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Ensaios-->Sobre Elza Soares -- 20/09/2002 - 22:43 (Felipe Cerquize) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
AUTOBIOGRAFIA E UM FILHO PERDIDO

UpToDate - Fale-me um pouco sobre a biografia que você lançou.

Elza Soares - Eu lancei a minha biografia na Choperia Continental, aqui em São Paulo. Só o título já é interessante, 'Cantando Para Não Enlouquecer'. Através da música, foi tudo o que eu achei para não enlouquecer.

UpToDate - Quanto tempo você demorou para escrever o livro?

Elza - Há vinte anos atrás, mais ou menos, a minha vida era uma. Eu estava feliz e não sabia. Eu tinha o meu filho, mas depois que eu o perdi, eu enlouqueci e pirei de vez. Daí, levei oito anos para reunir material para o livro. As fitas que tiveram de ser gravadas... Relembrar e falar sobre muitas coisas que não se quer falar mais, que se quer esquecer. Mas não se pode fazer uma biografia sem falar. E a minha vida é muito aberta.

UpToDate - Foi bom para você ter escrito a tua biografia?

Elza - Eu estou aqui com muita experiência, passando essas coisas para as pessoas com muita dignidade e muita força para viver. Porque você tem de lutar enquanto a vida está aí. Ela está com você e você tem de fortalecê-la. E hoje as pessoas me olham até de uma maneira meio assustadas. Elas falam 'O Elza, você com esse corpinho de menina e essa carinha'. Bom, Deus não poderia me tirar tudo, né?

UpToDate - Quantos anos tinha o teu filho quando ele morreu?

Elza - Ele tinha oito anos. Eu tinha planos com ele. Eu acho que ele seria meu grande amigo. Ele seria o meu grande companheiro. Ele era a herança que o Mané (Garrincha) me deixou. Quer dizer, ele pensou que tinha deixado, mas ele passou por aqui para não deixar herança nenhuma.


A VIDA COM MANÉ GARRINCHA

UpToDate - Mas o Mané Garrincha deixou a beleza do seu futebol como herança, um dos maiores do mundo.

Elza - Hoje, os jogadores de futebol têm muito medo do fracasso, de não se tornarem algo como na elegância do futebol do Mané. E o poder que

Deus deu a ele com aquelas pernas tortas. Os grandes ídolos que pensamos que temos, nós já não temos mais. Eles vivem fora do país. Hoje os astros jogam pelos dólares. Eu não acho que isto está errado, mas as coisas mudaram muito.

Com aquele futebol arte, aquele futebol beleza, eu não lembro que o Mané tivesse ganho na vida um prêmio como 'a bola de ouro'. E mesmo que oferecessem a ele, ele não aceitaria. Era mais fácil ele aceitar um pássaro ou um animal do que esses grandes prêmios que dão como destaque aos maiores jogadores de futebol do mundo. Ele nunca ambicionou isso.

UpToDate - Você leu o livro do Ruy Castro sobre o Mané Garrincha?

Elza - Li e chorei muito. Eu gosto muito porque eu sou uma fã ardorosa do Ruy. Fiquei muito grata porque ele lembrou do Mané. O Ruy enfrentou uma barra, não das filhas do Mané, porque elas não tinham nenhum poder de impedir o lançamento do livro, mas talvez por parte de outras pessoas interessadas no vil metal. Isso fez com que elas aparecessem proibindo o livro. Eu achei aquilo um absurdo... Como é que você presta uma homenagem a alguém e chega outro que diz 'não pode!'. Eu achei que o Ruy falou no livro e falou pouco até. Mas muita coisa do Mané eu não falaria. Existem coisas que eu quero levar para o túmulo comigo. Eu acho que o Mané só merece o que é bom.


O FUTEBOL ARTE DE GARRINCHA

UpToDate - O que você acha do contexto dele na história do futebol brasileiro?

Elza - Hoje eu vejo tanta gente batendo no peito e dizendo 'nós somos tetra-campeões'. E eles esquecem que o Mané foi a pedra fundamental e a base desse estardalhaço todo. Ele foi o grande mensageiro do futebol brasileiro. O futebol do Mané era o futebol arte. Eu até considero ele como o Charlie Chaplin do futebol.

Eu tenho em casa uma imagem do Charlie Chaplin que eu cultuo como se fosse a imagem do Mané. Os dois levavam alegria ao povo. O Mané tinha aquela simplicidade, aquele jeitão puro do mato... Eu acho que a música sertaneja seria tudo o que o Mané gostaria de ouvir.

Muito embora o primeiro disco de presente que eu ganhei dele fosse o da Billie Holiday. Ele me achava meio parecida com a Billie Holiday. Ele não poderia imaginar que o sofrimento viria após aquele disco, que foi a minha vida com ele, uma vida bem dura. Eu via na nossa vida sofrimento e amor.

UpToDate - Quando foi que você conheceu o Mané Garrincha?

Elza - Eu conheci o Mané se preparando para a Copa do Mundo de 1962, antes da Copa do Chile. Ele me foi apresentado pelo Dr. Lívio Toledo e pelo Newton Santos. Eles foram à minha casa e pediram que eu fizesse uma campanha para que o Mané ganhasse um carro como 'o jogador do ano'. Ele era pobrezinho e a nossa vida era muito parecida. Ele casou-se aos dezessete anos e trabalhava numa fábrica. E eu me casei aos doze anos e trabalhava numa fábrica também. E tivemos quase a mesma quantidade de filhos; ele de um lado e eu do outro. E eu com aquele jeito assim...


FILHA DE LOUIS ARMSTRONG POR UM DIA

UpToDate - Você conheceu o Louis Armstrong também em 1962, lá na Copa do Mundo do Chile, não foi?

Elza - Eu fui a madrinha da Copa do Mundo. E ganhei a Copa... (rindo) Ele me chamou de 'my daughter' e eu não entendia nada de inglês, e aquele negrão lá na minha frente que mais parecia o Monsueto. E, depois de me ouvir, ele ficava falando 'yes, she is my daughter'. Eu eu dizia 'mas que coisa, esse homem me chamando de doutora (doctor) o tempo todo'. (risadas) E eu dizia para o cara ao meu lado, 'diz pra ele o meu nome porque ele insiste em me chamar de doutora'. E então eu perguntei ao intérprete 'por que ele está me chamando de doutora'. E ele me falou 'não Elza, ele está te chamando de filha porque 'daughter' em inglês quer dizer filha'. 'Oh!!! É mesmo!', disse eu.


UpToDate - Que honra deve ter sido quando você percebeu isso.

Elza - Mas eu nem sabia de quem se tratava. Imagina uma ex-favelada, uma ex-menina de rua, uma ex-faminta, grandiosa lá no Chile, madrinha da Seleção Brasileira de futebol, ver um músico assim te chamar de filha. Mas, como é que eu iria saber que ele era o Louis Armstrong, se eu nem o conhecia? Lá na minha casa não havia rádio, não havia nada. São coisas dos deuses que ninguém pode explicar.


UpToDate - E depois que você começou a entender do que se tratava?

Elza - Aí o tradutor que estava comigo falou pra mim 'Elza, faz um carinho nele'. Eu falei para o intérprete 'você tá brincando, esse homem parece um armário; por onde eu começo a fazer carinho nele?' (risadas) E o intérprete insistia 'vai lá e passa a mão nele'. E eu disse 'hummmmm...'. Então o tradutor disse, 'melhor, vai lá e chama ele de 'my fóder' (father). E eu disse 'tú é doido cara, não é porque ele me chamou de doutora o tempo todo é que eu vou xingar o homem agora'. Eu disse, 'não vou falar o fóder não'. E ele insistia 'vá e diga fóder'. E eu dizia 'não, não vou mandar o cara se fóder não'. (risadas)

Bem, aí eu cheguei perto dele... Me lembro da figura dele que era linda, eu até tenho uma foto minha com ele na minha casa, e eu cultuo aquilo como um presente do papai-do-céu. Aí o intérprete me perguntou 'você não sabe o que é father?' (e não fóder) Eu disse 'sei todo mundo faz, mas não preciso dizer isso pra ele'. Então eu fui, cheguei pra ele e disse 'my father'. Então ele sorriu e me abraçou com todo o carinho e disse 'yes, you re my daughter'. Então eu perguntei baixinho ao intérprete o que era 'father' e ele me disse que era o mesmo que pai. Eu pensei 'Ah! Então é isso! Pai fóder e faz filho'. (risadas) Mas, foi tudo bem legal.

UpToDate - Que ótima essa história. Você teve um outro contato com ele depois disso?

Elza - Sim, depois nós fomos juntos para o México porque ele queria me levar para a Georgia. Eu só não fui porque eu estava com os filhos pequenos e eu estava começando uma vida nova. E quando você está ganhando, você tem muito medo de perder. E ali, naquele momento, tudo para mim era o Moreira da Silva, era a Silvinha Telles, não era o Louis Armstrong. Eu não o conhecia. Depois é que eu fui saber quem era o Louis Armstgrong e comecei a conhecer os artistas estrangeiros.

CALOURA DE RÁDIO DE ARY BARROSO

UpToDate - Foi nessa época que o Moreira da Silva te levou para um programa de rádio?

Elza - Ele me levou para o 'Aerton Pé Ligeiro'. Inicialmente, eu mesma fui para a Rádio Mauá trabalhar com o Hélio Ricardo. E o Moreira da Silva, me ouvindo da casa dele, pediu que eu aguardasse. Então ele me apresentou ao Aerton, da Rádio Tupi. E foi na Rádio Tupi que eu comecei a brotar.

UpToDate - A Rádio Tupi naquela época (1960) era a grande rádio. Era como se fosse a Rede Globo das rádios?

Elza - Era uma coisa assim. A Tupi era 'a Radio'. Antes eu já havia cantado no programa de calouros do Ary Barroso. Que também foi uma humilhação. Na época, eu pesava uns trinta e poucos quilos. Eu me inscrevi no programa de calouros do Ary Barroso. A exigência deles era que eu viesse bonita. Eu falei 'bonita como?' Então eu peguei uma saia da minha mãe, uma camisa e uma porção de alfinetes. Enrolei bastante a saia e a blusa e fui pondo alfinetes nos panos que sobravam.

Então cheguei no programa do Ary Barroso, fiz o teste com o regional Cruz e Toco Preto, mas eles fizeram uma maldade comigo e me deram um tom acima. Mas a minha voz era pura e limpa, não havia poluição, e então não havia o que segurasse a minha voz. Aí eu subi o tom. Então eles todos ficaram surpresos 'meu Deus, de onde veio essa voz?'.

Mas por mais que eu pense nisso, eu ainda acho que eu não sei nada. Enquanto estamos vivos, temos muito o que aprender. E eu tinha achado que tinha cantado pessimamente mal, mas os músicos me trataram com muito carinho e ficaram me protegendo.

UpToDate - E como era o Ary Barroso?

Elza - Ele era um mineiro daqueles bem tradicionais. Parecia um tipo chato, tinha um narigão, usava um oculós pequeno na ponta do nariz, e chamava todo mundo de 'meu filho e minha filha'. Para se apresentar lá, a primeira coisa que você tinha de saber eram os nomes dos autores da música que você ia cantar. E isso eu gravei logo.

Aquilo parecia um corredor da morte. Ficava todo mundo sentado nuns banquinhos e ele chamava, 'senhor fulano de ta!'. Mas o que me fazia sentir muito alegre ali eram os calouros gongados. Eu morria de rir quando alguém levava um gongo (e era desaprovado por ele). O susto que os calouros tomavam era engraçado, eles davam um pulo na hora do gongo. Parecia que eles levavam um tiro ou um choque elétrico. E eu ria de chorar. Mal sabia eu que na minha hora, iria ser uma coisa terrível.


NASCE UMA ESTRELA COM ARY BARROSO

UpToDate - E como foi quando chegou a sua vez?

Elza - Ele chamou 'Elza Gomes da Conceição'. Eu não disse Elza Soares porque eu pensei que fossem descobrir lá em casa. Era inocência minha. Mas já tinha nascido o meu filho porque eu me casei com doze para treze anos. E o meu filho precisava de dinheiro, eu precisava muito de dinheiro. Depois dele me chamar, eu fui andando feito donzelinha para o palco. Então, quando eu subi no palco o auditório deu uma sonora gargalhada. Eram mais de mil pessoas presentes; aquilo na Rádio Tupi era o Maracanã dos auditórios.

Quando eu vi todo mundo rindo de mim... E o Ary Barroso ali parado no piano, ele puxou os óculos, ficou me olhando, não me chamava, não dizia nada, e eu parada... Eu fiquei esperando ele me chamar de 'minha filha', mas ele não disse. A coisa estava muito feia pra ele me chamar de filha. (risadas) Ele já me via como um ET. Então ele disse 'aproxime-se', assim duro e frio. E as pessoas rindo muito, mas eu nem aí, com aquela saia cheia de alfinetes e duas maria-chiquinhas no cabelo. Eu deveria ter uma foto porque realmente era uma coisa muito esquisita. Então fui me aproximando dele, deixando todos rirem muito, sem olhar para o auditório. Fiquei parada perto dele, olhando para ele.

UpToDate - Qual foi a reação dele?

Elza - Ele me disse 'o que é que você veio fazer aqui?' Eu disse 'ué, eu vim cantar'. 'Mas quem disse a você que você canta?', ele me perguntou. Eu disse, 'eu!'. Então ele me perguntou 'mas me diga uma coisa, de que planeta você veio?'. Ah, aquilo me feriu, aquilo bateu no ego.

UpToDate - E a platéia a essa altura?

Elza - Rindo muito às gargalhadas porque aquilo era muito cômico. Então eu disse a ele: 'Sr. Ary Barroso, eu estou vindo do planeta fome, do mesmo planeta seu'. Aí todas as pessoas no auditório ficaram quietas. Antes dele me perguntar os nomes dos autores, eu disse o nome deles.

UpToDate - O que é que você cantou?

Elza - Eu cantei 'Lama', mas eu não me lembro os nomes dos autores. E tinha um neguinho que ficava segurando um pau para soar o gongo. Então eu disse ao Ary para ele tirar aquele neguinho com aquele pau na mão porque ele não iria precisar usar aquilo, ele não iria me gongar.

Aí comecei a cantar mas, na metade da música, eu me lembrei do que eu aprendi a fazer com a lata d água (cantando com a voz roca e arranhada). E cantei a música inteira assim. O auditório, que a princípio estava rindo muito, parou. Ficaram quietos e depois começaram a aplaudir. Foi a primeira vez que eu senti uma sensação de ódio.

UpToDate - Mas ódio por que se eles riram e depois te aplaudiram?

Elza - Era uma sensação de hipocrisia, mas eu também não sabia explicar, porque eu era muito criança apenas com treze anos. Eu achei aquilo uma crueldade, meu filho estava entre a vida e a morte; eu mãe, sendo apenas uma criança, tentando ganhar aquele dinheiro. Mas eu fui aplaudida de pé e o povo gritava e delirava. Eu terminei de cantar deitada no peito do Ary Barroso. Ele não resistiu e me abraçou. Então ele disse, 'Senhoras e senhores, neste exato momento acaba de nascer uma estrela'.

Agora você imagina a minha inocência, eu fiquei olhando pra cima pra ver onde estava nascendo a tal da estrela. (risadas) Eu até queria perguntar pra ele de que estrela ele estava falando, mas eu estava chorando, me desmanchando em lágrimas. Então eu ganhei nota cinco, que era o máximo. Andei de taxi pela primeira vez na minha vida para pagar na outra quarta-feira.

UpToDate - Você ganhou dinheiro também?

Elza - Naquele dia eu só ganhei a nota cinco, o dinheiro eles pagaram na semana seguinte. Quando eu cheguei em casa, estava todo mundo me esperando na porta. E o motorista de taxi disse a eles que 'o Sr. Ary Barroso me pediu para trazer a menina porque ela é uma estrela'. Na semana seguinte, fui lá pegar o dinheiro, e aquela figura bonita (Ary Barroso) ficou sendo meu amigo por muitos anos. Ele estava presente em todos os primeiros shows da minha vida. Ele se sentia o tutor da Elza Soares.


RUMO À ARGENTINA

UpToDate - Foi logo depois disso que você conheceu a cantora Silvinha Telles e o famoso produtor Aluísio de Oliveiram, e começou a cantar na boite Texas, e partiu para o seu primeiro disco?

Elza - Houve um grande espaço porque, naquela época, cantar era considerado coisa de prostituta. E a família não permitia. As pessoas diziam 'somos pobres, mas somos honestos'. Eu dizia, 'eu hein, pobre com fome?' Eu nunca vi honestidade com fome. Eu pensava 'honestidade pra mim é barriga cheia'. Eu tive uma oportunidade e então eu fui para a Argentina e comecei cantando praticamente com o Astor Piazzola.

UpToDate - Mas, isso foi antes de você ter um público e gravar o seu primeiro disco?

Elza - Sim, isso foi em 1960. Eu tinha ido com a Mercedes Batista para a Argentina. Eu fiquei um ano na Argentina comendo sanduíche de pão com pão.

UpToDate - E como foi essa experiência na Argentina?

Elza - Foi linda porque eu conheci o Astor Piazzola, conheci o Roberto Ianez e grandes cantores estrangeiros. E eu era considerada um deles. Eles mal sabiam que eu estava morta de fome e com uma porção de filhos em casa pra sustentar. Eu cantava tango e bolero para sobreviver porque o nosso empresário tinha fugido com todo o dinheiro. Eu fiquei cantando na noite argentina até voltar para o Rio.


O PRIMEIRO GRANDE SUCESSO E O PRIMEIRO DISCO

UpToDate - Aí você voltou para o Rio e gravou o seu primeiro disco com o enorme sucesso de 'Se Acaso Você Chegasse', do Lupicínio Rodrigues.

Elza - Mas ninguém sabe que a primeira música que eu gravei foi uma versão de 'Mike Knife', em 78 rotações. Isso porque eles achavam que minha voz era muito americanizada. Depois gravamos 'Se Acaso Você Chegasse' e, a partir daí, comecei a trabalhar outras coisas da música brasileira.

UpToDate - Essa gravação foi antes do seu primeiro disco, em 1960?

Elza - Não, gravamos os dois juntos. Só que eles queriam explorar essa qualidade de voz de norte-americana. O nome do disco era 'Se Acaso Você Chegasse'.

UpToDate - Depois você veio morar em São Paulo.

Elza - Eu comecei a minha carreira praticamente em São Paulo.

UpToDate - Essa era a época auge da Bossa Nova com aquele primeiro Festival da Bossa Nova, no Teatro Record.

Elza - Eu fiz muitos shows ali no Teatro Record.

UpToDate - E você se apresentava também na lendária boite Oasis, em São Paulo.

Elza - Eu nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida. Eu ganhava muito dinheiro lá na Oasis, lá no centro velho de São Paulo. Sabe o que eu fazia com o dinheiro? Eu guardava na calcinha e prendia com alfinete. Sempre os alfinetes me perseguindo. Enquanto isso, a minha família ficava no Rio.


SÃO PAULO BOSSA NOVA

UpToDate - E como foi essa passagem por São Paulo?

Elza - Olha, eu amava São Paulo de paixão. Cidade grande... Eu fui morar no Lord Palace, numa suite, coisa que eu nunca tinha visto. Na porta da boite tinham filas pra me ver. Eu tinha de fazer dois shows por noite. Todo mundo queria conhecer aquela voz rouca. Uma noite no show, até jogaram um anel de brilhante no palco.

UpToDate - Como é que você estava no meio do auge da Bossa Nova, naquele começo dos anos 60? Inclusive o teu segundo disco chamava-se 'Bossa Negra' e o terceiro chamava-se 'Sambossa'.

Elza - Eu cheguei fazendo um movimento dentro da Bossa Nova e o Ronaldo Bôscoli achou que eu era a bossa negra. Ele dizia que eu fazia a diferença. O João Gilberto era muito meu amigo, e ia em casa tocar, até para me fazer dormir; e aquilo era muito lindo. Eu fazia parte da Bossa Nova, mas a situação foi até meio cruel porque eu fui 'fazer cortina' para a Bossa Nova. Num show que eles armaram, eles não tinham ninguém para 'fazer cortina' enquanto eles trocavam de roupa. Só que eu acabei roubando a cena.

UpToDate - E como eles reagiram quando viram que você estava roubando a cena?

Elza - Aí eles entraram e ficaram 'fazendo cortina' pra mim. (risadas)

UpToDate - Mas parece que você não se influenciou pela Bossa Nova?

Elza - Eu tenho meu estilo próprio. Mas eu gosto da Bossa Nova. Eu acho que foi um movimento bonito. E foi através da Bossa Nova que a música brasileira chegou aos Estados Unidos e no mundo todo. Era uma coisa estranha que todo mundo achava desafinada.

A Bossa Nova teve uma grande influência e importância na música brasileira, através do Antonio Carlos Jobim e do João Gilberto, e Agostinho dos Santos... Ela teve uma influência muito positiva. Mas, eu tenho o meu estilo. Hoje, quando alguém canta como a Elza Soares, eu fico contente.

UpToDate - E em 1965, você lançou outro enorme sucesso, que não tinha nada a ver com a Bossa Nova, que se chamava 'Mulata Assanhada'.

Elza - Sim, e que ficou no meio da Bossa Nova.


MULATA ASSANHADA & EDMUNDO

UpToDate - 'Mulata Assanhada' foi o teu maior sucesso junto com 'Se Acaso Você Chegasse'?

Elza - Olha, foi 'Mulata Assanhada', foi 'Beije-me' e 'Edmundo', que hoje é uma música que até serve para o Edmundo (o jogador de futebol brasileiro que joga no Fiorentina e foi reserva na Seleção Brasileira na Copa do Mundo da França).

Por falar nele, eu tenho uma paixão enorme pelo Edmundo, eu tenho um amor pelo Edmundo. Essa música que eu canto, 'Edmundo', é a cara dele. (cantando) / Edmundo nunca sabe bem o que faz / Ele é um sujeito distraído demais / Dizem que uma noite quando em casa chegou / Antes de ir pra cama fez tal confusão /

Quer dizer, a música tem tudo a ver com o Edmundo. Eu tenho até receio de cantar porque eu tenho medo de ofender o Edmundo, de tão atual que é a música.

UpToDate - Você o conhece pessoalmente?

Elza - Conheço. Eu acho ele uma gracinha. Sabe que o Edmundo é uma pessoa muito sensível. Ele tem aquele lado rebelde, que ele não se libertou e que é um lado criança, mas ele tem sensibilidade. Ele é um ser humano explosivo demais. Ele não se segura no momento da explosão. E a imprensa marca muito e acaba marginalizando ele.

UpToDate - Qual é o teu time?

Elza - Eu sou flamenguista e não desfaço de ninguém / Dentre cinco brasileiros, seis fãs do Flamengo tem /, já dizia o Jorge Ben Jor. Olha, eu sou carioca, nasci no Rio de Janeiro, mas hoje eu acho que eu sou brasileira e não tenho terra. Tanto faz São Paulo como o Rio, ou Minas Gerais.

UpToDate - Como você vê São Paulo e Rio de Janeiro?

Elza - O Rio de Janeiro e São Paulo são os dois lugares que aqueles que vêm de outros lugares tem de passar para fazer sucesso. Se não passar por aqui (São Paulo), não vai acontecer. É obrigatório. Nós temos esses dois pólos maravilhosos.


UMA BRASILEIRA NA ITÁLIA

UpToDate - Em 1967, você fez aquele show 'Elza de Todos os Sambas', e então, em 1970, você foi para a Itália se apresentar no Teatro Sistina.

Elza - E fui expulsa dele.

UpToDate - Expulsa?! Mesmo cantando 'Que Maravilha', do Ben Jor, e 'Máscara Negra' em italiano? Por que?

Elza - Eu não sei até hoje. Fomos expulsos eu e o Mané (Garrincha).

UpToDate - Mas os italianos te receberam bem?

Elza - Muito bem. Eu fiquei morando dois anos e meio na Itália. Eu fiz um programa de samba chamado 'Canta Giro'. Eu não vou dizer que nesses anos que eu passei fora do Brasil eu só conheci flores não. Eu conheci coisas amargas. É muita ilusão do brasileiro sair do Brasil e dizer 'eu sou e eu faço e aconteço'. Isso é mentira. Você passa muita necessidade. Você passa um frio horrível porque também falta calor humano que eles às vezes parecem não ter. Eles não abrem as portas para você. É preciso ser cara dura. Mas eu, como não tinha pretensão de morar lá, fiquei na minha.

UpToDate - Valeu a pena ter ficado na Itália? Você até gravou um disco lá intitulado 'Tributo a Martin Luther King', do Ronaldo Bôscoli e do Wilson Simonal. Como foi essa gravação?

Elza - Foi muito bonito. (cantando) / Sim sou negro de cor / Meu irmão de minha cor /. Mas eu tenho parentes lá, o Paulinho da Costa, que tocava comigo e com o Sérgio Mendes, quando ele chegou no Rio. Antes de fazer sucesso fora do Brasil, o Sérgio tinha um trio. Então eu recebi ele na minha casa na Itália. Mas eu também amo muito o Simonal e o Jair Rodrigues.


ANOS 70 - O TEATRO OPINIÃO - O EUGÊNIO C

UpToDate - Depois, quando você voltou da Itália, em 1972, você participou daqueles lendários shows no Teatro Opinião, no Rio de Janeiro. Uma época de grande efervescência cultural. Como foi aquela época?

Elza - O Teatro Opinião foi o local de todo acontecimento histórico musical. Todos os artistas hoje considerados grandes passaram pelo Teatro Opinião. O Zé Keti, Nara Leão, Maria Bethânia, todo mundo. E o meu primeiro grande show foi feito ali.

UpToDate - Quantas pessoas iam assistir os shows no Teatro Opinião?

Elza - O Teatro comportava na época quatrocentas pessoas. E ficavam de pé, quatrocentas pessoas.

UpToDate - E o nome do teu show era 'Elza em Dia de Graça'.

Elza - E eu raspei a cabeça para fazer esse show. Eu tenho ainda um poster do show em que eu apareço com a cabeça bem raspada com ferramentas e coisas de bronze. Tudo muito lindo, foi um show belíssimo.

UpToDate - Foi também mais ou menos nessa época que você fez uma temporada naquele famoso navio italiano, o Eugênio C. Quanto tempo você tocou lá?

Elza - Eu fiz uma tour. Eu fui para Acapulco, e levei o Mané (Garrincha) comigo, que não me deixava viajar sozinha; e voltei. Foi uma viagem muito bonita.

UpToDate - E no meio disso tudo, dava tempo de cuidar da família?

Elza - A família é a base de tudo. Se você não tem família, que base você tem? Teve muitas vezes que eu carregava meus filhos nas minhas viagens. Quando eu ficava em São Paulo, no Hotel Danúbio, tinha um garçom que se chamava Nicanor, que tomava conta dos meus filhos para que eles não chorassem e esquentava as mamadeiras na hora exata. Outro dia, eu fui almoçar num restaurante no bairro do Bixiga, e ele estava lá e me disse 'eu sou o Nicanor'. Eu senti um arrepio dos pés à cabeça.


EMBAIXATRIZ DO SAMBA

UpToDate - Você encontrou muita gente boa que entrou na tua sintonia.

Elza - Sim, muita gente boa como o próprio Juscelino (Kubstchek, Presidente do Brasil), que foi o meu grande amigo. Eu fui a primeira artista popular negra, e mulher, a receber a grande medalha Cruzeiro do Sul, que o Roberto Carlos também recebeu.

UpToDate - E você também recebeu o diploma de Embaixatriz do Samba, pelo Conselho de Música Popular Brasileira da Imagem e do Som, em 1972.

Elza - Sim, ganhei do Negrão de Lima, que na época era governador. Mas eu nunca revindiquei nada. Eu acho que cada um tem o seu caminho. Então são títulos que eu tenho guardados e acumulados, que eu tenho certeza que um dia tudo isso virá à tona.

UpToDate - De quem mais você tem boas lembranças?

Elza - Do João Goulart (Presidente brasileiro), que também foi uma pessoa muito importante para mim porque foi através dele que eu ganhei esse prêmio de embaixatriz do samba. E apesar de nós já nascermos fazendo política, eu não sei fazer política. Eu acho que não tem nada a ver comigo.

Quando eu voltei de fora, no começo dos anos 90, meio perdida no espaço, eu fui convidada para ser vereadora. Eu pensei que estivesse fazendo um grande bem, me candidatei e dei votos à beça para o cara, e eu mesma que seria eleita, acabei desistindo.


ANOS 80 / ROQUEIRA POR NATUREZA

UpToDate - Já que percorremos toda sua carreira praticamente até agora, eu gostaria de saber como foi a década de 80 para você?

Elza - Interessante que eu sempre tive a garotada do meu lado. Mas eu fui roqueira também. Eu trabalhei na badalada casa noturna paulistana Madame Satã com um show chamado 'A Vingança Será Maligna' com os Titãs, e o Branco Mello me entregando um troféu. Quando terminava o show eu entrava numa viatura da polícia, que saia tocando a sirene pelas ruas.

UpToDate - Você sempre teve um certo espírito roqueiro?

Elza - Sempre. O Lobão diz que a maior sambista roqueira se chama Elza Soares. Se você prestar atenção, o samba tem uma batida muito forte também. Não esse samba de agora, que é mais dolente. E o brasileiro não força isso. Mas eu acho que os brasileiros deveriam conhecer melhor esse país com as suas diversas influências musicais.

UpToDate - Eu acho que demos uma ótima passada pela tua carreira...

Elza - E que não deixa de ser uma trajetória, não é?

UpToDate - Sem dúvida, uma grande trajetória.


Walter de Silva


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