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Ensaios-->O Golpe contra a Realidade (1) -- 10/08/2002 - 10:30 (rodrigo guedes coelho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Golpe contra a Realidade (1)
Rosana Ulhôa Botelho*

Este trabalho é parte de uma pesquisa sobre os perigos que estiveram associados a crianças e adolescentes no século XX. Aqui focalizo certas tensões decorrentes das novas modalidades de comportamentos de jovens que, nos anos 1960, desafiavam valores instituídos e abriram espaço para práticas instituidoras de outra moral e de outros costumes. Retomá-las constitui uma oportunidade de interferir no debate sobre a juventude de nosso dias, explorando as possibilidades de recriação do legado que nos ficou dos “anos rebeldes”.

As apreensões suscitadas pelos movimentos da juventude nos anos 1960 assumiram múltiplas formas. Os efeitos desses movimentos dificilmente poderiam ser isolados e destacados de uma série de práticas que se tecem numa urdidura tensa e complexa. Todavia, é possível configurar certos momentos históricos a partir da correlação de forças que faz convergir os temores nascidos em diferentes âmbitos numa direção determinada. No Brasil, o Golpe de Estado de1964 foi um desses fatos polarizadores de tensões sociais, sendo que um pólo se impôs sobre o outro. O medo do comunismo, seguindo uma tradição de quase meio século, esteve associado ao medo da “perda da propriedade”, da “perda da liberdade”, da “dissolução da moral e dos bons costumes”, do “ateísmo”, dentre outros que a propaganda dos ideólogos do golpe evocava. As marchas da família com Deus pela liberdade, organizadas por setores da Igreja Católica, constituem uma demonstração eloqüente do tipo de convergência que se estabeleceu entre temores distintos, nivelados pela ameaça de um “inimigo insidioso” que poderia ser visto em quaisquer das manifestações menos enquadráveis nos modelos aprovados. Em tal conjuntura, os comportamentos de adolescentes e dos jovens de maneira geral chegaram a ser interpretados como mais uma das formas de manifestação da influência do “mal”.
Depois do golpe e da subseqüente repressão aos estudantes, artistas e intelectuais, houve um período de ressurgimento de manifestações de repúdio ao regime, inclusive na grande imprensa, que tivera papel de destaque na articulação da derrubada do governo João Goulart (Aquino:1999; Skidmore:1988). Uma efervescência cultural se fazia sentir no plano da música, do cinema e do teatro, sendo que as manifestações artísticas problematizavam a derrota política, repensando o país, a papel anteriormente atribuído aos intelectuais, as articulações feitas com a cultura popular e com a cultura de massas (Xavier:1993). Reinventavam-se tradições ao tempo em que “deglutiam-se” influências.
Numa outra direção, assistia-se ao incremento do mercado de bens voltados para o público adolescente, como os filmes estrelados por Roberto Carlos, os discos e os programas da chamada jovem guarda. Mas um leque de novas programações não deixava de dirigir-se ao segmento juvenil ampliado, trazendo as estrelas do momento para os auditórios, mostrando as diferentes manifestações musicais dos jovens, incluindo as transmissões dos festivais da canção popular.
Nessas circunstâncias, setores afinados com a nova ordem estabelecida não cessavam de lançar seus tentáculos sobre os grupos tradicionalmente vistos como passíveis de enquadramento normalizador, além de intentarem expandir seu poder de interferência na sociedade com ímpeto revigorado. A preocupação com as novas formas de expressão dos jovens e com a maneira pela qual assuntos tais como relacionamento entre casais, sexo e divórcio eram abordados na imprensa deu ensejo a algumas intervenções drásticas de juizes de menores do Rio de Janeiro e de São Paulo, como foi o caso do embargo de dois números da revista Realidade.
Na edição de novembro de 1966, Realidade celebrava o sucesso de rapazes e moças que estavam compondo e cantando “as coisas da vida, amor e liberdade” e que disputavam o gosto da juventude com o ié, ié, ié (ritmo associado aos Beatles e, no Brasil, ao grupo de cantores que se reunia no programa Jovem Guarda).O autor da reportagem, Narciso Kalili, definia a diferença entre os dois grupos de compositores em termos políticos e culturais: os jovens da MMPB (movimento de música popular brasileira) falavam “também dos problemas políticos, sociais e econômicos de seu tempo”, porque “eram universitários e possuíam informação”(2). A reportagem prosseguia traçando outras diferenças entre os dois grupos, que em termos musicais estariam ligados a tradições distintas: uma essencialmente vinculada à indústria de discos e outra à “música urbana nascida da imaginação popular”. O popular era, portanto, um valor a ser realçado na oposição ao industrial, ainda que os cantores deste estilo também estivessem obtendo sucesso na indústria do disco. Esta era uma forma de ver as coisas, uma percepção inclusive não partilhada por todos os integrantes do grupo do MMPB.
O artigo constituía, na verdade, uma tomada de posição num debate que articulava preferências na área da música a opções políticas e existenciais. Uma marca daqueles dias. Discutia-se os novos comportamentos entre os casais, a pílula anticoncepcional e o divórcio. Nesta mesma edição da Realidade, a pesquisa, o que os brasileiros pensam do divórcio, indicava, entre outros aspectos, uma aparente contradição: os velhos eram mais favoráveis ao divórcio que os jovens”. Num momento em que ocupavam a cena pública – enquanto estudantes em manifestações políticas, como artistas nos festivais de música ou nos programas de televisão e em outras formas de comportamento nas ruas das cidades – os jovens não poderiam deixar de ser inquiridos sobre os temas polêmicos do momento. E a revista, cujo projeto editorial apostava no interesse de seus leitores pela “realidade”, tinha divulgado, na edição de agosto, reportagem intitulada a juventude diante do sexo, cuja repercussão indicava o quanto o tema permanecia envolvido em tabus. Na edição de novembro, a seção cartas continuava trazendo as opiniões sobre a abordagem do tema, configurando uma polêmica entre os leitores que saudavam a iniciativa da revista e aqueles que a execravam. As cartas favoráveis à reportagem valorizavam-na, ressaltando sua fundamentação na “coleta de dados reais”, a utilidade das informações que veiculava e sua função esclarecedora, inclusive para os pais que tinham dificuldade em abordar o assunto com os filhos. Por outro lado, os detratores da pesquisa falavam em nome dos valores enraizados na tradição conservadora. O Sr. João Miguel, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, por exemplo, acusava os donos da revista de estarem “sacrificando os mais sagrados valores da civilização”. Um missivista que se identificou como “pai de quatro rapazes” expressava sua preocupação pelos filhos, pois não queria para nora “uma moça que já sabe demais”. Quaisquer que fossem as origens das cartas condenando a reportagem, elas constituíam sintoma de que o sexo ainda era tabu em muitos setores da população, principalmente no que se referia à sua prática entre jovens.
Dentre aqueles que publicamente se manifestaram contra a reportagem, estava o Juiz de Menores do Rio de Janeiro, Alberto Augusto Cavalcanti de Gusmão, que proibira a divulgação da segunda parte da pesquisa em número subseqüente da revista. Em resposta aos editores, que lhe remeteram as cartas de leitores contrários à sua medida, o Juiz de Menores enviava correspondência à redação da revista, mostrando a quantidade de manifestações de apoio que ele próprio havia recebido de associações católicas, e solicitando aos editores da revista a divulgação integral de sua decisão. Nela, o ato de proibição da segunda parte da pesquisa adquiria foros de algo solidamente fundado em preceitos jurídicos, como se pode ver pelos trechos selecionados a seguir: “A lei 2083 autorizando o Juiz de Menores a declarar o caráter obsceno de quaisquer publicações não fornece o conceito de obsceno. À falta de definição legal deve-se criar uma definição doutrinária, procurando atender aos fins sociais que a lei se dirige e às exigências do bem comum. (...) Acrescenta Nelson Hungria que ‘não é necessário que o ato represente uma expansão erótica ou vise à excitação da lascívia alheias’ (...)A condição indispensável para a configuração do ilícito está na publicidade, o que verificado, dá lugar ao surgimento do ultraje público do pudor ( art. 233 do C. P.) O conceito de obsceno, portanto, quer na lei penal quer na lei de imprensa (art. 53) não pode deixar de ser o mesmo. A sensibilidade humana é variável. Casos haverá em que se torna difícil afirmar que o sentimento médio de pudor foi atingido. É particularmente significativo que a lei tenha atribuído ao juiz de menores, e não a outro magistrado, a competência para declarar a obscenidade. Há neste fato, de maneira implícita, mas inteiramente desvelada, uma recomendação especial, um intuito pedagógico. O pronunciamento judicial, em jurisdição toda especializada, há de atender ao espírito que norteou o Código de Menores. É totalmente indispensável que o juiz tenha presente, ao decidir, aquelas circunstâncias que ‘façam temer influência prejudicial sobre o desenvolvimento moral, intelectual ou físico de menores e possam excitar-lhe perigosamente a fantasia, despertar instintos maus ou doentios, corromper pela força de suas sugestões’ (art. 128, p. 4º do Código de Menores). Parece evidente, em face desse raciocínio, que a lei, ao induzir à conceituação de obsceno, foi mais severa e colocou o conceito ao nível da minoridade. Já não seria possível dizer, com Nélso Hungria, que ‘obsceno é o que atrita com o sentimento médio de pudor ou os bons costumes’. A lei foi mais longe e colocou o julgador em guarda, também, contra o atentado pedagógico. Ora, firmado estes pressupostos, é evidente que a matéria publicada na revista Realidade de agosto corrente, sob o título “A juventude diante do sexo”, é de natureza obscena. (...)[grifos do autor].
O trecho é indicativo de que a função pedagógica atribuída à jurisdição de menores teve que ser realçada no argumento como uma forma de isentar a esfera jurídica de extrapolação no julgamento de valor. Nem mesmo o sentimento moral médio – uma das fórmulas consagradas pelo positivismo jurídico – funcionava com muito destaque no argumento do Juiz de Menores. Como ele o indicou, era “ particularmente significativo que a lei tenha atribuído ao juiz de menores, e não a outro magistrado, a competência para declarar a obscenidade.” De fato, caso a lei estivesse sob a alçada da justiça comum – com seu “clássico” formalismo jurídico – seria mais complicado proibir, de forma sumária, uma revista. Portanto, naquele contexto em que comportamentos inovadores podiam ainda se expressar e ser debatidos publicamente (depois do golpe de 1964, mas antes do AI-5), o Juiz de Menores ocupava novas funções estratégicas.
Em janeiro de 1967, novamente a revista Realidade foi objeto de embargo. Desta feita foi o Curador de Menores de São Paulo, Luiz Santana Pinto, que requeria ao Juiz de Menores a “imediata e sumária apreensão desta publicação, onde seja encontrada à venda nesta comarca”. Tratava-se da edição dedicada à mulher brasileira hoje, que estava nas bancas desde a madrugada de 30 de dezembro de 1966. O curador tinha sido ágil e expedira seu requerimento no mesmo dia. O Juiz de menores acolheu a sugestão e despachou ordem para que os serviços de vigilância e ronda especial apreendessem os exemplares, solicitando para isto a colaboração de Delegacia de Costumes(3). No dia seguinte, o Juiz de Menores da Guanabara, Cavalcanti de Gusmão, também determinava a apreensão dos exemplares da edição de janeiro. Os responsáveis pela revista recorreram da decisão. Seu advogado em São Paulo, logo em 3 de janeiro, impetrava mandado de segurança junto ao presidente do Tribunal de Justiça daquele estado. No Rio de Janeiro, outro advogado entrava com recurso na justiça carioca. Na edição de fevereiro, os leitores de Realidade puderam ver as razões apresentadas pelas partes envolvidas.
O despacho do Juiz de menores de São Paulo no Diário Oficial era sumário, dizendo que a publicação continha “algumas reportagens obscenas e profundamente ofensivas à dignidade e à honra da mulher, ferindo o pudor e, ao mesmo tempo, ofendendo a moral comum, com graves inconvenientes e incalculáveis prejuízos para a moral e os bons costumes”. Face a tal acusação, o advogado da revista em São Paulo julgava que o mandado de segurança era o instrumento mais adequado à defesa, pois o pronunciamento do juiz se fundara no artigo 53 da lei de imprensa, que “configura a hipótese de medida de caráter administrativo de autoridade judicial, contra a qual a lei não dá recurso, nem possibilita o pedido de correição visto que não há tumulto (Reg. Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo, art. 360)”. Na Guanabara, o juiz Cavalcanti de Gusmão não adotou o estilo lacônico de seu colega de São Paulo. Pelo contrário, lembrava que a revista voltava aos temas que haviam levado a pronunciamentos anteriores daquele juízo, e que, “fugindo ao propósito comum do periodismo no Brasil – informar corretamente, divulgar as coisas e as idéias dentro do panorama de nossos costumes, aceitando ou combatendo moderadamente nossos hábitos e nossas tradições – resolveu bem ao contrário, encetar uma campanha e realizar uma verdadeira revolução radical no terreno da moral familiar” [grifos meus]
Acusava a revista de não fazer apenas pesquisas, mas defender teses, exaltar a mãe solteira, combater a virgindade. Extrapolava a atribuição de obscenidade às reportagens, agregando a esta a acusação de “atentado aos bons costumes”, ato de “despotismo da imprensa livre”, que ministrava “em doses maciças de divulgação, uma doutrina moral que não foi acolhida pelos órgãos de soberania da nação – as casas legislativas – e por isto mesmo não estava nas leis”.
Por seu turno, o advogado da revista no Rio de Janeiro retomava ponto por ponto a acusação de Cavalcanti Gusmão. Tentava valer-se das “armas” do próprio acusador, fazendo voltar a lei de imprensa contra o juiz que falara em seu nome, argumentando que este extrapolara sua função de atribuir caráter obsceno à matéria, chegando a arbitrar acerca da moral e dos bons costumes. Na seqüência, sua argumentação trazia à tona encíclicas papais para mostrar que “a autoridade máxima” em assuntos de família e de moral olhava com tolerância as transformações do mundo. O apelo a documentos da Igreja tinha ainda o sentido estratégico de se apoiar na instituição cuja alta hierarquia se colocara ao lado do regime instaurado em 1964, inclusive promovendo as “marchas da família, com Deus pela liberdade”, um dos dispositivos de mobilização para a derrubada do governo de Jango. O advogado sustentava que a informação sobre a realidade era a única forma, inclusive, de proteger os jovens contra os perigos que se encontravam na própria realidade do mundo, dizendo: “REALIDADE não está pregando que as mulheres deixem de ser virgens, não está pregando que as mulheres devam se esquivar do casamento, não está pregando que as mães devam abandonar seus filhos, não está incutindo, por qualquer forma, que o amor filial desapareça ou diminua, ou que os laços de família se afrouxem. Mostra as experiências de muitas mulheres a respeito desses aspectos de desagregação da família, para que todas que se encontram à beira do perigo, evitem dar o passo fatal”[grifos meus].
A defesa, portanto, fincava seus argumentos no terreno em que se movia a acusação, nos aspectos legais, mas também no que dizia respeito aos valores que eram acionados. E os dois lados – acusação e defesa – não deixavam de recorrer a uma tríade consagrada: a lei, a moral e a ciência. Entretanto, divergiam acerca do conteúdo, da forma e da maneira de funcionar de cada uma delas. Assim, face à acusação de infração da lei da imprensa pela revista, seu advogado revidava alegando abuso do poder pelo juiz; face à proibição da reportagem em nome da defesa da moral e dos bons costumes, sustentava que o acesso à informação era a via capaz de evitar o “passo fatal”; face à delimitação de um lugar estrito para a informação científica, exaltava a divulgação da ciência no espaço público da imprensa. O interessante a observar quanto ao uso da tríade consagrada é que, num momento dito de “recesso” da cidadania, portarias e despachos de ministros terminavam adquirindo o estatuto de lei. Assim, em 28 de agosto de 1964, o Ministro da Justiça tinha determinado o reforço da atuação dos juizes de menores no setor de diversões públicas, autorizando-os a suspendê-los liminarmente(4). Por seu turno, os guardiães da moral instituída aliavam-se no acatamento às leis de exceção na tentativa de impedir que comportamentos instituidores de outra moral pudessem se impor e legitimar-se com o respaldo da formação de uma imaginação pública que lhe desse um sentido instituinte. Assim, na batalha de idéias que se travava, a revista Realidade usava o recurso da autoridade da ciência, argumentando que a própria Igreja Católica curvava-se ao poder temporal da ciência, afirmando, num de seus documentos: “A perturbação atual dos espíritos e a mudança das condições de vida estão vinculadas a uma transformação mais ampla das coisas. Esta faz com que as ciências matemáticas e naturais ou as que tratam do próprio homem adquiram preponderância crescente na formação do pensamento, enquanto as artes técnicas, derivadas daquelas ciências, influenciam na ordem da ação. Este espírito científico produz um sistema cultural e modos de pensamento diferentes dos anteriores. A técnica progride a ponto de transformar a face da terra e já tenta subjugar o espaço interplanetário. A inteligência humana dilata de certa maneira o seu domínio também sobre o tempo. Sobre o passado, pelo conhecimento histórico. Sobre o futuro pela arte prospéctica e pela planificação. O progresso das ciências biológicas, psicológicas e sociais não só contribui para que o homem tenha um conhecimento melhor de si mesmo, mas também ajuda a influenciar diretamente na vida da sociedade, usando métodos técnicos. Ao mesmo tempo, o gênero humano prevê e cada vez mais regula o próprio crescimento demográfico” [grifos meus].(5)
Na era do expert, os “doutos em ciência” vinham a ser os profissionais das diversas áreas especializadas que os cursos universitários estavam formando, em número crescente. Numa conjuntura onde o autoritarismo se radicalizara e os comportamentos inovadores eram “patrulhados” por segmentos que se colocavam a tarefa de erradicar o “mal”, valer-se da opinião dos profissionais da Sociologia, da Psicologia, da Medicina, entre outros, era também uma forma de lutar contra este patrulhamento. Os especialistas também compunham equipes encarregadas de enquetes sobre gostos e comportamentos, que alimentavam não só a imprensa, mas a indústria. As pesquisas de opinião, procurando distinguir as diferenças de comportamento em termos de uma estratificação “social” composta de três classes, “alta, média e baixa” (retraduzidas às vezes nas três primeiras letras do alfabeto), alimentavam (como vêm alimentando até hoje) os debates, reforçando ainda o valor da estatística como medida da “realidade”. Fundamentada em pesquisa desse tipo, a revista Fatos e Fotos de janeiro de 1968 veiculava reportagem cujo título era A mãe moderna não pode ser quadrada. Os dados permitiam ao repórter concluir que “entre as mães cariocas de classe média, não se sente grandes variações na maneira de educar, quer elas morem na Zona Sul ou na zona Norte, quer trabalhem fora ou não”. A diferença residia na idade: as mais novas, de 20 a 30 anos, rejeitavam os padrões através dos quais foram educadas e consideravam que a tarefa de educar filhos deveria ser dividida com os pais; as mais velhas, entendiam que a educação era “um problema mais próximo da mãe” e não eram tão críticas face à educação que elas próprias haviam recebido, embora considerassem necessária uma atualização.
O que vinha a ser considerado uma mãe moderna? A socióloga convocada pela reportagem dizia:“mãe moderna é aquela que procura orientar os filhos de acordo com as exigências da sociedade moderna e com os próprios valores morais que ela aceita. Certos valores estão sendo criticados, isto é, podem ser aceitos ou não, dependendo da formação da mãe e da educação que ela der aos filhos desde pequenos. Mas a mãe de hoje é sobretudo aquela que prepara os filhos para assumirem a maior liberdade possível em todos os setores da vida social. E liberdade é algo consciente, que inclui, necessariamente, a noção de responsabilidade para consigo própria e com a sociedade”.(6)
Era também aquela que estava “sempre preocupada e quase sempre incerta sobre o que deve[ria] fazer”, entre a “liberdade sem medo” e a “liberdade sem excesso”.(7) As incertezas, portanto, giravam em torno dos limites e da extensão da liberdade, o que implicava em decidir quando, como e relativamente a quê os filhos poderiam ter suas próprias escolhas. “Desenvolver a iniciativa, a independência e as próprias opções é recomendável de modo gradual, mas não sem diálogo, nem com a abdicação do papel e das responsabilidades da mãe”, afirmava um psicólogo.(8) Se a maioria das mães podia concordar que as crianças deveriam ter liberdade de escolha em certos itens – brinquedos, amigos, divertimento –, as dúvidas poderiam ser muitas quanto, por exemplo, ao horário de dormir ou ao que fazer com a mesada. Quanto aos adolescentes, também havia concordância entre as mães sobre a possibilidade de escolha de itens tais como amigos, maneiras de se vestir, cursos e colégios, mas as meninas ainda eram objeto de preocupação especial e “a mini-saia e o biquíni ainda [eram] casos para muitas discussões e lágrimas, principalmente na Zona Norte”.(9)
O foco das angústias e incertezas das mães era a liberdade sexual, principalmente no que dizia respeito às meninas. Segundo a reportagem, “mesmo as mães mais compreensivas em outras questões se revelam unânimes em considerar que ‘a sociedade brasileira ainda não está preparada para permitir liberdade sexual à mulher’”. Liberdade e felicidade deveriam caminhar juntas, de maneira que a felicidade dos filhos não fosse a alternativa à infelicidade dos pais. Caberia então às mães, no entender de uma “escritora de 30 anos”, não identificada pela revista, “defender em pé de igualdade” a sua felicidade e a de seus filhos.
Enfim, o vínculo experimental(10) que a nova geração mantinha com o presente fazia emergir comportamentos inovadores, bem como reações adversas nos que se atribuíam a missão de zelar pela “moral e os bons costumes”, como certos Juízes de Menores. Assim, em 1968, ano que emblematizou a “insurgência juvenil”, os Juízes de Menores se reuniram em Brasília no seu III Encontro Nacional. E, num momento de intensa agitação estudantil, em que mesmo os secundaristas (menores, portanto) eram trancafiados nos porões da repressão, os juizes se alongavam em infindáveis discussões em torno de um projeto de Código de Menores que focalizava sobremaneira a questão dos adolescentes em “perigo moral”, reforçando o poder dos juizes de menores para intervir nos bares, casas noturnas e publicações.
Por seu turno, muitos pais, assustados com o comportamento dos filhos, especialmente das garotas – que se igualavam aos jovens do sexo masculino, fumando, bebendo e mantendo relações sexuais com seus namorados – corriam aos Juizados de Menores na esperança de que ali encontrassem apoio para a normalização dos filhos “ingovernáveis”. Alguns desses jovens chegaram a ser trancafiados nos internatos mantidos ou patrocinados pela Fundação Nacional do Bem Estar do Menor - Funabem, onde adolescentes em “perigo moral” conviviam com “infratores” e ”portadores de condutas anti-sociais” em experiências que dificilmente poderiam ser chamadas de educativas.
A pesquisa nos arquivos da atual Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal nos permitiu localizar, entre outros aspectos, os focos de tensão que se expressaram como choque geracional ou confronto de valores no transcurso de três décadas (de 1960 a 1990), identificando os deslocamentos ocorridos em relação a tais focos. Nesta exposição, restrita a certos episódios ocorridos nos anos 1960, procuramos captar um momento em que as transformações nos costumes associadas ao comportamento da nova geração foram abordadas como “desvios” face à normalidade ou “atentados” aos poderes vigentes. Momentos como esse são vividos de forma tensa e contraditória por moças e rapazes ainda na adolescência, e também por homens e mulheres assustados com as experiências de seus filhos, em campos anteriormente reservados aos adultos, quando não mais podem se fiar na tradição, mas ainda desconfiam da validade das mudanças em curso. Fato é que muitos vieram a construir suas vidas apoiados na experiência vivida, enquanto outros provavelmente sucumbiram. Contudo, o legado da geração que se vinculou ao mundo dessa maneira experimental foi a criação de práticas instituidoras de novas formas de liberdade e, portanto, de novos encargos e responsabilidades. Face às tensões de hoje e ao retorno da discussão sobre a responsabilidade, a memória dos anos rebeldes pode funcionar como um legado para os que assumem o compromisso e a responsabilidade de passar para os que vieram depois de nós a força da tradição não conformista.

Notas de referência
(1) Trabalho apresentado na mesa redonda “Juventude, Sociedade e Transformações Históricas” integrante da programação do XXI Simpósio Nacional de História organizado pela ANPUH em Niterói, em julho de 2001. Constitui síntese de um capítulo de minha tese de doutorado intitulada SOB O SIGNO DO PERIGO: O ESTATUTO DOS JOVENS NO SÉCULO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Brasília: Departamento de História da UnB, 2000.
(2) “A Nova Escola do Samba”, reportagem de Narciso Kalili, Revista Realidade, novembro de 1966, p. 117. Na capa, a revista trazia foto de alguns representantes da nova geração de cantores de música, como Nara Leão, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Toquinho, “Magro”(do MPB4) e Rubinho(do Zimbo Trio). No interior, uma grande reportagem sobre os representantes da “nova escola do samba”, todos jovens, entre 18 e 25 anos, que adquiriam expressão pública nos festivais de música brasileira.
(3) Cf. “A Edição Proibida: acusação e defesa”, reportagem que integrava a edição de fevereiro de 1967 da revista Realidade. A reportagem informava que o despacho de 30 de dezembro, atribuído ao Juiz de Menores, não estava assinado por ele. Contudo, no dia seguinte, o Diário Oficial de São Paulo publicava a decisão do Juiz de Menores da capital paulista, Sr. Artur de Oliveira Costa. Cf. p. 6.
(4) Conferir em Anais do III Encontro Nacional de Juizes de Menores. Brasília, Serviço Gráfico do Senado Federal, 1968, p. 71.
(5) O advogado João de Oliveira filho, na defesa da revista Realidade junto à justiça carioca, disse ser este um trecho da encíclica papal Gaudium et Spes.
(6) Segundo a reportagem, estas eram as palavras da socióloga Leda Barreto.
(7) Fazia-se menção ao livro de A S. Neill, famoso por ter criado uma escola regida pela democracia – Summerhill – onde as regras, as atividades e os conteúdos eram discutidos e estabelecidos pelos próprios alunos. Cf. Neill, A S. Liberdade sem medo. 12ª edição, São Paulo: Ibrasa, 1971.
(8) Estas eram as palavras, segundo a revista, do psicólogo Eliézer Shneider.
(9) A minissaia foi lançada em 1967, pela figurinista inglesa, Mary Quant. Durante um certo tempo o termo vinha separado com hífen, como na reportagem. O “dicionário do Aurélio” o coloca sem hífen, minissaia.
(10) Conferir o sentido do termo em Marialice Forachi. A Juventude na Sociedade Moderna. São Paulo: Pioneira, 1972.

Bibliografia
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988.
BOTELHO, Rosana Ulhôa. Sob o Signo do Perigo: o estatuto dos jovens no século da criança e do adolescente. Brasília, Departamento de História da UnB, 2000 (tese de doutorado).

BRITO, Eleonora e BOTELHO, Rosana Ulhôa. Juventude e Marginalização no DF. Relatório de Pesquisa. Brasília: UniCEUB, 1997.
BRITO, Sulamita (org). Sociologia da Juventude, Vols. I, II, II, IV. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
BRITO, Lemos. As Leis de Menores no Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola de Preservação 15 de Novembro, 1929.
FORACCHI, Marialice. A Juventude na Sociedade Moderna. São Paulo: Pioneira, 1972.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1972.
GIOVANNI & SMITH (orgs.) História dos Jovens, vol 2, São Paulo: Cia das Letras, 1992.
PIAGET, Jean. O Juízo Moral na Criança. São Paulo: Summus, 1994.
XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.

* Professora de História de Contemporânea

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