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Ensaios-->A PROPÓSITO DE EÇA DE QUEIRÓS -- 11/03/2003 - 19:08 (Daniel Cristal) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A PROPÓSITO DE EÇA DE QUEIRÓS
(Mini-Ensaio de Armando de Figueiredo)

O que se escreve tem muito a ver com o saber, o corpo (enquanto massa e organismo vivo), o carácter e o temperamento do autor... corresponde-lhe o mais profunda-mente possível. É a lição que nos dá o eminente escritor aqui homenageado.
Escrever seriamente não é um acto para sa-tisfazer vaidades pessoais, nem tão pouco um acto pueril. É um testemunho e um compromisso; testemunho do ser humano sensível ao seu tempo, moldado pelo modo; compromisso de uma sabedoria plasmada na sociedade retratada.
Com efeito, Eça não se confina unicamente ao uso magistral da ironia, como recurso estilístico; ele não só utiliza genialmente o adjectivo na transformação da imagem como meio de expressão linguística, assim como também o advérbio; a ironia é, no iní-cio, uma predisposição psíquica, sendo no decurso da expressão uma atitude crítica mais ou menos correctora e didáctica como norma, pedagógica como resultante. Esta expressão assim trabalhada, vai pôr a nu o comportamento humano, retirando-lhe todos os acessórios com que finge. A ironia faz sorrir, o escárnio e o sarcasmo fazem rir.
Rir, fazer rir das fealdades humanas, para o comediante, é a melhor terapêutica social e individual. É assim que se corrigem os cos-tumes e comportamentos viciados.
Enquanto que para o artista plástico a ma-téria significante são as formas transmitidas à matéria com que trabalha, para o escritor a Arte está no manuseamento da linguagem e da Língua. Desenhando os grafemas, escolhendo-os, plasmando-os nos elementos dos sintagmas, associando-os a outros, resulta desse trabalho a matéria imagística significante. O esteta atribui-lhes novas e inusitadas conotações, expande os signos e os sintagmas para outras dimensões imaginárias, virtuais, que atraem pela sur-presa conseguida.
Ser escritor é um impulso instintivo, que advém dos mais recônditas raízes de expres-são compulsiva, onde se misturam as suas depressões reactivas, os fantasmas duma tormenta conspirativa, um caldeamento demasiado forte para poder ser contido até à negação. Todavia, a expressão tanto pode ser contida em dois versos maravilhosamente conseguidos e que nomeiam todo o mundo, como pode ser contida num roman-ce de fôlego impetuoso e devastador, como noutro de longo trabalho insistente, tesou-rado até ao limite essencial.

No fundo, as imagens constituídas por uma miríade de formas com a força dum estilo próprio, falam sempre de uma cosmognosia individual. Essa cosmognosia é fruto de um trabalho, de um estudo recolhido e aturado, de uma formação equilibrada e inteligente, burilada por uma reflexão constante, diríamos por sínteses evolutivas, como um renascimento contínuo. Misturemos à cos-mognosia a vocação, o dom, a tendência, os gostos para que o quadro se aproxime da perfeição.
Para além de todo o exposto, o escritor, ao recorrer à dialéctica filosófica do ambiente de ideias - inserido no seu tempo e no seu lugar, marca as contingências e circunstâncias físicas e espirituais onde o seu Universo tem necessidade de gravitar, dando-lhe a voz de uma egomundividência.
A Língua como estrutura e a linguagem como conjuntura, são os seus meios de construção de imagens. São esses os terrenos férteis da expressão artística; é esta expressão que seduz emissor e receptor, os conjuga, os torna partilhantes, participantes do mesmo planeta; é esta a geradora da empatia global. O que se diz, é sem dúvida importante, mas o modo como se diz é o mais cativante, mais definitivo... como se fosse o alarme da revelação e da anunciação. Neste patamar assim equacionado, distinguem-se dois homens de letras: o escritor e o cronista... o escritor tratando dos temas universais moldados pelos tempos mais recentes, e o cronista escrevendo sobre os assuntos históricos do seu tempo. As perspectivas são diferentes: projectar o passado no presente é distinto de projectar o imediato no presente. A Língua e a linguagem para aquele são um processo evolutivo muito trabalhado de inovação e renovação, para este um processo estabilizado onde cabem poucas alterações: quase sempre uns signos mais rebuscados na sinonímia e uma pontuação mais atrevida. É na equação citada pela anterior distinção, que se define o estilo e fica reflectida a egomundividência.
No tema em apreço, a genialidade está no ego, nas profundezas da pessoa como ser social e socializante; está na sua capacidade de criar mundos verosímeis e presentes projectados no futuro, dialogando com um passado geracional.
A egomundividência é, metafórica e efec-tivamente, essa coluna de faúlhas sucessivas provindas do artista que faz rasgar as aparências e revelam a utopia e a ucronia possíveis, com potencialidades para se tornarem realidades revestindo novas roupagens; são estas a sedução dos seus pares semelhantes que sem isso não aderem. É uma possível utopia que se realiza a passo de caracol, década após década, imagem projectada do descontentamento, da indignação, do inconformismo e da irreverência, assumindo às vezes a expressão de revolta declarada contra a convenção e o cânone. As inabaláveis estruturas institucionalizadas a nível social e mental são questionadas e podem ser alvo de crítica, de ironia, escárnio, riso ou gozo, de mordacidade, com possíveis objectivos a abater por serem (as estruturas) anquilosadoras, privadoras de avanços sociais, congeladoras do movimento de ideias, sufocadoras de avanços na civilização, retardadoras em suma da evolução da humanidade.
A escrita como Arte é um penoso exercício profícuo, hábil e lúdico, um manejo mental da sensibilidade e do espírito. Ela coloca os signos como peças dum puzzle de vastas possibilidades criativas; é um produto suado, um empreendimento obstinado e espantoso, gratificante e alegre, saudável, místico e mítico... às vezes decepcionante, para que seja rejeitado e reformulado.
A escrita artística pode gerar e possuir a própria criação quando se lhe dá livre aso a que tal aconteça. A desapropriação vocabular pode provocar percepções múltiplas, conotativas, sinestésicas. O escritor além de criar espaço para essa liberdade, deixa boa parte das vezes que as personagens cresçam autonomamente e criem o seu próprio espaço e o seu tempo sem um objectivo bem definido no início da narrativa. Ainda que Eça de Queirós não escrevesse propriamente na época dos da-daístas e dos surrealistas, a verdade, é que ele já é percursor destas correntes pelas novidades introduzidas no discurso a que submeteu a escrita. O modus faciendi da escrita queirosiana dá testemunho de um arrebatamento impróprio, mas funcional, na associação de conceitos inapropriados; atente-se como ilustração do retro-exposto neste segmento: “o silêncio luminoso”.
Mallarmé, Verlaine e Apollinaire, em Fran-ça, Camilo Pessanha em Portugal, levam esta escrita criativa ao seu máximo de virtualidades. E todas as gerações de escritores, desde então até aos nossos dias, recorrem a estes processos e recursos estilísticos. O ser do artista revela-se aí... é nesse preciso momento que os seus humo-res transparecem ditados pela animação de todos os saberes, obsessões e fantasmas que o consomem.
Da inovação pelo adjectivo inapropriado, já referenciado, até à criação de situações ca-ricaturais e que são timbre da sua escrita, vejam o exemplo: “o poeta apertando o atilho da ceroula” num arrebatamento de dicção, à apresentação de revolucionários vivendo faustosamente, e ainda à criação da personagem de escárnio - a figura ministerial do Conselheiro Acácio, Eça foi um mestre que influenciou toda a nossa contemporaneidade, assim como a dos nossos vizinhos castelhanos e ainda a dos Sul-Americanos de Línguas espanhola e portuguesa. A Europa veio por arrasto e não aderiu logo por dificuldades de tradução. Nunca foi fácil traduzir um trecho artístico, quanto mais um estilo cheio de fortes marcas pessoais!


Não é pueril nem inofensivo, qualquer tributo a Eça de Queirós... é, pelo contrário, a prova de uma homenagem merecida, e um quinhão a juntar ao Padre António Vieira e a Fernando Pessoa para ajudar à construção do seu amado Quinto Império ou melhor, e, preferencialmente, dito: do Império da Língua Portuguesa.

Francelos, Dezembro de 2000

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