Jogos nossos de cada dia
O sentimento de Maria diz: - Não quero.
O pensamento retruca: - Mas eu devo!
Os lábios expressam: - Tá bom. Eu levo sua mãe ao médico.
Aceita os préstimos o João,
afinal algo útil a mulher vai fazer. - Obrigado, querida!
Apesar de aliviado por menos essa incumbência,
o peito aflige de leve,
Sem saber bem o porquê.
No carro, lá se vão a Maria
e a sogra para o bendito médico
que não se sabe por que cargas-d’água
- Coisa de sogra!
Inventou de montar consultório no subúrbio
mais perigoso e distante da cidade.
Fazendo pouco, a chuva despenca, torrencial,
turvando a vista e queimando o juízo,
já comprometido pelo calor de quarenta graus
que o ar condicionado quebrado esnoba: - safado!
- Por que logo comigo isso tem de acontecer?
É a perplexidade de Maria ao entregar a bolsa e celular,
tanto dela como da outra mulher, nas mãos molhadas do assaltante,
por entre o revólver apontado pela janela entreaberta,
do automóvel impotente no semáforo vermelho à frente.
A sogra, coitada e assustada, só consegue dizer:
- Não estou agüentando de tão apertada!
E o xixi escapa da incontinência urinária,
que o doutor ia tratar, misturando-se, meio pegajoso,
à água da chuva que um pequeno buraco deixa entrar.
Finalmente no destino,
ambas as mulheres, esgotadas e encharcadas,
somente lá descobrem que o cartão do plano de saúde
foi junto com o roubo do ladrão.
Nenhuma persuasão, quanto mais qualquer papo,
é suficiente para fazer a atendente do médico
convencer-se da versão de tamanho desatino,
que exige caução do valor da consulta,
mais vinte e cinco por cento de imposto de renda,
por cautela de uma eventual exigência de recibo.
Indignada: - Você está achando que sou o quê?
Maria desiste das boas maneiras, arma o barraco,
roda a baiana e diz pra que veio:
- Você, sua sirigaita e esse seu doutorzinho de periferia...
- Vão todos pra o diabo que os carregue!
A hora do almoço passou,
o corpo enxugou,
a chuva parou
e a água dentro do carro quase secou.
- Um dia perdido!
Para o prejuízo não ser de todo, contudo,
Maria resolve visitar o marido no trabalho,
sem antes deixar dona Clotildes,
esse é o nome da sogra, em casa, graças a Deus!
- Desculpe a senhora pelos imprevistos!
- A minha intenção foi a melhor possível...
- Quem sabe outro dia, hem dona Clotildes?
- Vou ter a maior satisfação em levá-la novamente!
Pensa daí em diante o santo protetor ajudar,
mas surpresa! - Que estranho!
A sala de João fechada e sem
nenhuma alma viva para explicar!
- Meu São José! Será que enfartou?
A taquicardia acelera.
As mãos suam.
A cabeça funciona.
Pergunta a Maria pelo João
ao ascensorista de plantão,
que sabe da vida de todos e
lógico que também da de João.
- João não veio hoje, não, dona Maria,
foi levar a inválida da mãe ao médico.
E Maria levanta o nariz, empertigada:
- Só imaginei já pudesse estar de volta o João!
- Crápula, canalha, patife, filho da p...!
É tudo fichinha no arsenal de impropérios
que Maria diz sozinha, pensando no João,
sentada no carro, parado outra vez -
- Mas hoje não é mesmo o meu dia de sorte! -
Embaixo da chuva e engarrafado no trânsito.
Demora tanto esse tráfego
que Maria derrama todas as lágrimas
de direito da esposa virtuosa e legítima.
- Como sou infeliz! Tudo culpa do traidor!
Ele que se cuide, o marido,
a vingança é de acusá-lo e largá-lo,
sem antes processá-lo por bigamia,
o adúltero assassino!
Já em casa, esparramada na grande cama
da suíte do casal: - Decorei mês passado!
Maria lamenta a eminente perda
dos beijos e dos abraços do seu homem
e dos jantares, viagens e mesada
que, lógico, o ingrato não vai mais dar.
A bem da verdade, entretanto,
ele até que não é tão mau assim,
um excelente marido e melhor pai não existe.
Deve ser a Maria – Nojenta! -
que vê coisas onde nada existe
e mistura os alhos com os bugalhos!
Cheirosa e bonita,
recebe Maria o seu João
que, só por gentileza e amor,
hoje a presenteia com lindas rosas vermelhas
e reforça a toda hora a sua eterna paixão.
No leito, os dois pombinhos
transam e fazem eternas juras de amor
e não entendem a dificuldade de ereção do João
e de uma certa rigidez em Maria,
que sabe Santo Antonio o motivo – eu não sei não!
FIM.
Em 06.06.03
Leda Nova
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