dos perfumes e o paladar do vinho
inebriante ; com a audição “Dizei-me, ó amada da minha alma...” , “Ressoe a tua
voz aos meus ouvidos ...”, com a visão : “As tuas faces têm a beleza da rola ; o
teu pescoço, a dos mais ricos colares”.
A imagem sugerida da sensualidade embriagante “O nosso leito é de flores”
com o vinho permanentemente associado “Ele introduziu-me na dispensa do vinho,
ordenou em mim o amor. Confortai-me com flores, fortalecei-me com frutos porque
desfaleço de amor. A sua mão esquerda está debaixo da minha cabeça, e a sua
direita abraça-me”, “Comei, amigos, e bebei , e embriagai-vos caríssimos”.
(A morte de amor atravessa a poesia medieval - vede a poesia
galaico-portuguesa.)
A comparação e a metáfora percorrem o poema “Levanta-te, apressa-te, amiga
minha, pomba minha”.
A ambiência é tão fortemente gradual no delírio dos sentidos que chega a
parecer obscena, se lhe retirássemos a carga de inspiração divina : “ o teu
umbigo é uma taça feita ao torno, que nunca está desprovida de licores. O teu
ventre é como um monte de trigo cercado de lírios”.
“O amor é forte como a morte” é a última comparação no final do poema, no auge
do discurso poético. Eros / tanatus, a tanatofilia, vida / morte, o amor sendo
vida no seu clímax, a morte no seu apogeu.
A mulher perde os seios, no epílogo, marmoriza-se em torre e volatiliza-se
nos montes de aromas.
3. A Natureza e as origens culturais galaico-portuguesas
Percorrendo os séculos, o modo como a Natureza é interpretada tem variado
como a própria mentalidade do homem. Endeusada, mitificada, copiada, humanizada,
consubstanciada, transformada, transfigurada, recortada, alterada, robotizada,
virtualizada, ela tem sofrido os mais diversos tratamentos na Arte, de acordo
com a sensibilidade do Homem equacionado nos seus tempo e lugar. As civilizações
e as épocas têm - na tratado conforme as ideias, ou sejam, as filosofias que as
enformam. Cibele na Arte romana é a deusa que personifica as forças naturais,
filha do Céu, deusa da terra e dos animais, esposa de Saturno e mãe de Júpiter
(assimilado do Zeus grego).
O Cristianismo, ao unificar as divindades num só Deus, ofuscou - lhe os
atributos. A Natureza é então alvo de algum esquecimento porque a perfeição
estava unificada na figura de Deus, ele era o único objecto de adoração, toda a
idolatração era motivo de repulsa e de pecado, só os santos tinham lugar no
púlpito, só a eles era possível venerar, numa escala abaixo de Deus, sendo Este
o símbolo de todas as perfeições excelsas, qualidades, atributos superiores, e
que encontra a forma humana na sua corporização em Jesus Cristo.
No fim da época medieval, no recanto mais ocidental da Península Ibérica, os
artistas evocam - na na recolha das poesias, de então, compiladas no CANCIONEIRO
DA AJUDA ; ouçamos esta de Ayras Nunes Santiago referindo o convite à dança
pelas três apaixonadas formosas sob as avelaneiras floridas:
Bailemos nós já todas tres, ay amigas,
so aquestas avelaneyras frolidas
e quem for velida, como nós, velidas,
se amigo amar,
so aquestas avelaneyras frolidas
verrá baylar .

O lirismo galaico-português traz-nos o sabor do mar nas desventuras de
sentimentos nostálgicos de amor, são as ondas que aprisionam as paixões e
atemorizam as amantes. Que o repita Joel Meendinho, envolvendo, nesta barcarola,
a amada à espera do amigo, cercada pelas águas, naufragando de amores,
enfatizados pela ansiedade e o medo da morte que o mar há-de consumar:
Sedia-m’eu na ermida de Sã Simhõ
e cercaram-m’ as ondas que grandes son !
eu atendend’ o meu amigo,
eu atendend’ o meu amigo!
ou Martin Codax nesta:
Ondas do mar de Vigo
se vistes meu amigo!
e ay, Deus, se verra cedo!
Esta tradição da referência ao mar deixou marcas em toda a nossa Literatura,
mas também de outro modo não poderia deixar de acontecer, dado que é visceral a
sedução pelas nossas raízes ou origens e nelas apraz-nos espelhar a nossa alma
de povo com uma extensa costa de mais ou menos 1.000 quilómetros.
É a Natureza personificada, a confidente da amada, que anseia pelo regresso
do amigo, que nos revela a cantiga anterior, assim como a seguinte.
Quem não se recorda desta cantiga de amigo do rei D. Dinis:
Ay, flores, ay flores, do verde pino
se sabedes novas de meu amigo!
Ay, Deus e u é?
Porque é que a amiga, amante, interroga a Natureza, as flores dos verdes
pinheiros, definhando de amores, e quer saber onde está o seu amado e não
recorre ela a outro interlocutor, como, por exemplo, outro seu humano?
4. O início das nossas autonomias literária e cultural
Bernardim Ribeiro encontra nela a catarse para o seu sofrimento recorrendo à
paisagem do rio Mondego. É na sua água que confluem as suas mágoas. E o rouxinol
tomba de dor, caído dos salgueiros, como se a morte acabasse com o sofrimento e
lhe desse a terapia adequada. CRISFAL é a humanização da Natureza. A Natureza é
também o homem; as éclogas do renascimento nascem para a tornar ainda mais bela
; sem esta temática esta estrutura poética não teria vida. No Renascimento
dando-lhe continuidade por uma prerrogativa de ordem académica europeia que
pretendia fazer renascer mitos, lendas e estórias da cultura medieval, ela
continua a ser fortemente prenhe em toda a poesia de Almeida Garrett; ela,
associada à presença da mulher amada, com barcas belas a enredar a rede em
sereias de cariz bem humano, mas se ela é um objecto para o escritor, nos
românticos ela é tratada como sujeito. O parnasiano Cesário Verte é atraído por
ela , sendo esta agora um objecto passivo, lugar onde os factos ocorrem, em
piqueniques feitos nas campinas, ou em observações na cidade de ruas com
candeeiros de cor melancólica, ou ainda no tratamento preciso e artístico dos
metais transformados.
Gil Vicente destaca a beleza da vida campestre na TRAGICOMÉDIA PASTORIL DA SERRA
DA ESTRELA : um lugar sossegado, rodeado de vinhedos e de vastas searas
verdejantes, uma fonte de água cristalina; o cântico dos pastores. Os
componentes da Natureza aproximam-se nesta época da filosofia da aurea
mediocritas poetizada por Homero, e que foi desenterrada da mens sana in corpore
sano, expressão do poeta satírico latino Juvenal para traduzir um ideal clássico
grego, que nunca deixou de ser retomado na cultura ocidental, às vezes com um
sentido transviado no que se refere à interpretação fiel da mensagem original.
Efectivamente, o uso das palavras distorcem muitas vezes a sua verdade primitiva
e os contextos alteram a lucidez das mensagens mais genuínas.
A lírica camoniana vai buscar grande fonte de inspiração aos renascentistas
italianos, e estes, por seu turno, já o tinham feito recorrendo à cultura grega;
com efeito, esta cultura espelha todo o fascínio pela Natureza , especialmente
pela humana, e assim sendo, vejam como esta fica estupefacta, e vivificada,
perante a passagem da namorada:
As fontes cristalinas não corriam,
de inflamadas na vista linda e pura;
florescia a verdura
que, andando, nos divinos pés tocava;
É a mulher que altera a normalidade e linearidade da Natureza e não é esta
que modifica o comportamento humano, ao contrário do que acontece posteriormente
no Romantismo. Lembro que o Homem do Período Clássico era o centro do Universo,
a Natureza um seu sucedâneo, e esta flosofia remete-nos para a cultura grega que
foi renascida na época. Esta viragem de Deus como centro do mundo na Idade
Média, na qual a Inquisição e o obscurantismo reinante fizeram muitos estragos à
evolução da Humanidade, para o Homem como seu centro - tese defendida na época
renascentista ou clássica deve-se ao florescimento do pensamento inovador de
Descartes, nascido em 1596, que aniquilou a escolástica, sugerindo que o Homem
como ser pensante que é, ao menos uma vez na vida tente fazer tábua rasa de
todas as opiniões que recebeu, procurando reconstruir novos sistemas de
conhecimento dando primazia à intuição e à dedução. O saber de experiência
feito, que é uma máxima da época renascentista, lá está inserida na obra mais
marcante da época OS LUSÍADAS, sendo a glória deste Portugal cujos feitos se
perpetuam.
São todos estes povos mediterrâneos e o periférico, que é o nosso, o exemplo
da infinita admiração pelo mar e pelo campo, o mar como atormentador e
pacificador, a natureza como mãe hospitaleira e aconchegadora. Fernando Pessoa
faz a síntese de todas as sínteses e exclama: ó mar salgado, quanto do teu
sal / são lágrimas de Portugal ! De Portugal e de algumas, poucas, outras
Nações, mas sobretudo de Portugal que fez uma aposta num desafio de vida ou de
morte, e correu riscos como imperativo histórico e de sobrevivência individual e
extensiva, na aparência paradoxalmente colectiva, independente, numa Península
aguerrida cheia de cordilheiras agressivas e inóspitas, e planícies a perder de
vista, que não lhe dava mais espaço, e já este foi arrancado a ferros e sangue
de guerreiros de enorme valor.
5. Um marco literário essencial na cultura portuguesa: Luís de Camões
As odes de Camões não existiriam sem a sensibilidade contemplativa e a
necessidade de embelezamento pela e perante a Natureza. Na redondilha:
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura
vai fermosa e não segura
faz-se um belíssimo retrato de Leonor patenteando-o frente aos elementos da
Natureza que permanece estática e levemente aflorada para dar lugar destacado ao
corpo formoso da mulher.
A natureza comove-se ante a mulher amada. Na humanização da natureza esta tem
um comportamento humano:
Os seus ramos se abaixavam,
tendo inveja das ervas que pisavam
In, Manda-me Amor que cante
docemente
é o homocentrismo típico dos renascentistas. A natureza é estilizada e
identifica-se com o Homem que não pretende descrevê-la no sentido denotativo do
signo, mas apenas a humaniza.
Noutra perspectiva e em tempos revolucionários do Orfeu, Alberto Ca-eiro,
heterónimo de Fernando Pessoa, consubstancializa - a tanto que se sente pastor
entre pastores. Os seus poemas são o que de mais estranho, impressionante,
inovador, e admirável se redige nessa época de 1915 a 1927, chamada o manicómio
do ORPHEU, revista basilar na mudança da Poesia nacional, à semelhança do que se
passava na Europa.
Para dar mais vida aos elementos da Natureza, Camões mistura-lhes n’OS
LUSÍADAS os deuses que intercedem e outras vezes alteram os destinos da armada
portuguesa ou propiciam noutras ocasiões o desenlace feliz . Os deuses não são
mais do que a vivificação da parte irracional da Natureza e com ela se
identificam, porque fazem e desfazem o curso normal dos acontecimentos, quando
se esperava que o decorrer dos feitos da viagem não tivesse grandes obstáculos,
mas esta aventura no desconhecido, muito embora não totalmente cega, pois havia
uma Escola que nos fazia aprender e saber que outras terras existiam além da
conhecida, indícios de terras distantes a contrariar os medos irracionais dos
abismos da morte e dos monstros, era também um risco calculado a que os capitães
das naus não eram alheios. Além disso já dsipunham de meios técnicos avançados
para se lançar à aventura e à descoberta. Ainda aqui não é a Natureza a
modificar o espírito do homem, é sim um mundo aparte criado simbolicamente na
figura dum círculo mítico intercepcionista que vem interceder ou implicar com os
destinos humanos e virtualizar encontros e contactos de simpatia e de esporádica
mas muito significativa orgia, quando estas emoções luxuriantes não eram
consentidas nem possíveis nas relações de suma paixão humana.
6. O nosso Romantismo é europeu
São os românticos todavia os que mais exaltam a Natureza. Enquanto os
renascentistas a admiram e colocam o Homem dentro desta , esta que o servia e
adornava (ela intermediava-o numa dependência, ora de confidência, ora como
objecto dos desejos artísticos de embelezamento) , os românticos extasiam-se
ante a sua magnificência; ela é o espelho do divino, é um grande argumento para
a defesa de Deus, pois leva o homem à crença; e a majestade do Universo e os
prodígios da Natureza reflectem-se nas obras românticas. Mas os elementos nela
rebuscados : a solidão como fundo, a sombra como lugar, a melancolia como Sol
poente, a tristeza das noites de luar à volta dos ciprestes, a indolência feita
tranquilidade, a dor sendo a impossibilidade de amar e escutar alegremente a
música dos campanários, os amores impossíveis e as paixões avassaladoras de
destruir corações, sofrimentos morais infindáveis, todos estes elementos vão
conduzir o romântico ao estado de doença psíquica chamada “mal do século”,
baptizado com o signo spleen, que em alguns casos remetia para a evasão e morte
ou suicídio dos artistas inadaptados. Charles Baudelaire queria, neste estado de
enfado, evadir-se para os países longínquos, ilhas de sonho, paraísos terrestres
primitivos, onde o homem se sentisse feliz. A sua vida dissoluta, imoderada, de
dandy comum propenso à exibição, foi a via encontrada para o suicídio lento,
quase programado, que tem expressão em muitos outros artistas, mesmo
contemporâneos, não resignados com a condição de homens mortais, incapazes de
aguardar pela deterioração da matéria corporal e do sofrimento moral que provoca
a perda de qualidades e capacidades psicossomáticas.
O Romantismo mais lusitano está patente na obra de Alexandre Herculano pela
temática escolhida nas estórias medievais, buscadas nas tradições populares,
assim como nos romances de Camilo Castelo Branco que traduz como ninguém
costumes e tradições da sua época com personagens planas, comparáveis às de
Shakespeare no meio de um coro de tragédias dignas de ambos os estilos, um que
brota do interior/temperamento camiliano arrebatado, que não é o mesmo do génio
artístico do clássico inglês, onde a poesia é o grande argumento, meio e fim
para maravilhar e encantar o receptor/auditor, assinalando-se, nesta limitada
viagem ensaística, apenas que nas suas produções se diferenciam os estatutos
aristocrático/burguês/popular, matéria que poderia e mereceria ser desenvolvida,
mas pode haver alguém que o faça, mas que não fazemos por não ser esse o âmbito
nem o objectivo desta temática escolhida. Almeida Garrett, todavia, não lhes
fica atrás (lembremo-nos das extraordinárias descrições que faz do vale de
Santarém e da temática mítica desenvolvida no FREI LUÍS DE SOUSA).
7. Outro marco literário português: Eça de Queirós
O que levou Eça de Queirós a escrever esse magnífico livro que é A CIDADE E
AS SERRAS, em que faz a apologia do amor à terra e à simplicidade das gentes
rústicas, em confronto com a civilização de consumo iniciada em Paris no início
do século XIX ? Já anteriormente Júlio Dinis lhe tinha dado o mote na MORGADINHA
DOS CANAVIAIS e nas PUPILAS DO SENHOR REITOR.
Não vou referir as temáticas bíblicas, de extraordinário sabor artístico
inseridas nos seus contos e nos tipos tratados com rara mestria n’ OS MAIAS ,
mas tão só à Arte da transfiguração imagística e explicá-la tanto quanto
possível sem demasiados floreios pela formação adquirida.
Eça de Queirós aprendera desde a infância a sopesar dois mundos: o da
dissimulação (ocultou-se quanto se pôde o seu nascimento marginal, esteve-lhe
vedada a companhia dos pais verdadeiros), e o da realidade ( havia que cultivar
as aparências dando-lhe o carácter de realidade, até que a criança dissesse o
rei vai nu, e toda a multidão repetisse de assombro e gargalhando de morte : o
rei vai nu). Isso leva-o também a aguçar a perspicácia em notar a falsidade sob
a aparência de verdade “para inglês ver”, e isso condu-lo a ser cauto e
defensivo, isto é, a dissimular a crueza da evidência, enroupá-la por isso com
modos estudados de a revelar.
É assim que nasce a aguçada intuição queirozeana de distinguir a aparência
da realidade, de as diferenciar com crua precisão. A expressão conhecidíssima “
sob o manto diáfano da fantasia“ exprime exactamente a lucidez da descoberta de
dois mundos antagónicos e que por ser tão evidentes ao expô-los à crua nudez,
servindo-se da palavra, que dá colorido, emoção, arrebatamento, leva
irremediavelmente ao ridículo, ao escárnio, à ironia, às situações e aos
contraditados conteúdos diferenciadores do ser/estar/agir. É assim que brota a
revelação da ironia como meio primordial de desenvolvimento da expressão
artística, no caso de Eça, que para ser reconhecida com mérito teve de ser
cultivada, trabalhada, como acontece com qualquer outro recurso de estilo. Com a
diferença, nele a antinomia gerou-se com a sua própria gestação; nada mais
violento e genuino para se ser titular da mestria. Acerca deste recurso Mário
Sacramento ocupou-se exaustiva e superiormente num ensaio premiado em Coimbra em
1945.
Para que haja ironia é preciso conhecer a natureza do signo linguístico (da
palavra, do verbo), da semiótica, das suas relações sintagmáticas e
paradigmáticas, da harmonia ou conflito provocados na intratextualidade.
Quando falamos de natureza exterior, a fauna, a flora, o solo e o subsolo, a
atmosfera, estamos também a utilizar uma outra natureza expressiva, a da
significância, e dela nos servimos para dar significado a outra que é explorada
no séc. XX, a natureza íntima/interior, reveladora dos estados
espirituais/mentais, subconscientes/inconscientes no mundo que faz parte da
intimidade do homem particular/colectivo.
Na reflexão sobre a sua mocidade em Coimbra, NOTAS CONTEMPORÂNEAS, Eça
exprime já a sua concepção do mundo real/falso, ou de
nudez/transparência/opacidade/ ocultismo, vejam a descrição de Elvira
ultra-romântica “vestida de cassa branca ao luar”.
A astuta candura, n’A CIDADE E AS SERRAS, a graça decrépita, n’O CRIME DO
PADRE AMARO são a tentativa de despir a falsidade e a aparência, e repor a
realidade à virtualidade, esta capaz de tornar realidade a fantasia. Eça navega
sempre neste mundo dual da criação literária, íntimo por conhecimento genuíno de
nascimento e formação, genial porque conhece o esplendor das suas luminosas
conotações. Assim, revela-nos sem custo excessivo contextos de situação e de
expressão onde a contradição é uma evidência radiosa a provocar reacções
emocionais de gozo, riso ou sorriso. Esta reacção do sorriso quando esses
contextos são tratados ou ditos com delicadeza e arte, o riso quando são
brutalmente expostos com a rudeza da rusticidade. Gozo, sobretudo, em suma.
A criação de personagens ridículas, se existência e actuação desenvolvem
como resultado final o antagonismo, o paradoxo originando a hipocrisia e a
mentira, mantem o seu expoente máximo nessa espécimen tão badalada nos dias de
ontem e de hoje, porque repetitiva na nossa política, a personagem nomeada
Conselheiro Acácio, que enriquece O PRIMO BASÍLIO, donde derivaram signos cheios
de significância, jamais atingidos na Literatura portuguesa, tais como
conselheiral, acaciano, pondo a descoberto um tipo de político trapaceiro dum
género habitual nas democracias parlamentares, um tipo psicológico-social gerado
pelo próprio regime oficial tradutor duma subcultura ocidental: o da respeitável
imbecilidade medíocre e solene meticulosidade emporcalhada, aprendida nas artes
do fingimento.
A ironia só deixaria de ser possível expressá-la num mundo linear onde o ser
fosse igual ao estar e agir. Melhor: quando pensar volvesse o indivíduo num agir
que lhe fosse fidedigno. Mas a consciência de que para que todos fossem iguais,
é preciso dar o que se tem a mais, não é uma reacção comportamental de aceitação
colectiva, e nem sequer é individual, salvo raras excepções que se apontam como
modelo social. Com efeito, e referindo-me a estas excepções, eles são os
laureados pela consciência colectiva ou talvez melhor ainda : por aqueles que a
querem aliviar ( mas, ao menos, valha-nos esta tentativa de fazer justiça, que
no fundo pouco muda na voracidade do tempo e das gerações sobrepostas).
A ironia, no entanto, como recurso elaborado de estilo cria um avanço nas
potencialidades da imagem literária, conduzindo-a à precisão do retrato
caricatural como forma de crítica artística. Alguns exemplos são referenciáveis
tais como a apresentação de revolucionários vivendo faustosamente, ou na
descrição, fazendo unicamente uso do signo linguístico, de ministros da
República cujos perfis superiores, servindo de modelo, eram bastantes as
condições de posse de voz sonora, encalacrados e asnos (ver capítulo VII de OS
MAIAS, além da descrição de situações tais como o poeta declamando
arrebatadamente apertando o atilho da ceroula ( cap. VIII).
Eça de Queirós não se confina unicamente no uso magistral da ironia, como
recurso estilístico, ele usa genialmente o adjectivo na transformação da imagem,
e também o advérbio; dá-lhes novas e inusitadas conotações, expande os signos e
sintagmas para outras dimensões imaginárias “ a sesta macia”, “o silêncio
luminoso”, a “larga serenidade”, o “ar subtil e aveludado”, aumentando assim o
volume da intratextualidade, e tornando o texto mais aprazível ao receptor.
A Literatura, a Arte literária, é um penoso processo profícuo, hábil e
lúdico, um manejo mental da sensibilidade e da mente colocando signos como peças
dum puzzle de infinitas possibilidades criativas; ser escritor é um exercício
suado, um empreendimento obstinado e espantoso, gratificante e alegre, saudável,
místico e mítico, às vezes arrebatador e empolgante, quantas vezes suspensivo e
aniquilante de criação de imagens significantes (com recurso ao morfema que se
manipula), imagens que se constróem pela junção de nomes e sintagmas expressivos
não só adequados como ainda inadequados, capazes de provocar percepções
múltiplas , conotativas, sinestésicas, onde o ser do esteta se revela e os seus
humores transparecem, ou a sua íntegra e profunda visão global do mundo se dá a
conhecer como por encanto, feitiço ou jogo teatral espectacular numa atmosfera
de plateia cheia de empatia.
O tratamento de translação sinonímica às vezes torna-se mecânico e
automático, superlativando o substantivo, mas com carácter de redundância e não
de carga significativa, ex.: “... o meu casto chapéu panamá...”, “ o papel
sisudo” , “longas barbas tenebrosas”, mas a finalidade da sua arte e a sua
grande luta pela inovação positiva encontra-se na concentração significativa ou
no atestamento completo de sentidos múltiplos ou ainda de saturação de
possibilidades conotativas na significação, como acontece em muitos exemplos
espelhados na sua obra.
A impropriedade, por excesso, da transformação da substância concreta de um
substantivo num atributo abstracto pela aplicação de um adjectivo inadequado,
evita o rodeio perifrástico e provoca um clima cómico pela ironia sugerida “ o
homem de barbas proféticas” (Maias), “das cadeiras da frente surgiu a face
ministerial do Gouvarinho” (Maias), e torna satisfatório ao espírito receptor
esse consórcio de substantivo adjectivado de forma incomum e inadequado com um
fundo metafórico. Acontece até que a junção do substantivo ao adjectivo
inadequado e antitético tem carácter sinestésico : “doloroso riso/ horrenda
delícia”.
Eça de Queirós teve a percepção sintética da sua arte pessoal, expressando no
início de A RELÍQUIA a frase basilar do seu próprio conceito: “Sobre a nudez
forte da Verdade - o manto diáfano da Fantasia”, traduzindo-o assim com clareza
e mostrando aos seus leitores a sua preocupação máxima da sua criação. Ele sabia
então que a arte literária era um trabalho peculiar sobre e sobretudo do
instrumento que servia para veicular ideias, tipos, movimentos, intenções,
críticas, em suma a vida do homem no sítio onde se interliga a outros lugares
(Portugal, a Ibéria, a Europa, o Médio Oriente), e no tempo que não recusa nem
desperdiça o futuro, ambos os ambientes que lhe couberam em sorte, e que pelo
seu lado ele aí teve de irromper, alastrar, reflectir, agarrar com as artes de
esteta inovador, que lhe estavam destinadas hipoteticamente.
Um bom crítico literário, Ernesto Guerra da Cal ocupou-se, quase até à
exaustão, em 1953/4 numa obra publicada pela Aster, da exegese do estilo e
linguagem de Eça. Dele diz : “ ... o tratamento figurativo da linguagem está
enraizado na própria base da personalidade íntima de Eça, e é manifestação de um
dos seus dualismos fundamentais (realidade - fantasia). Deparar-se-nos-á
constantemente como fenómeno psicológico-estilístico.” Sendo este crítico de
formação galega, distingue Eça como precursor da revolução linguística que
afectou o idioma castelhano e gerou-lhe pelo exemplo novos campos semânticos até
então quase desconhecidos.
8. O Tempo e o Modo modernos
O que levou Miguel Torga a escrever essa maravilha telúrica que é OS BICHOS e
a poesia que ela contém por se colorir toda ela de Natureza ? Aliás toda a
lírica torgueana é fortemente impregnada de imenso cariz telúrico que a
individualiza, e, de facto, ela é feita por um Artesão no sentido mais nobre da
palavra, porque burilador da mensagem original brotada de inspiração demiúrgica
até que o poema acabe por irradiar como um cristal. Vejam só este gomo duma das
suas poesias, ao sugerir a sua universalidade:
Soube a definição na minha infância
Mas o tempo apagou
As linhas que no mapa da memória
A mestra palmatória
Desenhou.
Hoje
Sei apenas gostar
Duma nesga de terra
Debruada de mar
.
A Natureza é a mãe de todas as coisas, é a união entre o macro e o
microcosmos. Por isso os astrólogos a têm como fonte de sabedoria e as ciências
esotéricas dão - lhe um relevo especial. Vimos, geramo-nos da e na Natureza,
desenvolvemo-nos nela, evoluímos até à forma e corpo mais perfeitos, nada do que
nela se encontra nos é alheio, ela nunca se separará do conjunto humano que nos
consubstancia ; transgredir as suas regras é vitimar o que há de humano no
Universo, o ente que nela se gerou para se servir dela e a dominar pela mente,
como se nela a perfeição fosse possível, contudo ainda não é. Dois milénios se
passaram e às vezes parece que está tudo igual ao princípio da mensagem cristã.
Que se tem de recomeçar tudo de novo. Só pela cultura global/izada poderemos
recomeçar a humanidade. O verdadeiro artista é em princípio um ser extremamente
sensível a tudo o que o rodeia, e a ela recorre para dar força e colorido ao
seu estilo, e transforma-a no acto da criação.
Os portugueses não são os únicos nesta admirável escolha temática, nem
pertence ao seu património cultural qualquer exclusividade, a não ser a força
marítima ocasional desenvolvida no poema heróico OS LUSÍADAS e na MENSAGEM.
Para não excluirmos a ideia de que somos europeus e pertencemos a uma
comunidade planetária, façamos uma breve incursão arbitrária e pessoalíssima
noutras literaturas:
Recordemos as NOCES de Albert Camus, obra na qual é descrita a natureza de
Alger como um lugar exemplar. Comparando Alger, a sua terra natal, a Paris,
Camus afirma: “ À Paris, on peut avoir la nostalgie d’espace et de battements
d’ailes. Ici, du moins, l’homme est comblé, et assuré de ses désirs, il peut
alors mesurer ses richesses.”
Refira-se, de memória, recuando um século, a poesia de Guillaume Apollinaire
:
Sous le pont Mirabeau coule la Seine / Et nos amours / Faut-il qu’il m’en
souvienne / La joie venait toujours après la peine,
Vienne la nuit sonne l’heure
Les jours s’en vont je demeure
para terminar na tristeza duma melancolia intensa
Passent les jours et passent les semaines
Ni temps passé
Ni les amours reviennent
Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Vienne la nuit sonne l’heure
Les jours s’en vont je demeure.
Focamos a nostalgia do amor, aliada às águas ligeiramente onduladas do rio
Sena, no seu contínuo curso esvaziante para o mar, ondas ligeiras, como porções
de vida, que vão e não voltam mais, a dor da ausência, e da perda, um tema amado
já antes pelo nosso Bernardim noutro cenário, um tanto ou quanto semelhante, não
só quanto aos seus elementos, como também e especialmente quanto aos aspectos
psicológico e emotivo.
Françoise Sagan estabelece uma ligação íntima entre o enamoramento e
Saint-Tropez, e é esta praia que propicia os estados de alma da protagonista.
Em L’ÉTRANGER, Albert Camus atribui o assassinato de um homem ao Sol abrasador
que incide brutal e avassaladoramente sobre o assassino. À natureza exterior
associa-se a interior que se tornam absurdas numa humanidade arracional. Como
pode um homem matar só porque o Sol lhe abrasou o coração e a alma, o transmutou
em assassínio frio de desfecho mortal, à queima roupa ? É o próprio assassino
que se interroga e não encontra explicação, e tudo isto a dar corpo a uma parte
incontrolável, temível, assustadora, que vive dentro da criatura humana e que a
torna tão irracional quanto qualquer outra força rude e bruta da Natureza
exterior. Os tiranos e os imperadores que geraram holocaustos pelo interior e no
decorrer de toda a História da humanidade, de vez em quando aparecidos como
salvadores e purificadores de raças, encontram a explicação desta força desumana
neste acto louco de assassínio, só porque o Sol ou qualquer outra força cega,
brutal, que naquela época ofuscava a sua limpidez de espírito, deixando-o
estupefacto para o resto da vida, assim como a todos os juizes, sendo todos nós,
simples cidadãos atentos que julgamos a História e o Homem, em qualquer momento,
depois dos factos acontecidos e temos tido dificuldade em nos defender
colectivamente por falta de estímulos sociais e humanos, uma vez que as
comunidades não estão racional e politicamente organizadas. As subculturas da
nossa civilização pouco evoluiram em relação ao obscurantismo medieval, há
muitos princípios que se mantêm intocados, e que atrasam a evolução da
Humanidade.
Verde que te quiero verde, diz Garcia Lorca, nesta Península por vezes
bárbara, clamando esforçadamente pela voz da humanidade e da tolerância. É a
sedução pelo regresso ao amor sempre renascido que passa de geração em geração
sem jamais perder o fio da nossa energia, grande obreira deste mundo que
cintila com uma luz de felicidade eterna, na junção com o amor da mais profunda
imanência, que é a Divindade, ela, que nos gerou até que o princípio e o fim de
tudo se anulem pela memória. No fundo não será a demanda do amor, a procura da
génese do amor, a Génesis ? Vejamos estes versos do chileno Pablo Neruda, da
colectânea CEM SONETOS DE AMOR:
.
Dois amantes felizes fazem um só pão,
uma só gota de lua sobre a erva,
deixam andando duas sombras que se juntam,
deixam um único sol vazio numa cama.
.
De todas as verdades escolheram o dia:
não se ataram com fios, mas com aroma,
e não despedaçaram a paz nem as palavras.
A alegria é uma torre transparente.
.
O ar, o vinho, vão com os dois amantes,
a noite dá-lhes as suas pétalas felizes,
têm direito aos cravos que apareçam.
.
Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.
Mais vale o amor, quanto mais não vale?, do que a ferocidade pelo prazer de
mandar. Quando foi anunciado o assassínio de Garcia Lorca, o general Franco
perguntou quem era este fulano ; é esta a prova de que os sanguinários não
conhecem os artistas, só conhecem a força das armas, são os maiores ignorantes
que o planeta acolhe e que não o merecem...
Viajemos até outras paragens, à América anglófona:
John Steinbeck recorre à Natureza e associa-a constantemente à vida do campo.
A vida nasce no e do campo, a erva brota, as searas que se semeiam são o lugar
de expectativa, factor de anseios, de medos e de esperanças, de alegrias e de
tristezas infinitas. O homem precisa de terra, só com ela sobrevive. Nela também
encontra o amor, o mais puro. Quando se lhe associa a mulher, a mulher é também
a terra-mãe.
9. Incursão continuada nas correntes artísticas modernas: o Simbolismo e o
Surrealismo
Os poetas, romancistas, contistas, pintores, escultores, todos eles artistas,
ora descrevem, pintam e esculpem, ora transformam a Natureza. Os compositores
musicais reconhecidos como geniais são os únicos artistas que sempre a
transformaram, e são, a meu ver, os mais perfeitos artistas, e sempre o foram,
porque trabalham com materiais abstractos, apenas com pequeníssimas e ténues
imitações de ritmos corporais e sons repetitivos dos elementos da Natureza. São
criadores, dão vida harmoniosa e melodiosa aos sons na percussão, no sopro, no
dedilhar, na conjugação sonora dos instrumentos e da voz. Qualquer cidadão seja
ele de que cor ideológica for, ou política, não pode deixar de gostar duma boa
partitura musical bem executada ou do canto. Imitar a Natureza e dar - lhe
beleza não é fácil, mas transformá - la por via artística é tarefa que implica
genialidade. Genialidade é também individualidade
Assim como o excesso aparece, após o Classicismo, na sua forma mais bastarda e
piegas no estado de gongorismo, o romantismo conhece mais tarde neste rincão, e
no seu termo, o exagero verborreico ultra-romântico de Soares de Passos. O
grande revolucionário da libertação dos cânones clássicos nas artes plásticas é
porventura Goya no início do séc. XIX, na nossa vizinha Espanha, pela
transformação da cor pictórica noutra mais forte e violenta.
É uma escola assumida de mudança: o simbolismo, começado em França, fins do
século passado, referenciado e exemplificado em Rimbaud, concretizado e
teorizado por Paul Verlaine
De la musique avant toute chose
Et pour cela préfère l’Impar
amestrava ele na poesia ART POÉTIQUE. Música que Rimbaud conseguiu como nenhum
outro na poesia. A escola simbolista aprofunda e faz evoluir a imagem
linguística, conotando-a e expandindo-a por várias interpretações na intra e na
intertextualidade da frase, do período, da composição, da obra pessoal e de
outras obras do mesmo e de outros artistas. Paul Verlaine deu o mote,
sintonizado na nossa Literatura por Camilo Pessanha, mote esse que se situa
nestes versos conhecidíssimos do poeta francês Rimbaud: Il pleut dans mon
coeur,/ comme il pleut dans la ville, versos magistrais que equacionam as
sonoridades e o ritmo de modo a criar no receptor/auditor uma imagem global de
percepção sensorial, aliada à conceptualização da tristeza e da monotonia: o
choro, a lágrima, a cadência da gota, a liquidez. Todos os poetas simbolistas
lhe seguiram o cânone de Verlaine.
Camilo Pessanha, à melodia fónica associa a impassibilidade nirvânica em
estado pleno de beatitude budista. O Oriente é absorvido pelo olhos do
ocidental. É o intercâmbio de culturas onde este poeta se move. A CLEPSIDRA,
sendo um relógio de água, simboliza a existência, os olhos que a vêem morrem com
a água : Meus olhos apagados, / vede a água cair... Caí e derramai-vos/ como a
água corrente.
Os simbolistas não têm como objectivo descrever as realidades
exteriores/interiores, mas sim sugerir estados de alma com uma significação
pluridimensional, detendo-se muitas vezes na emoção que arrebata, o mais
amplamente conotativa possível, recorrendo às imagens “sui-generis”, às palavras
inesperadas e aos símbolos ocultos que povoam esse sub/inconsciente
colectivo/individual.
É a abertura e o começo das novas escolas que hão-de florescer em Paris: o
Dadaísmo e seguidamente o Surrealismo, que confluem mais tarde e finalmente no
Existencialismo, extremada que foi a vertente do lado mais oculto e misterioso
do homem que é o seu inconsciente individual e também o colectivo.
O Simbolismo, na transição dos séculos XIX para o XX, veio instalar o sonho
no lugar onde existia a autoridade inflexível da filosofia positivista, a
intimidade psicológica em vez da soberania fisiológica, a vida mística e a
afectividade a preencher uma lacuna, não mais permitida, deixada pelo
Materialismo e pelo Naturalismo.
É o sonho regressando à Arte, é a indistinção que inspira como numa endosmose
o receptor e fá-lo aderir como por magia aos sentimentos que se expelem. No
lugar onde os parnasianos e os positivistas exigiam clareza e linearidade, uma
completa nitidez de conteúdos e uma cosmogonia de formas precisas, os
simbolistas desenvolveram áreas onde não há luz nem certezas nem precisão, são
lugares de sombra e de névoa indefinidas, é o mundo outro da intimidade mais
recôndita a revelar a força e a significação subjectivas do inconsciente, pronto
a cativar pelo deslumbramento da novidade demiúrgica. Já não é necessário
descrever ; os símbolos sugerem a mensagem de beleza e de verdade. Sendo assim,
é a atmosfera da sugestão que impera, a que Bergson não está alheio. As Artes
plásticas descem em relação à Literatura para um segundo plano, porque a Arte
simbolista guinda a música ao mais alto pedestal, trabalhando as Artes fonéticas
com especial atenção e cuidado, de modo a nelas encontrarem a sabedoria da
sedução para que a mensagem se possa eternizar. Trabalham os simbolistas a
harmonia do som e aperfeiçoamento do ritmo mais liberto da rigidez que se
impusera durante séculos. Será em especial o som melodioso, um dos alvos
preferidos, pois é este que retém o que de mais fugitivo e efémero existe na
realidade conhecida e também na oculta. Mallarmé vem a dar-lhe um eclectismo
espantoso revelado no trabalho formal das suas composições de modo a criar
emoções no receptor. É o começo da aparição da esfinge, o Médio-Oriente
primitivo a eclodir num progressivo regresso às origens, que o Surrealismo soube
captar, e expandiu, e dele nunca mais ficamos libertos.
A importância desta escola é enorme, porque é o começo da retratação da
Natureza pelo lado íntimo da criatura humana. Ela já não é exógena, mas sim
endógena. Ela é o que é o homem no seu tempo e lugar. Ela transforma-se
continuamente no fluir da própria e mais interior transformação de homem
descobrindo-se e afirmando-se sucessivamente no Cronos.
No início deste século, dá-se a revolução nas Artes com o aparecimento do
Cubismo e do Dadaísmo. A Natureza deixa definitivamente de ser confidente,
objecto imitado ou sujeito, como fora no Classicismo. Com efeito, nesta época, a
que chamam moderna, o escondido, obscuro e inconsciente manifestam-se no seu
todo numa única face em formas simplificadas. O Cubismo, iniciado por Cézanne,
gera alguns mestres reconhecidos como Picasso, Braque, Juan Gris, Fernand Léger
que dão a ideia de conjunto em todos os aspectos visíveis e invisíveis nas suas
obras. O Dadaísmo aparecido em 1916 pretende abolir a arte tradicional pela
irrisão com esta, pelo acaso e pela intuição. Promoveram-no Tristian Tzara, Paul
Eluard, Arp, Picabia, Max Ernst, André Breton, Aragon, e expandiu-se na sua
evolução para o Surrealismo que tem a sua expressão máxima em Salvador Dali,
como Arte pura, ou para a acção revolucionária, acção que a meu ver já não é
Arte, mas unicamente panfleto político, embora possa ser belo, mas considerado
uma Arte menor.
É este o movimento mais revolucionário na Europa, por ser um corte com a cultura
grega. Aproxima-se agora a Arte, porventura, das Civilizações do Egipto e da
Mesopotâmia. Deixa a Arte de ser imitação directa ou retrato artístico para ser
verdadeiramente transformação e se nos lembrarmos do Touro alado com cabeça
humana do palácio de Sargão II em Consabade, ou das esfinges egípcias não nos
repugna dizer que a Arte progrediu neste regresso às origens das primeiras
civilizações, o que é também uma forma de expansão inteligente no recurso a um
constante rejuvenescimento original.
Liga-nos à Natureza um cordão umbilical que nos faz sentir filhos dela e
pensar sermos as criaturas mais perfeitas da terra. A Bíblia diz que Deus criou
a terra e os mares, a flora e a fauna e depois o homem. Mas teria sido assim tão
programada diariamente (e em seis dias) a criação do mundo? Não será esta
asserção também uma parábola? Não terá o mundo depois da consubstancialização da
forma, da solidificação ou materialização dos gases, adquirido potencialidades
para que a evolução se tenha exercido da simples amiba à forma mais perfeita que
foi incarnada para os cristãos em Jesus Cristo?
Efectivamente, a Arte imita a criação do Mundo, e esta foi a maior Metáfora
até hoje conseguida, e à qual os Artistas genuínos são chamados a imitar e
glosar.
Se vimos todos das propriedades da terra, como não termos sempre presente a
nostalgia de que fomos e somos parte integrante do cosmos, por mais que sejamos
obrigados, por razões de subsistência, a afastar-nos da terra e vivermos em
grandes cidades de betão, onde o ser quase se desumaniza?
10. Outro marco literário: Fernando Pessoa
Fernando Pessoa já aqui foi aflorado por duas vezes neste ensaio sobre a
Natureza. É um poeta e escritor moderno, conseguindo compreender como nenhum
outro a essência do espírito luso, o seu percurso e a sua trajectória na
diáspora, que muito tem sido propagada na actualidade, e é nosso motivo de
orgulho. Aflorado foi na interpretação que deu ao alimento do ser português: o
mar. Sintetizar o ser português genuíno, que se reporta a um projecto de cidadão
anterior à sua aparição num reino independente, e realizado na missão de
desvendar as rotas da Índia e das Américas, suportando todo o drama do
colonizador que se lhe seguiu até ao aparecimento dum Portugal renovado que
começamos a viver hoje, uma espécie de Quinto Império, não dominador dos povos
pelas armas, mas ascendendo na espiritualidade aos domínios que são de fama e
glória culturais, é este o objectivo implícito do poema MAR PORTUGUÊS:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal !
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quanto filhos em vão rezaram !
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar !
Valeu a pena ? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem de passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Mensagem, Ed. Ática
Aflorado foi na sua comunhão com a Natureza. Não há nada de mais obscuro que
não seja claro na imanência, o excesso da linguagem também é um regresso à terra
muda que nos fala pelos sentidos:
Sou um guardador de rebanhos,
rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
...
Poemas de Alberto Caeiro
Por intermédio do heterónimo Alberto Caeiro, o poeta intelectualiza o
sentimento. Quer confundir-se com a Natureza, quer fundir-se com ela:
...
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira.
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
Op. Cit.
Mas a sua envergadura intelectual é muitíssimo mais vasta no seu conteúdo do
que a enumeração de três apreciações críticas, uma de cariz nacionalista, outras
de ordem estética. Ele foi mais longe. A sua filosofia abarcava um grande número
de saberes e a sua incursão no ocultismo e nas filosofias eclécticas abriram-lhe
horizontes para voos mais profundos, que quem não conhecer tem dificuldade em
desvendar. A sua Arte é-a, porque derivada de estudos aprofundados sobre o que
está por detrás dos sinais cósmicos, que só se conhecem se houver uma meditação
profunda sobre eles com a ajuda de teorias já desenvolvidas por homens que
quiseram conhecer toda a possível sabedoria do que nos é oculto, e não é
reconhecido com os sentidos desatentos ou embriagados pela rotina da existência
ou pela continuidade nas buscas do Santo Graal da mediocridade e do
exibicionismo verborreico. A profundidade e interrelação de todas as coisas
universais só é possível conhecer-se claramente depois de iniciados nas Ciências
esotéricas. Até lá parece que andamos todos distraídos e alienados, o que só é
bom para quem quer passar esta curta peregrinação na terra sem grande esforço
intelectual ao sabor das modas e das comodidades aparazíveis, ainda que
mediatizadas, sobretudo mediatizadas.
11. Vergílio Ferreira, outro marco literário importante
Um percurso literário que veio do neo-realismo do início do século, da luta
de classes, da preocupação pela condição social dos explorados e marginalizados,
dos desfavorecidos da sorte e dos fracos por herança da pobreza ou da miséria,
reflectida na Arte, dessa escola que se submetia aos cânones da objectividade e
do panfleto político, e que vai desaguar nos espaços infinitos da subjectividade
e da condição de homens mortais, sem um Deus protector e orientador de todas as
regras da Natureza ; uma subjectividade com a emoção em estado de implosão a
percorrer os enigmas do Universo para que ao romanesco se junte a filosofia, a
que não faltam autênticos rascunhos do ensaio inacabado.
A natureza do espanto, onde está ? O espanto dum eu que se vê ao espelho e se
revela violentamente como uma aparição, pronto a entrar em pânico explosivo na
recepção de cada morte anunciada ou denunciada, esta natureza também tem
necessidade de ser explorada, porque é uma “silenciosa imagem do arrepio dos
séculos”. Retemo-nos à APARIÇÃO.
O homem, segundo este esteta, está condenado ao “absurdo negro, o absurdo
córneo, a estúpida inverosimilhança da morte”. “Deus está morto, porque sim”. A
imortalidade seria assim uma criação contínua, enquanto o homem existir.
“Agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me projecto nesta
noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma distância infinita, me
reconheço não limitado por nada mas presente a mim próprio como se fosse o
próprio mundo que sou eu, agora nada entendo da minha contingência. Como pensar
que « eu poderia não existir » ?”.
Como um autêntico poeta, o romancista “subordina o real à imperiosa vontade
da linguagem que o transfigura”, diz Eduardo Lourenço. A conquista de um Homem
novo exige que a própria linguagem se renove. Não existe neste acto qualquer
paradoxo, o contrário é que seria paradoxal.
Questionando a existência da pessoa neste Universo, rebelando-se contra os
conceitos herdados, preconceitos seculares, o Homem só será inteiro, e isto não
quer dizer que seja feliz, se assumir a dimensão do seu ser destinado ao
silêncio num mundo em que Deus já não existe.
Falamos agora do existencialismo, a doutrina que põe o homem a descobrir-se
pela sua acção continuada, definindo-se pela prática que exerce individual e
originalmente no seu percurso existencial. Duma metafísica quase sugerida por
uma Génesis heterodoxa, cujo Criador morreu com a sua obra nos braços,
deixando-nos ao abandono, o homem é o que se cria e se escolhe nas alternativas
que se lhe colocam quotidianamente. Inspiram esta corrente filosófica-literária
Heideger e Kierkegard.
A idiossincrasia de que o homem é no seu percurso existencial influenciado
pelos agentes naturais e humanos que o envolvem, já tinha sido desenvolvida por
Jean-Jacques Rousseau (séc. XVIII), para quem a pessoa nasce boa, dita um bom
selvagem, mas que o mundo perverte. Mas esta idiossincrasia é pessimista, ao
considerar a evidência do fatalismo na ordem social, e por não pôr em relevo a
vontade pessoal de escolher as melhores opções, e não dar o valor devido ao
livre arbítrio, que permite que sejam feitas escolhas acertadas, nestas
destacando-se a diferenciação entre o bom e mau carácter. Na sua proposta à
humanidade ele faz encarar a crença num Deus pessoal edificando a cidade futura.
Rousseau está no entanto longe do ateísmo existencialista, apenas foi citado
pela descoberta dum percurso que se faz, duma tábua rasa que é bicho são
nascituro até ao ser psicológico e social evoluindo pela lei invencível por
excelência da Natureza.
Para os existencialistas, há o Homem solitário no Universo, cheio do seu eu,
enquanto existir, abandonado depois do acto criador, descobrindo o mundo como
uma criança ansiosa e curiosa, ressuscitando o cartesianismo mais integral, mas
há também um fascínio extraordinário nesta linguagem neocriada, duma
originalidade espantosa, porque nova, revolucionária em termos espirituais e que
convém ler e sobre ela meditar. Ao espanto de Vergílio Ferreira perante a
Natureza responde o nosso espanto pela sua originalidade modelar.
12. Um Nobel chamado Saramago
Com quatro madeiros se faz uma jangada, e assim também se faz um poema, dizia
por palavras mais ou menos semelhantes Rui Knopfli, poeta moçambicano, luso
porventura, com uma carga enorme de cultura anglo-saxónica, que lhe advinha de
leituras shakespeareanas. E com quatro protagonizáveis personagens saramágicas
se faz uma JANGADA DE PEDRA numa viagem de ficção pelo Atlântico, e se lhe
acrescentarmos mais uma far-se-á uma barca, desfraldada ao vento, com um cão, a
lembrar Tin-tim, que não é cão, separados uma península dum continente, vogando
ora a Sul, ora a Leste, ora a Norte, ora a Oriente, rodopiando e
transladando-se, até parar no momento em que se ajustam todas as contas, que são
uma vara de negrilho à espera de florescer, como um início e términos de todas
as coisas e de todas as ditas e não ditas estórias. Será que o destino é África
para a Europa redimir todos os pecados da escravatura que a manchou eticamente?
Mas em terra eles vão à sorte na miragem de qualquer moinho de vento para
esgrimir. Com tamanha calamidade as autoridades europeias ficam perplexas, como
se a peste tivesse aparecido numa Oran argelina, agora peninsular, ilha enorme
flutuante, e fosse necessário atacar a epidemia duma separação contra-natura.
Nem tantas personagens põem a mover um romance, como se prova pelos três
personagens insuflados de protagonismo do MEMORIAL DO CONVENTO. Aqui bastam um
maneta, uma vidente e um louco visionário jesuíta, que quer voar numa máquina
movida unicamente pelas vontades extraídas de duas centenas de pessoas.
Escrever estórias como quem conta romances, num mundo virtual seguindo as
pisadas de Thomas More, Júlio Verne, um pouco retomando as alegorias de Gil
Vicente, na existência de outro mundo de que este é uma sombra de projecções
como visionou Platão, ou Cristo e as suas parábolas bíblicas, comparando mesmo
artifícios que se assemelham a fábulas de La Fontaine, é um exercício lúdico de
Arte literária. Entremeando a fraseologia, transposta para a imagística, com
comentários sobre a Língua, sobre a História, sobre a ideologia
dominante/dominada, indo mais longe, até à conversão da linguagem popular, oral
(sugerindo adágios, anexins, provérbios, lengalengas) em linguagem literária,
todo este caldeamento guindou José Saramago ao posto que lhe coube em sorte, o
mais ambicionado pelos escritores contemporâneos. O popular pode ser erudito, e
o contrário também pode ser verdadeiro. Quando há perda de sentidos também se
pode enriquecer as imagens, elas cambiam, desviam-se numa enorme quantidade de
humores. Pode ser também este um elemento de distinção, uma diferenciação pelo
grau de genialidade. Exige naturalmente uma leitura pausada, medievalina, de
complicada deglutição, às vezes quiçá difícil, mas exigindo em especial o prazer
de leitura. A ironia que perpassa, de forma inesperada, quantas vezes
imprevisível, dá-nos conta das verdades do mundo que parecem caricaturas de uma
estranha forma de viver a realidade, apresentada assim crua, sucinta, comedida,
forma de rematar aquilo que mereceria outra forma de discurso, que não a
Narrativa... No ensaio por exemplo provar-se-ia pela dialéctica que os seres
estão empedernidos de preconceitos que não trazem futuro. A vara de negrilho
morta há-de florescer. A alma de Baltazar Sete-Sóis não voou para as estrelas,
pertencia a Blimunda Sete-Luas e na terra ficou, nela ficou, perto do convento
de Mafra. Os preconceitos, que são verdades empedernidas embrutecem, dominam
irracionalmente, e o desfrute mais parece um mundo a rejeitar em troca por outro
mais nosso, não etéreo, antes rejuvenescido, a acontecer.
Le texte de jouissance est absolument intransitif, diz Roland Bar-thes, in Le
Plaisir du texte. O texto nascido para agradar, não agrada, não traz nada de
novo. O texto feito uma finalidade não é arte, é manifesto. Querer que seja
lido, não arrebata o leitor. Cria repulsa.
É a perversão levada ao extremo que garante o gozo da leitura. Nesta
sequência endiabrada, é uma torrente de imagens, recortadas por rimas e
sugestões que alteram o discurso narrativo, sem o sepultar, com acusações
irónicas de defeitos, quando é necessário, quando se torna imprescindível
diríamos, sem a previsibilidade das coisas infalíveis, por isso imprevisíveis
também, a contrabalançar as virtudes. O mundo da ficção pode transformar-se
assim numa empolgante festa impenitente e intermitente. O medievalismo na
linguagem dá-lhe pitoresco em Lisboa e ainda no memorial do convento de Mafra,
une o que unia a Idade Média, ao que hoje as une na Contemporaneidade, ambas se
unindo no tempo diacrónico/dialógico; aproveitam-se os ritos que ainda
perduram... com uma continuação ininterrupta de mitos e rituais, de símbolos,
autorizados a permanecer pela expansão da cor e dos tecidos durante o
presente/futuro: “...aqui está um banco carmesim, é uma cor que usamos muito em
cerimónias de estilo e de estado, com o andar dos tempos vê-la-emos em sanefas
de teatro, e sobre o banco está um balde de prata cheio de água benta...” in
MEMORIAL DO CONVENTO.
Padre António Vieira sai reforçado, assim como Fernando Pessoa, como mestres
do estilo, quanto à pureza linguística no encadeamento frásico de José Saramago,
que neles afia o lápis e a caneta, mas separem-se como convém as ideias/ imagens
(espirituais/corporais) que se seguem neste exemplo, onde um platonismo
enraivecido/enlouquecido não passa despercebido: “... difícil é saber que parte
há em cada parte, se está perdendo ou ganhando a alma, quando Blimunda levanta
as saias e Baltazar deslaça as bragas, se está a vontade ganhando ou perdendo
quando ambos suspiram e gemem, se ficou o corpo vencedor ou vencido quando
Baltazar descansa em Blimunda e ela o descansa a ele, ambos se descansando.”
Ibidem.
Se a libertação do sub/inconsciente é já uma tradição com um século de
percurso, a busca do mundo virtual tem já por outra banda muitos séculos de uso,
e percorre não só a literatura europeia desde o início como também a nossa
paralela e próxima e influenciadora, com fortes e antigas tradições, diremos até
sem relutância alguma - milenares, sendo esta a civilização árabe/muçulmana, e
só por isso acrescentaremos que José Saramago está dentro da sua época e do seu
território.
A alegoria pode ser a natureza virtual e/ou robotizada. No caso da JANGADA DE
PEDRA ela é as duas coisas. No MEMORIAL DO CONVENTO o jesuíta é o tradutor das
duas ideias abstractas, delas se apropriando com a finalidade da sua possível
concretização no homem voador, o qual apesar de tantos esforços não acontece. As
vontades viriam mais tarde a concretizar-se pela transformação da matéria mas só
no século XX.
A Natureza é na sua obra neocriada/recriada, ela é renascida, idealizada num
intimismo explosivo. O instrumento língua é trabalhado com recurso à expressão
ora popular, ora erudita. O discurso ressurge actualizado, a gramática é
subvertida de tal modo que se torna escandalosa e coloca aos puristas muitas
reticências, desconhecendo se fará escola. E aqui nos suspendemos porque a
gramática portuguesa é tão rica que não necessita de tão extremas ousadias na
inovação, podendo esta seguir por outras vias, apesar de tudo, na busca de se
revolucionar, de se neocriar no processo artístico de se simplificar, o que quer
dizer economizar meios ou instrumentos, ao extremo e infinito necessários. Mas a
opção é de Saramago e tem de ser respeitada até que seja integralmente aceite.
13. Algumas conclusões
Há um trabalho a fazer, que seria desenvolver ensaisticamente as relações
ora tangenciais, ora intercepcionistas, ora sobrepostas, dos círculos
significantes, delimitando a natureza exterior/homem artista, com alguns
cambiantes entre a natureza exterior/ natureza íntima para mostrar como se
constróem fronteiras imagísticas no tempo, e também o modo como ora se alteram
ora se destroem, ora se reconstroem. Não é por acaso que se avança na
subjectividade, na individualidade, no eu rebelde a toda e qualquer
mundividência colectiva, ou colectivizada. José Régio poetizava “ não vou por aí
/ só vou por onde me levam os meus próprios passos...” . O ser humano questiona
agora a sua posição individual na relação homem/mundo, e questiona a cosmogonia
aprendida sem reflexão aprofundada, os esquemas mentais e sistemas psicológicos
com que nos temos regido e que actualmente tendem a ser varridos da memória
individual, e há desejo de renovação e inovação, hoje a evoluir a um ritmo
vertiginoso, fazendo tremer as filosofias e religiões perdurantes desde o início
da Humanidade.
O que leva o homem a procurar o mar, as termas, o campo, as montanhas e neles
conviver com uma alegria espontânea ? Será o regresso às origens ou simplesmente
o prazer de estar, quanto possível, a comungar com elas? E quando o mar se
encapela estaremos nós bem precavidos para que a nossa caravela não se afunde,
pedindo a intervenção dos deuses, não permitindo que fique mais uma lágrima no
mar a somar às que foram poetizadas por Fernando Pessoa, como preço da aventura
e da ambição. Não falo, não, daquela lágrima de preta cantada pelo admirável
António Gedeão ; esta tem o preço da opressão e da marginalidade ou da exclusão.
Falo talvez mais da Arte de Marear, ou da mão metafórica de marinheiro mágico de
Eugénio de Andrade:
Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco
e a minha mão marinheiro.
Ou então proferiremos como amantes da Natureza, da Beleza e da Perfeição (
esta entendida aqui como miragem ou sonho possível e inacabado, sempre
hipotético e inalcançável, mas ao qual nos condenámos a atingir um dia mais ou
menos próximo), que a Poesia é um bem necessário, e ofereçamos versos como quem
nos põe no regaço bouquets de flores, desse poeta excelso que foi o sintetizador
de todas as visões de agora: um Portugal brumoso de prece profética como se
desejássemos “uma rosa de espuma”. Ele é Mário Cesariny, velejando misteriosa
e maravilhosamente com a varinha de condão n’O NAVIO DE ESPELHOS:
O navio de espelhos
não navega, cavalga
Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível
Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos
Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele
Os armadores não amam
a sua rota clara
(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)
Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga
O seu porão traz nada
nada leva à partida
Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta
E no mastro espelhado
uma espécie de porta
Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto
A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto
Quando um se revolta
há dez mil insurrectos
(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)
E quando um deles ála
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo
Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)
Do princípio do mundo
até ao fim do mundo

In
A Cidade Queimada
Nele ressoam todos os sonhos de crianças felizes, a magia do maravilhoso
adolescente, histórico, nele reflectem todos os mitos que a epopeia faz brilhar
no nosso sub/inconsciente. O mundo afinal da maravilha é mais poderoso do que a
realidade coerente com as peças todas encaixadas disciplinadamente. A maravilha
é que pode ser a mais forte realidade, e fazer, quando se quiser, deflagrar o
encaixe do puzzle tão cimentado quanto facilmente desbaralhado na mão dum
artista ; desmembrar as peças do puzzle pode ser o modo e o meio de agarrar a
vida suprema, porque é desta que o espírito se alimenta, a alegria irrompe, a
Arte impera, a vida feliz nasce e o homem se glorifica, e se impõe com o orgulho
das coisas bem feitas e das quais vale, só dessas vale, a pena ser autor. Um
escritor famoso um dia disse doutro menos famoso: “ vocês dizem que esse
trabalho é meu, mas não é, e tenho pena porque eu ter-me-ia orgulhado de o ter
criado”. Afinal, a grandeza do primeiro nesta frase só o realça, e prova que a
sua fama tinha sido, e é merecida. Um que a não tivesse merecida, diria pouco ou
nada, ou mostrar-se-ia indiferente. São pequenas coisas, que são, bem analisadas
as coisas, muito grandes. Tão enormes que têm de sensibilizar; e se isso não
acontecer, então, é porque a raça humana não presta, e só há eleitos por
círculos muito escassos. Mais brilhantes e poderosos, por isso, na falha ou na
falta de confirmação!
As Escolas artísticas e literárias tendem a desaparecer num mundo vivido tão
vertiginosamente como aquele em que vivemos. Dir-se-ia que cada escritor tem e
cria a sua própria escola. É como a moda. Cada um tem ou cria a sua. Só que a
moda é efémera como qualquer apetite e deleite carnais, lisonjeante, provocadora
de vaidades mundanas, vazias e fúteis, espelhadas sem qualquer glória
moral/espiritual por umas horas ou semanas ou poucos meses, mas a Arte é
duradoira e vive quanto o homem que a suporta e alimenta. Ela ultrapassa séculos
e milénios. A sociedade em que vivemos dá-nos os sinais das preocupações e das
aspirações, comportamentos e rebeldias pelas quais se pauta, sem querer,
quotidianamente. É curiosamente mais um instinto do que outra coisa essa
tentativa de aquisição da perfeição dentro dos condicionalismos espartilhantes
desta humanidade assim construída.
Há um estilo para o mundo da alta finança que o escolhe dentro da moda: Cartier,
Piaget, Valentino, Versace, Gucci, Yves Saint Laurent, Chanel, Armani, Christian
Dior, Lewys, etc.. O estilo conservador dos aristocratas, o dos hyppies, o dos
jet-set, o dos cabeças-rapadas, o dos surfistas, o dos roqueiros, o dos motards,
o das lésbicas, e dos gays, o dos yuppies na década de 80... uma moda que tende
a diferenciar-se pelo vestuário, calçado e seus adornos, óculos, relógios,
cintos...
No final deste século, a moda tende a diluir-se em vários estilos dentro da
mesma época. Quer dizer que dentro da mesma geração podem seguir-se estilos
diferentes...já chegámos por isso a um estado de evolução tal que não nos
confinamos a uma moda única, a um estilo único de expressão, contrariamente ao
que aconteceu nos séculos anteriores. Porque tudo, no fim de contas, é
expressão, individual/grupal. Por conseguinte, talvez seja oportuno estarmos
sempre a fazer sínteses de antagonismos ou aproximações. E prepararmo-nos para
vestir segundo o nosso próprio corpo, ou dar expressão pessoal ao nosso próprio
ser. Isso exige mais criatividade e originalidade a cada um de nós, obriga a uma
maior exigência de sermos uma expressão pessoal num mundo conturbado, confuso,
frenético, que, consequentemente, se torna mais competitivo em todas as formas e
modalidades da existência, e que teima em não deixar que o homem descubra a sua
essência - de ser destinado à felicidade no possível paraíso a construir pelo
sentimento de solidariedade, e pela razão construtiva e criativa, de maneira a
esta ser um permanente e estável factor de paz e contentamento. A globalização
da economia, da civilização por enquanto não vieram ajudar em nada à evolução
cultural dos países ocidentais. Antes, pelo contrário. Os paradoxos das
subculturas desta civilização são cada vez mais descarnados, gritantes,
evidentes, que poderíamos estar em presença de grandes arquétipos mentais
sistematizados nas cordenadas que constroem os nossos pecados mortais: a
hipocrisia, a mentira, o fingimento e o artifício.
Desenho de José
Rodrigues

A natureza não é simplesmente a exterior, caracterizada pela fauna, flora,
geologia e mineralogia, há também a íntima, como já se disse, a interior -
propriedade do homem, a psicológica, filosófica do ente superior e da
instintiva, aquela que o aproxima do animal, como origem, e que neste igualmente
se reflecte. Poderíamos ainda neste momento avançar para a estrutural, a
sociológica, que aproveitaria a oportunidade de ser evocada em obras de carácter
social e que caracterizou toda a era neo-realista da pós-industrialização.
Algumas destas obras, senão todas, aproximaram-se do panfleto político. Elas
utilizaram o que a arte burguesa defende: a utilização insistente com recurso a
meios e finalidades dos consumidores como ignorantes “naïfs” com medo que a
mensagem não fosse suficientemente agarrada, sustida, apreendida, quando
“...l’art est aussi une ambiguiité, il contredit toujours, en un sens, son
propre message, et singulièrement la musique, qui n’est jamais, à la lettre, ni
triste ni gaie.”, citando Roland Barthes, Mythologies, pag.169. Porém, se assim
é, com toda esta vastidão de possibilidades num ensaio mais abrangente, a
natureza instintiva do homem não é só desenvolvida nas obras reo-realistas, as
quais desvirtuaram um pouco, senão totalmente, como tentámos provar, algo
sugerido, algo explicitamente, o conceito de Arte, como também é certo que há
obras reflectoras de algumas belezas e fealdades artísticas de índole erótica.
Os autores dominantes neste género são os clássicos eróticos - que se
celebrizaram em certo, e numeroso público admirador - e cujos nomes podem com
mais ou menos precisão se situar em J. G. Ballard, Marquês de Sade, Henry
Miller, Anaïs Nin, John Cleland, Daniel Pennac, e outros. Todavia, o erotismo
percorre uma boa parte da Arte, aliás há artistas que defendem que toda a arte é
erótica, nomeadamente Adolf Loos (1908) que acrescentou na sua interpretação:
uma linha horizontal é uma mulher deitada; uma linha vertical, o homem que a
penetra...
Desenho de José Cutileiro «Os
amantes»
Muito dele (erotismo) de forma empacotada atinge a pornografia, às vezes
diluída na sugestão, outras explicitando-a; veja-se esta expressão de José
Saramago para se certificar do que é erotismo e pornografia, sendo provavelmente
o leitor capaz de as distinguir “... e lá vai o touro crivado de flechas,
esburacado de lançadas, arrastando pelo chão as tripas, os homens em delírio
apalpam as mulheres delirantes, e elas esfregam-se por eles sem disfarce, nem
Blimunda é excepção, e por que havia de o ser, toda apertada contra Baltazar,
sobe-lhe à cabeça o sangue que vê derramar-se, as fontes abertas nos flancos dos
touros, manando a morte viva que faz andar a cabeça à roda...”, in O MEMORIAL DO
CONVENTO, pág. 100.
A Arte, contudo, é ainda mais exigente do que o tratamento das fúteis e
balofas vaidades humanas, e, por conseguinte, precisamos de, não só estar
enquadrados nas realidades do tempo vivido, mas também abrirmos novos horizontes
de sonho por uma existência mais feliz... isto faz-se rigorosa e necessariamente
pela denúncia dessa vaidade pueril e do orgulho desmesurado injectado pela
inconsciência do artificialismo das concupiscências ocas e ilusórias,
ingenuamente iludidas, todavia apetecíveis e deslumbrantes para satisfazer as
presunções das pessoas inúteis, isto é dos demónios que andam à solta por este
mundo em muitos aspectos ainda penumbroso. Um sombreado que persiste por vícios
desprestigiantes da gens humana , e, que têm a ver com o consumismo da classe
toda-poderosa ; ao comprar tudo o que pode de matéria e por vezes de alma, e
comprar até às vezes o que não pode, recorrendo a artifícios de estatuto, para
seu prazer carnal ou prazer de exercer os poderes financeiro ou político, não
faz mais do que criar uma lixeira poluidora na mente humana, impedindo assim que
o simples mortal possa ver claro, transparente, o destino verdadeiro, último e
único de toda a humanidade aspirante à total dignidade e liberdade neste
planeta, tendo destes estados a consciência mais perfeita possível numa
clarividente mundividência, numa cosmognosia adquirida pelo estudo íntegro,
avançado, despreconceituoso, pela aprendizagem, pela compreensão, pelo exemplo,
pela aquisição da sabedoria. Com efeito, tem-se avançado mais na cosmologia do
que na cosmognosia espiritual, mental, e na psicologia aplicada à intenção de se
corrigirem os comportamentos individuais/colectivos. Como não estamos num
estado civilizacional nem cultural de satisfatório nível, por mais discursos
laudatórios que façam à época 'gloriosa' em que vivemos, discursos que só fazem
bem aos poderosos que usufruem deste e do outro mundo, a filosofia ocidental
ainda falha por muitas vertentes, em especial por não diferenciar claramente a
realidade factual e efectiva da falsidade comportamental e teatral, e a política
não é transparente nem eficaz, e faz com que pouco se altere para que fique
quase tudo na mesma; ela anda também a gerir unicamente as águas turvas e
turbulentas das necessidades e aspirações básicas dos terrestres, de modo a que
cada político vá sobrevivendo com o máximo de privilégios possíveis com a
certeza de que só há uma vida para viver, esta que anda com os pés neste chão
lodoso de todos os dias. Todo o resto é artifício, é farsa, é sofisma, é dolo !
Porque é esta a recompensa para os economistas e políticos muito sérios,
honestos, trabalhadores, inteligentíssimos e profissionais de alta estirpe !
Nestes estratos sociais, aparecem os puristas conservadores, os puristas soezes
da linguagem, os preciosistas fabulosos da economia, gente de memória prodigiosa
de conhecimentos cimentados nos séculos, inquisidores natos, que extraem as mais
córneas e putéfias conclusões dos conhecimentos adquiridos, capazes de se
transporem para o cadafalso dos carrascos da verdade empedernida ao longo dos
tempos (verdade que é mentira), carniceiros da criação e da inovação, da
descoberta e da evidência de novos saberes, estes capazes de fazerem avançar o
conhecimento e a relação entre os homens, e diminuir a sua distância. O
inquisidor, o purista manhoso, o preciosista velhaco é normalmente um pau
mandado da alta finança, do cânone do oculto, com o intuito de não deixar que
belisquem nos privilégios das classes poderosas.
É neste antagonismo, neste paroxismo, neste dualismo, nestas premissas
erradas que estamos condenados a viver sinteticamente? Até quando ? Para quando
a mundisapiência? Ou a hominitatis sapientia ?
Muitos outros criadores literários mereciam aqui referência, mas a escolha
de um tema inibe às vezes que se trate doutros também agradáveis, alguns deles
cruzando-se e enlaçando-se neste, como é o caso da fábula. Todavia este
apontamento responde a prazeres pessoais de leitura e de afectos com tempo e
espaço limitados, sem preocupações de sistematização didáctica, embora lhe
esteja subjacente um movimento contínuo, coerente, de transformação da imagem
nas relações - objecto/ sujeito, sujeito/ objecto, mundo exterior/ interior,
globalização/ individualismo. No caso da fábula, direi apenas que se dá também
aí o tratamento metafórico da Natureza, sendo esta desenvolvida numa perspectiva
animal. É uma temática que põe a nu a natureza irracional da criatura humana, e
à qual já nos referimos quando tratámos da irracionalidade existencialista dos
escritores que sobreviveram penosamente à deflagração e morticínio das grandes
guerras mundiais da primeira metade do séc. XX. Poderíamos dizer que há humanos
que se parecem mais com os animais do que com os homens : chacais à procura de
presas moribundas ou fracas ou com dificuldades de sobrevivência ; raposas
prontas a comer o repasto dos pobres de espírito e dos ingénuos ; os lobos
políticos ou defensores da plutocracia prontos a devorar os cordeiros honestos
que bebem nos rios da comunidade, mas que precisam da água para se fortalecerem.
A fábula nunca foi expressão lírica por natureza, mas uma expressão satírica/
sarcástica/ escárnia, caricaturalmente irónica. Esta temática conhecida
primeiramente graças às FÁBULAS DE ESOPO, redigidas pelo monge Planudes,
(Séc.VII e VI a. C.), foi retomada por La Fontaine, e não foi muito mais
desenvolvida porque os protagonistas aí tratados definem-se numa circunscrição
de uma dúzia de tipos fortemente eivados de defeitos, e vícios de carácter e
temperamento. Por isso, os escritores derivam das fábulas para os tipos humanos,
apoiando-se nestes espécimes para se poderem mover com mais à vontade no
desenvolvimento das lineares personagens planas.
O mundo sórdido e macabro da fábula só poderia ser tratado em poesia, pois só
esta poderia eternizar os defeitos monstruosos dum estrato voraz e impenitente
da sociedade, que se desenvolve em muitos casos na política, na alta finança,
e/ou na pobreza e na miséria psicológicas e sociais.
Esta tendência humana de imitação genética dos antepassados do crânio
arraçado do Cro-Magnon chega a atingir as chefias políticas dos regimes
musculados tiranizantes, fascizantes ou parafascizantes. Ou seja, os,
geneticamente, e por natureza, autoritários, postos na chefia dos povos ávidos
de supremacia e autoritarismo, ou seduzidos por ideologias rácicas que os motiva
para se considerarem gestores da humanidade, como numa fantasia fílmica, e aí
mantidos por capatazes cruéis e agressivos, têm tendência para incarnarem as
doenças da voracidade selvagem. Tendência esta que transforma os Chefes em
sanguinários e criminosos, acima/à margem da lei e abusando dela... vede o que
aconteceu no fim do recente século passado quanto ao extermínio das gentes dos
Balcãs, recorrendo ao massacre, ao genocídio, à barbárie apostada na destruição
de bens e haveres, com tanto trabalho e suor erguidos pela esperança dos humanos
num futuro melhor... mas que barbárie, envenenado fruto maldito de raiva e ódio,
se desenvolveu pondo em marcha o crime premeditado! Uma autêntica decepção para
quem acredita nas virtudes do homem! Que se mostrou ser mais animal que humano!.
Tudo isto, no fim do segundo milénio da mensagem cristã, com chefes tolerados
pela plebe psicologicamente alienada/anestesiada, impassível e ignara. Isto
aconteceu numa Europa, cujas gentes acreditavam que tinham descoberto a maior
felicidade do mundo, porque tinham banido para sempre a guerra e o crime
hediondo. Mas os europeus ainda são muito incultos, quase iguais aos que nascem
noutros continentes, que são tratados como seres atrasados e ignaros. Quanto
mais ignorante for um povo, mais fácil é de o tiranizar, de o muscular, de o
balizar, quanto mais culto, mais livre e digno se torna. Efectivamente e em
suma, estamos ainda longe de sermos todos dignos uns dos outros.
Que cada vez se escreva mais e melhor! Que se ganhe e difunda uma consciência
de valores avançados à escala planetária, para que o homem acredite no homem! É
preciso eleger novos mitos! Que se leia mais e melhor! Que os rendimentos do
trabalho não cheguem só para o pão e a vestimenta! O espírito também tem fome e
a alma precisa de ser modelada...

Armando de Figueiredo
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