1850 = 1923
Em 17 de Setembro de 1850, nasceu em Freixo-de-Espada-à-Cinta um dos mais lídimos representantes da poesia portuguesa, Abílio Manuel Guerra Junqueiro, oriundo de família transmontana próspera e rigídamente devotada ao catolicismo.
Após ter frequentado em Coimbra, entre 1866 e 1868, a Faculdade de Teologia, optou transferir-se para a Faculdade de Direito, onde logrou formatura ao cabo de cinco anos. Ao decorrer do tempo, inserido entre os intelectuais da tertúlia do 'Cenáculo', participou activamente na revista cultural 'Lanterna Mágica'. Revelou-se desde logo retórico e panteísta, quando se estreou em livro com 'Mysticae Nuptiae'.
Pode considerar-se que a fase adulta da sua actividade poética teve início com a publicação de 'A Morte de D.João', ao mesmo tempo que, pela via da profissão administrativa, assumia o secretariado, respectivamente, do governo de Angra do Heroísmo e de Viana do Castelo. Também ingressou na intervenção política na qualidade de deputado do regime da época.
Entra para o célebre grupo de 'Os Vencidos da Vida' em 1887, do qual faziam parte Eça de Queirós e Oliveira Martins. Todavia, em 1890, com o aparecimento do 'Ultimatum Inglês', rompe relações com este último e abraça com empenhada devoção e denodado entusiasmo a causa repúblicana.
Proclamada a República, em 1910, é chamado a desempenhar funções de ministro em Berna, onde se manteve até 1914. Decepcionado com o andamento da política em Portugal, decidiu recolher-se à vida particular, até à sua morte, ocorrida em Lisboa a 7 de Julho de 1923.
Guerra Junqueiro celebrizou-se sobretudo pela sua poesia anti-clerical, através de sátiras genialmente contundentes e demolidoras contra a clericagem hipócrita que então militava, obtendo singulares efeitos caricaturais que mais ainda intensificaram a prolixa retórica da excelência de seus versos.
Dentre a sua significativa obra, parte da qual se perdeu por descaminho e onde o poeta mais acentuou a ortodaxia realista, são exemplarmente enlevantes os valores da sua poesia nos seus últimos tempos, espécie de fôlego incisivamente demonstrativo de que o autor ultrapassou os parâmetros da realidade que o circundava. O seu espólio literário permanece válido, graças à plasticidade que nos oferece sobre as dúvidas e desacertos do complexo humano na sua trajectória sobre a terra.
Os seus mais importantes escritos concentram-se em 'A Morte de D.João',' Os Simples', 'A Musa em Férias' e 'A Velhice do Padre Eterno'.
Leiam, apreciem, os dois magníficos poemas que seleccionei e adiante transcrevo a fim de proporcionar-lhes tão só uma diminuta ideia sobre a poderosa poesia deste enorme vate da lírica portuguesa.
REGRESSO AO LAR
Ai, há quantos anos que eu parti chorando Deste meu saudoso, carinhoso lar!... Foi há vinte?...há trinta? Nem eu sei já quando!... Minha velha ama, que me estás fitando, Canta-me cantigas para eu me lembrar!...
Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida... Só achei enganos, decepções, pesar... Oh! a ingénua alma tão desiludida!... Minha velha ama, com a voz dorida, Canta-me cantigas de me adormentar!...
Trago d amargura o coração desfeito... Vê que fundas mágoas no embaciado olhar! Nunca eu saíra do meu ninho estreito!... Minha velha ama que me deste o peito, Canta-me cantigas para me embalar!...
Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho Pedrarias d astros, gemas de luar... Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!... Minha velha ama, sou um pobrezinho... Canta-me cantigas de fazer chorar!
Como antigamente, no regaço amado, (Venho morto, morto!...) deixa-me deitar! Ai, o teu menino como está mudado! Minha velha ama, como está mudado! Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...
Cante-me cantigas, manso, muito manso... Tristes, muito tristes, como à noite o mar... Canta-me cantigas para ver se alcanço Que a minh alma durma, tenha paz, descanso, Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...
PORTUGAL
Maior do que nós, simples mortais, este gigante foi da glória dum povo o semideus radiante. Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado, seu torrão dilatou, inóspito montado, numa pátria... E que pátria! A mais formosa e linda que ondas do mar e luz do luar viram ainda! Campos claros de milho moço e trigo loiro; hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro; trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas; nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas; gados nédios; colinas brancas olorosas; cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas; selvas fundas, nevados píncaros, outeiros de olivais; por nogais, frautas de pegureiros; rios, noras gemendo, azenhas nas levadas; eiras de sonho, grutas de génios e de fadas: riso, abundância, amor, concórdia, Juventude: e entre a harmonia virgiliana um povo rude, um povo montanhês e heróico à beira-mar, sob a graça de Deus a cantar e a lavrar! Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias conchegadinhas sempre ao torreão de ameias. Cada vila um castelo. As cidades defesas por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas; e, a dar fé, a dar vigor, a dar o alento, grimpas de catedrais, zimbórios de convento, campanários de igreja humilde, erguendo à luz, num abraço infinito, os dois braços da cruz! E ele, o herói imortal duma empresa tamanha, em seu tuguriozinho alegre na montanha simples vivia – paz grandiosa, augusta e mansa! -, sob o burel o arnês, junto do arado a lança. Ao pálido esplendor do ocaso na arribana, di-lo-íeis, sentado à porta da choupana, ermitão misterioso, extático vidente, olhos no mar, a olhar sonambolicamente... «Águas sem fim! Ondas sem fim! Que mundos novos de estranhas plantas e animais, de estranhos povos, ilhas verdes além... para além dessa bruma, diademadas de aurora, embaladas de espuma! Oh, quem fora, através de ventos e procelas, numa barca ligeira, ao vento abrindo as velas, a demandar as ilhas de oiro fulgurantes, onde sonham anões, onde vivem gigantes, onde há topázios e esmeraldas a granel, noites de Olimpo e beijos de âmbar e de mel!» E cismava, e cismava... As nuvens eram frotas, navegando em silêncio a paragens ignotas... – «Ir com elas...Fugir...Fugir!...» Ûa manhã, louco, machado em punho, a golpes de titã, abateu, impiedoso, o roble familiar, há mil anos guardando o colmo do seu lar. Fez do tronco num dia uma barca veleira, um anjo à proa, a cruz de Cristo na bandeira... Manhã de heróis... levantou ferro... e, visionário, sobre as águas de Deus foi cumprir seu fadário. Multidões acudindo ululavam de espanto. Velhos de barbas centenárias, rosto em pranto, braços hirtos de dor, chamavam-no... Jamais! Não voltaria mais! Oh! Jamais! Nunca mais! E a barquinha, galgando a vastidão imensa, ia como encantada e levada suspensa para a quimera astral, a músicas de Orfeus: o seu rumo era a luz; seu piloto era Deus! Anos depois, volvia à mesma praia enfim uma galera de oiro e ébano e marfim, atulhando, a estoirar, o profundo porão diamantes de Golconda e rubins de Ceilão!
Breve Evocação a Junqueiro
De ti e sobre os bancos do liceu
Aprendi a subir a escadaria
Que ruma a esplendores aonde o céu
Se me oferece inteiro em poesia!
Contigo aspirei a fantasia
Que agora trago a renascer
Na Musa que me inspira dia a dia
A chama e o alento de viver!
Torre da Guia
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