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COLEÇÃO ARCO DO TEMPO Consultoria de Alzira
M. Cohen
MEDITAÇÃO - Pam e Gordon Smith
VOLTA AO LAR - John Bradshaw
A CRIAÇÃO DO AMOR - John Bradshaw
QUÍRON E A JORNADA EM BUSCA DA CURA - Melanie Reinhart
PAZ A CADA PASSO - Thich Nhat Hanh
VIVENDO BUDA, VIVENDO CRISTO - Thich Nhat Hanh
O NOVO DESPERTAR DA DEUSA - Org. Shirley Nicholson, vários
autores
AS PLANTAS E SUA MAGIA -Jacques Brosse & 39;
ANJOS E EXTRATERRESTRES - Keith Thompson
A MENTE HOLOTRÓPICA - Stanislav Grof
MULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS - Clarissa Pinkola Estes
AS CARTAS DO CAMINHO SAGRADO - Jamie Sarns
PLANETAS DE SOMBRA E DE LUZ - Irene Andrieu
JOGOS EXTREMOS DO ESPÍRITO - Mimiz Sodré
MÍSTICA E ESPIRITUALIDADE - Leonardo Boffe Frei Betlo
CORPO SEM IDADE, MENTE SEM FRONTEIRAS - Deepak Chopra
O CAMINHO DO MAGO - Deepak Chopra
DIGESTÃO PERFEITA - Deepak Chopra
ENERGIA ILIMITADA - Deepak Chopra
DOMINANDO O VÍCIO - Deepak Chopra
SONO TRANQUILO - Deepak Chopra
PESO PERFEITO - Deepak Chopra
AS VIDAS DE CHICO XAVIER - Mareei Souto Maior
O LIVRO DO PERDÃO - Robin Casarjian
MENSAGEM DO OUTRO LADO DO MUNDO - Marlo Morgan
UM MUNDO ESPERANDO PARA NASCER - M. Scott Peck
O VALOR DA MULHER - Marianne Williamson
A CURA E A MENTE - BUI Moyers
RUMO AO PONTO ÔMEGA - Kenneth Ring
CURA ESPONTÂNEA -Andrew Weil
SAÚDE IDEAL EM 8 SEMANAS - Andrew Weil
DONS DA GRAÇA - Lone Jensen
SEDE DE PLENITUDE - Christina Grof
PORTAIS SECRETOS - Nilton Bonder
REIKJ - Brigitte Miiller & Horst H. Gimther
MILAGRES DO DIA A DIA - David Spangler
A SABEDORIA DO PAPA - Matthew E. Bunson (compilação)
CESTAS SAGRADAS - Phil Jackson & Hugh Delehanty
ESPERANÇA DIANTE DA MORTE - Christine Longaker
A SABEDORIA DO CORPO - Sherwin B. Nuland
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O ESPÍRITO DE TONY DE MELLO - John Callanan. S.J.
SEU SEXTO SENTIDO - Bellerulh Naparstek
FENG SHUI - Maria Margarida Baldanzi
REFUGIO PARA O ESPÍRITO - / ictoria Moran
D E E P A K C H O P R A
0 CAMINHO
DO
MAGO
Vinte lições espirituais
para você criar a vida
que deseja
Tradução de CLÁUDIA GERPE DUARTE
Rocco
Rio de Janeiro- 1999
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Titulo original
THE WAY OF THE WIZARD
Twenty spiritual lessons for
creating the life you want
Copyright © 1995 by Deepak Chopra, M.D.
Esta tradução foi publicada com a autorização da Harmony
Books, a division of Crown Publishers, Inc., New York
Direitos mundiais para a língua portuguesa
reservados com exclusividade à
EDITORA ROCCO LTDA. Rua Rodrigo Silva,
26 — 5- andar 20011-040 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: 507-2000 - Fax: 507-2244
Prínted in /íraz/7/Impresso no Brasil
preparação de originais ELISABETH
LISSOVSKY
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional
dos Editores de Livros, RJ.
M47
6c
Chopra, Deepak
O caminho do mago : vinte
criar a vida que deseja / Deepak
Cláudia Gerpe Duarte. — Rio de
(Arco do Tempo)
Consultoria da coleção:
TraduAçlzãior ad eM: .T Choeh wenay of the
lewssioznarsd f o: rt wcreenattyin sgp itrhiteu laifl e you
wa1n. tV ida espiritual. 2.
TíEtuxleor. cícios espirituais. I.
CDD - 242
96-
0999
CDU - 242
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de expressar meu amor e minha gratidão às seguintes
pessoas:
Em primeiro lugar a meu velho amigo, guia e editor, Peter
Guzzardi. Peter, você é o máximo!
E a minha família na Harmony Books, Shaye Areheart, Patty
Eddy, Tina Constable, Leslie Meredith, Chip Gibson e Michelle
Sidrane.
Rita Chopra, Mallika Chopra e Gautama Chopra por serem a
expressão viva dos princípios deste livro.
A todos os meus amigos na Corte de Milagres (Infinite
Possibilities International), Ray Chambers, Gayle Rose, Adrianna
Nienow, David Simon, George Harrison, Olívia Harrison,Naomi Judd,
Demi Moore, Alice Walton, Donna Karan, Irmã Judian Breitenbach,
Lewis Katz, Olivia Newton-John e BilIElkus por sua coragem e
envolvimento com uma visão que está além de todas as limitações.
Roger Gabriel, Brent Becvar, Rose Bueno-Murphy e a toda minha
equipe no Sharp Center for Mind-Body Medicine por servirem de
inspiração a todos os nossos hóspedes e pacientes.
Deepak Singh, Geeta Singh e a toda minha equipe na Quantum
Publications por sua infatigável energia e dedicação.
Muriel Nellis por sua intenção inflexível de manter o mais
elevado nível de integridade em todos os nossos empreendimentos.
6
Richard Perl por ser um exemplo tão magnífico de recomendação
pessoal.
Arielle Ford por sua fé inabalável no autoconhecimento, seu
entusiasmo contagiante e seu compromisso de transformar a vida de
um número tão grande de pessoas.
E Janet Stein, Linda Grey, Lynda Guber, Suzanne Todd e Charles
Weingarten por sua calorosa amizade.
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P R I M E I R A P A R T E
PENETRANDO O
MUNDO DO MAGO
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As pessoas querem saber por que motivo eu, que nasci na índia,
tenho tanto interesse por magos. Eis a minha resposta: na índia
ainda acreditamos na existência de magos. O que é um mago? Não é
alguém que simplesmente pode fazer mágicas, mas alguém capaz de
causar transformações.
Um mago pode transformar o medo em alegria, a frustração
em realização.
Um mago pode transformar o temporal no intemporal.
O mago pode levá-lo além das limitações em direção ao
ilimitado.
Durante minha infância na índia, eu sabia que tudo isso era
verdade. Às vezes homens velhos vestindo trajes brancos e sandálias
vinham até nossa casa, e até mesmo para um menino de olhar
arregalado eles pareciam criaturas muito especiais. Sua paz era
completa; eles emanavam amor e alegria; os altos e baixos agitados
da vida cotidiana não pareciam afetá-los. Nós os chamávamos de
gurus ou conselheiros espirituais. Mas levei muito tempo para
perceber que os gurus e os magos são a mesma coisa. Toda
sociedade tem seus mestres, videntes e curadores; guru era apenas a
palavra que usávamos para designar aqueles que possuíam
sabedoria espiritual.
No ocidente, o mago é basicamente considerado um mágico que
pratica a alquimia, transformando metais não preciosos em ouro. A
alquimia também existe na índia (na verdade, ela foi
9
inventada lá), mas a palavra alquimia é na realidade um código. Ela
é um símbolo para a transformação dos seres humanos em ouro,
para a transformação das nossas qualidades inferiores de medo,
ignorância, ódio e vergonha naquilo que existe de mais precioso:
amor e realização. Portanto, um mestre que consiga ensinar-lhe
como se transformar numa pessoa livre e amorosa é, por definição,
um alquimista — e sempre o foi.
Ao ingressar na escola secundária em Nova Deli, eu já sabia
muitas coisas a respeito do mais famoso mago da tradição ocidental,
Merlim. Como todo mundo, eu me apaixonei imediatamente por ele.
Logo todo o mundo dele se abriu. Ainda sei de cor dezenas de
estrofes do poema épico de Tennyson, Idylls of the King, que nos
faziam decorar naquela época nos longos e quentes dias de aula.
Devorei todas as outras fontes de literatura arturiana a que consegui
ter acesso. Não me parecia estranho saber tudo a respeito do suave
e pálido Camelot embora eu vivesse debaixo de um ardente sol
tropical, que eu quisesse cavalgar como Lancelot, embora eu
certamente tivesse sufocado na armadura, ou que a gruta de cristal
de Merlim realmente existisse, embora todos os autores garantissem
que os magos eram figuras míticas.
Eu sabia que essa afirmação não era verdadeira, porque eu era
um menino indiano e havia estado com eles.
POR QUE PRECISAMOS DOS MAGOS
Venho pensando há trinta anos sobre o conhecimento do mago.
Viajei para Glastonbury e para o West Country, escalei o Tor e vi a
montanha onde Artur e seus cavaleiros estão supostamente
adormecidos. Mas algo mais místico, a necessidade de transformação,
continua a me puxar de volta para a magia. Em cada ano eu
sentia que nossa época precisa mais do que nunca desse
conhecimento. Agora que sou adulto, passo minhas horas de
trabalho falando e escrevendo a respeito de como podemos alcançar
uma completa liberdade e realização. Só percebi recentemente que
na verdade estou falando sobre alquimia.
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Cheguei finalmente à conclusão de que uma maneira estimulante
de abordar esse tópico seria através de um dos relacionamentos mais
extraordinários já registrados, ou seja, aquele entre Merlim e o
menino Artur na gruta de cristal. Neste livro, a gruta de cristal é um
lugar privilegiado dentro do coração humano. É o refúgio de
segurança onde uma voz sábia não conhece o medo, onde o turbilhão
do mundo exterior não consegue penetrar. Sempre existiu e sempre
existirá um mago na gruta de cristal — tudo que você tem a fazer é
entrar e escutar.
As pessoas de hoje vivem no mundo do mago tanto quanto as
antigas gerações. Joseph Campbell, o grande mestre da mitologia,
afirmou que qualquer pessoa que esteja numa esquina esperando o
sinal abrir está esperando para ingressar no mundo de feitos
heróicos e ações míticas. Nós simplesmente não percebemos a
oportunidade que se nos apresenta. Atravessamos a rua sem
perceber a espada cravada na pedra sobre o meio-fio.
A jornada em direção ao milagroso principia aqui. O melhor
momento para começar é agora. O caminho do mago não existe no
tempo — ele está simultaneamente em todos os lugares e em lugar
nenhum. Ele pertence a todos e a ninguém. Portanto, este é um livro
que o ensina a recuperar o que já é seu. Como diz a primeira frase
da primeira lição:
Existe um mago dentro de cada um de nós. Esse mago
tudo vê e tudo sabe.
Esta é a única frase do livro que você terá que aceitar como um
axioma. Assim que você descobrir o mago interior, o ensinamento
prosseguirá por si mesmo. Durante muitos anos esse tipo de
aprendizado espontâneo tem sido o centro da minha vida cotidiana,
no qual eu observo e espero o que o guia interior tem a dizer.
Nenhum outro tipo de aprendizado é tão fascinante. Já ouvi Merlim
falar num riso que escutei por acaso no aeroporto, nas árvores
sussurrantes durante um passeio pela praia, até mesmo na minha
televisão. Uma estação rodoviária pode se transformar na gruta de
cristal se você estiver receptivo.
Por que precisamos do caminho do mago? Precisamos dele para
poder abandonar o trivial e o monótono e avançar em
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direção ao tipo de significado que temos a tendência de relegar ao
mito mas que, na verdade, está bem ao nosso alcance, aqui e agora.
Estar vivo significa conquistar o direito de dizer tudo que quisermos,
ser quem quisermos e fazer o que quisermos. Camelot foi um
símbolo desse tipo de liberdade. É por isso que o contemplamos com
tanta avidez e admiração. A vida tem sido difícil a partir de então.
Um discípulo procurou certa vez um grande mestre e perguntou:
"Por que me sinto tão contido por dentro, como se eu quisesse
gritar?" O mestre olhou para ele e respondeu: "Porque todo mundo
se sente assim."
Todos queremos expandir nosso amor e nossa criatividade,
explorar nossa natureza espiritual, mas com frequência não
alcançamos nosso objetivo. Nós nos trancamos em nossas prisões
particulares. Algumas pessoas, contudo, conseguiram se libertar dos
confins que tornam a vida tão limitada. Ouçamos o poeta persa
Rumi, que diz: "Você é o espírito incondicionado preso nas
condições, como o sol num eclipse."
Essa é a voz de um mago, que não aceita que os seres humanos
estejam limitados no tempo e no espaço. Estamos apenas
temporariamente num eclipse. O objetivo de aprendermos com um
mago é encontrar o mago interior. Ao encontrar o guia interior, você
encontra a si mesmo. O eu é o sol que brilha eternamente, mas que
pode estar passando por um eclipse; tão logo desaparecem as
sombras, o sol simplesmente volta a resplandecer em toda a sua
glória.
COMO APRENDER COM O MAGO
Este livro contém vinte lições, cada uma narrada a partir do ponto
de vista do mago. No início de cada uma você vai encontrar alguns
aforismos, fragmentos penetrantes da sabedoria do mago que se
destinam a ajudá-lo a transcender a realidade ordinária. Leia cada
um deles e deixe que ele cale em seu espírito. Não fique esperando
um resultado, permita-se apenas passar pela experiência. Você não
precisa trabalhar nem se
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esforçar. Esforçar-se é como debater-se para sair da areia movediça
— só faz com que você afunde mais ainda.
O mago interior deseja falar, e isso é verdade para todos nós. Mas
o mago precisa de uma chance, de uma abertura. A semelhança dos
koans Zen, os aforismos fornecem essa abertura por provocarem
uma mudança na percepção, capaz de produzir uma mudança na
realidade pessoal.
A voz do mago precisa ser trazida de volta para a vida cotidiana.
Já citei a primeira sentença da primeira lição: Existe um mago
dentro de cada um de nós. Esse mago tudo vê e tudo sabe. Eis o
restante da lição:
< O mago está além dos opostos da luz e das trevas, do bem e
do mal, do prazer e da dor.
Tudo que o mago vê tem suas raízes no mundo
invisível.
A natureza reflete o estado de alma do mago.
O corpo e a mente podem adormecer, mas o mago
está sempre desperto.
O mago possui o segredo da imortalidade
Se essas palavras o fazem vibrar levemente, lhe dão um arrepio
de reconhecimento, elas cumpriram seu propósito. É de fato
emocionante descobrir que não somos seres limitados e sim filhos do
milagroso. Essa é a verdade, o fato único e profundo a respeito de
cada um de nós que tem estado encoberto por um tempo
excessivamente longo.
Reuni cerca de cem desses provérbios, que são ilustrados por
histórias do mundo de Merlim e Artur. Não são fragmentos das
antigas lendas e sim parábolas que inseri naquela época. Às vezes a
história ilustrativa não parece se encaixar exatamente, ou com
perfeita lógica, nos aforismos. Isso fói feito deliberadamente, porque
a mente linear, que tem a necessidade de criar a ordem, não é a
única parte do seu ser que vai percorrer o caminho do mago. Você
vai percorrê-lo na imaginação, na esperança, na criatividade e no
amor.
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Em resumo, o caminho do mago é o caminho do espírito. Mas ele
não é espiritualmente oposto à racionalidade; ele é a estrutura mais
ampla na qual a razão se encaixa, uma peça entre muitas. Para
dirigir-me à mente linear, incluí uma seção chamada
"Compreendendo a Lição", que serve de base aos aforismos e às
histórias. Cada lição se encerra com a seção "Vivendo com a Lição",
na qual eu o ajudo a deixar que a sabedoria do mago embrenhe-se na
sua experiência pessoal.
"Vivendo com a Lição" é a parte ativa do caminho do mago.
Minhas sugestões são simplesmente um início, uma maneira de
desencadear sua participação. Em última análise, o que vai modificar
sua realidade é o seu entendimento. "Vivendo com a Lição" contém
alguns exercícios que podem parecer passivos porque quase todos
são experiências de pensamento.
O que é uma experiência de pensamento? É uma forma de
conduzir sua mente a novos lugares, de fazer com que ela veja as
coisas de uma maneira diferente. Os magos tinham consciência de
algo profundo e importante — se você quiser mudar o mundo, mude
sua atitude diante dele. Einstein certa vez deitou-se num sofá, fechou
os olhos e viu um homem viajando à velocidade da luz. Aprofundando
essa imagem intrigante, ele começou a realizar várias experiências
de pensamento, aparentemente meras especulações sem sentido.
Após alguns anos, contudo, a atitude do mundo científico iria se
transformar quando a própria natureza confirmou as visões
transcendentes de Einstein.
Se uma fantasia no sofá é capaz de alterar o mundo, é porque as
experiências de pensamento devem encerrar dentro de si um
tremendo poder. Nada é verdadeiramente aprendido enquanto não é
vivido. A razão, a experiência, o espírito — quando estes se reúnem,
o caminho do mago está aberto, o terreno para a alquimia está
preparado. A sabedoria em seu interior é como uma centelha que,
uma vez acesa, nunca pode se extinguir.
Para consolidar tudo isso, sugiro a seguinte abordagem:
1. Sente-se tranquilamente por um momento antes de ler qualquer
lição.
2. Leia os aforismos e depois sente-se durante alguns minutos
para absorvê-los. Releia-os sempre que desejar. Dê a
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si mesmo a oportunidade de sentir suas reações e insights
— estes são com frequência as coisas mais valiosas que
você pode receber.
3. Prossiga e leia o resto do conteúdo da lição: a história de
Merlim e Artur, a seção chamada "Compreendendo a Lição", e
a seção chamada "Vivendo com a Lição".
4. Se "Vivendo com a Lição" contiver um exercício prático
— a maioria contém — dê um tempo a si mesmo para fazer
o exercício. É proveitoso repeti-lo várias vezes durante o
dia se você quiser alcançar a experiência completa.
Releia cada lição quantas vezes quiser; viva com ela durante um
dia ou uma semana. Não existe um tempo programado para esse
processo. Quero apenas advertir que você deve viver com cada lição
pelo menos durante um dia, em vez de se apressar para absorver
coisas demais de uma só vez.
AS SETE ETAPAS DA ALQUIMIA
A Terceira Parte deste livro lida com os estágios de transformação
através dos quais o mago guia seu discípulo. Eu os chamo de as sete
etapas da alquimia, que têm início no nascimento e conduzem, no
final, à total transformação. O objetivo da alquimia é transformar as
coisas em ouro, a substância perfeita e incorruptível. Sob o aspecto
humano, o ouro é um símbolo do espírito puro. Se uma pessoa
transcende todas as limitações, abandona todos os receios, e traz à
tona o puro espírito interior, ela terá passado pelas sete etapas da
alquimia.
Não existe jornada mais extraordinária. Na época arturiana ela
teria sido chamada de aventura de busca, e o objeto supremo dessa
busca era sempre o Santo Graal, o mais poderoso símbolo que temos
para o espírito puro. Desse modo, para mim, a alquimia e o Graal são
a mesma coisa. Em ambos os casos ocorre uma profunda busca do
aspecto intemporal da vida que traz consigo o que todos sonham — o
puro amor, a pura alegria e a pura realização no espírito.
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Não importa que você leia primeiro a Segunda ou a Terceira Parte.
Cada parte possui sua abordagem e estilo próprios, mas ambas provêm
do mundo do mago. Merlim vive em ambas, e seu propósito é sempre o
mesmo — ensinar a cada um de nós como alcançar a perfeição da qual
a carne deveria ser herdeira.
Finalmente, este livro descreve uma aventura de busca que o levará
de uma vida dominada pelo ego e suas lutas para uma nova vida
dominada por milagres. Não existem duas pessoas que aprendam no
mesmo ritmo, mas a sede de milagres é tão forte em todo mundo que eu
gostaria de poder estar com você no dia em que esse conhecimento do
mago realmente começar a despertar, e, com ele, sua nova vida. Nada
menos do que o pleno desabrochar do seu potencial espiritual o
aguarda.
Nota: Por ser um vidente, o mago não tem sexo, e é somente a inépcia
da língua inglesa que faz de Merlim um "ele" (como acontece em
outros idiomas com as palavras Deus, profeta, vidente e muitas outras
palavras que estão bem além do masculino e do feminino). Maga é uma
palavra deselegante, de modo que peço que você compreenda que
mago diz respeito tanto às mulheres quanto aos homens. Aliás, o
retorno do aspecto mágico tem sido acolhido mais rapidamente na
nossa sociedade pelas mulheres do que pelos homens.
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S E G U N D A P A R T E
O CAMINHO DO MAGO
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— Existe um ensinamento — disse Merlim — chamado o caminho do
mago. Você já ouviu falar nele?
O menino Artur parou de acender o fogo, o que ele não estava
conseguindo fazer muito bem, e ergueu os olhos. Raramente era fácil
acender o fogo nas manhãs úmidas do West Country.
— Não, nunca ouvi falar nisso — respondeu Artur após pensar por
um momento. — Magos? Você quer dizer que eles fazem as coisas de
uma maneira diferente?
— Não, exatamente da mesma maneira que nós — retrucou
Merlim. Com um estalar de dedos ele acendeu a pilha de gravetos
encharcados que Artur havia juntado, tendo ficado impaciente com
as tentativas desajeitadas do menino de fazê-lo. Uma chama surgiu
imediatamente. Merlim abriu então as mãos e produziu do nada
alguns alimentos — duas batatas e um punhado de cogumelos
silvestres.
— Ponha estas batatas e cogumelos nos espetos e asse-os, por
favor — disse ele.
Artur fez que sim, naturalmente, com a cabeça. Ele tinha cerca de
dez anos. Merlim era a única pessoa que conhecia. Até onde
conseguia se lembrar, eles tinham estado juntos. Ele certamente
havia tido uma mãe, mas o rosto dela não havia se fixado nem
mesmo vagamente na sua memória.
O velho com a barba leve e delicada havia reclamado seu direito
ao rebento real poucas horas depois de seu nascimento.
— Sou o último guardião do caminho do mago — disse
Merlim. — E talvez você vá ser o último a aprendê-lo.
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Ao colocar os espetos no fogo, Artur olhou por cima do ombro.
Agora ele estava intrigado. Merlim era um mago? Isso nunca lhe
ocorrera. Os dois moravam sozinhos na floresta e na gruta de cristal.
O brilho da gruta lhes fornecia luz. Artur aprendera a nadar
transformando-se num peixe. Quando queria comida, esta aparecia,
ou Merlim lhe dava alguma. As coisas não eram assim com todo
mundo?
— Você estará indo embora em breve — prosseguiu Merlim.
— Tome cuidado para não deixar cair aquela batata sobre as
cinzas.
E claro que isso já tinha acontecido. Como Merlim vivia às
avessas no tempo, seus avisos inevitavelmente chegavam tarde
demais, depois que algum pequeno desastre já tinha acontecido.
Artur tirou a fuligem da batata e a recolocou no espeto, feito de tília
ainda verde.
—Não tem importância — disse Merlim. — Essa pode ficar para
você.
—O que você quer dizer com ir embora? — perguntou Artur. Ele
só fora ao vilarejo mais próximo em raras ocasiões, quando Merlim
queria ir ao mercado, e o mago tomara o cuidado de disfarçar a
ambos com pesados mantos e capuzes. Entretanto, o menino
observara atentamente as coisas, e o que ele vira nas outras pessoas
o perturbara.
Merlim olhou de soslaio para o discípulo, de um jeito peculiar.
— Vou enviá-lo para o pântano, ou para o mundo, como
dizem os mortais. Eu o mantive fora do pântano todos esses anos,
ensinando-lhe algo que você não deve esquecer.
Merlim fez uma pausa para causar impressão, e disse:
— O caminho do mago.
Depois que ele pronunciou essas palavras, nenhum dos dois disse
mais nada, como costumam fazer os velhos companheiros. Eles
quase respiravam o mesmo alento, o velho e o menino, de modo que
Merlim deve ter sentido a agitação que percorria a mente de Artur,
como uma pantera enjaulada.
Eles comeram a refeição, e o menino foi se lavar na pequena
lagoa azul que ficava um pouco abaixo da gruta, descendo a encosta.
Quando voltou, Merlim estava tomando banho de sol
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recostado em sua pedra favorita (tomando banho de sol, neste caso,
é uma expressão relativa — as nuvens haviam se afastado um pouco
para permitir que um único raio de sol atravessasse as árvores e
pousasse sobre o cabelo branco do mago). As primeiras palavras que
saíram da boca do menino foram:
—O que vai acontecer com você?
—Comigo? Não seja tão vaidoso. Passarei muito bem sem sua
ajuda, obrigado.
No instante em que Merlim deu essa resposta breve e seca, ele
percebeu que magoara o menino. Mas os magos são pouco
inclinados a se desculpar. Um longo e belo arco feito de freixo
branco apareceu no chão ao lado de Artur, que o apanhou
avidamente e começou a retesá-lo. No código particular deles, o
menino sabia que essa era a maneira do velho se desculpar.
—Não estou preocupado comigo — prosseguiu Merlim — e sim
com a perda do conhecimento. Como eu disse, você talvez seja o
último a aprender o caminho do mago.
—Então vou fazer todo o possível para que ele não se perca —
prometeu Artur.
Merlim aprovou inclinando a cabeça. Durante muitos dias, ele não
mencionou mais o caminho do mago. Certa manhã de junho,
contudo, Artur acordou e encontrou sua cama de ramos de pinheiro
coberta de neve. Ele tremia de frio e se sentou, espalhando no ar
uma nuvem de flocos brancos enquanto sacudia seu cobertor de pele
de veado.
—Eu pensava que você só fazia isso em dezembro — disse ele,
mas Merlim não respondeu. Ele estava de pé, absolutamente imóvel,
no meio do círculo de neve que cobria o campo. Diante dele erguiase
uma estranha aparição, uma grande rocha com uma espada
projetando-se para fora dela. Apesar do ar gelado, a neve branca não
se agarrava à pedra, e a lâmina erguia-se limpa no ar, um metro e
meio de reluzente aço damasceno forjado.
—O que é isso? — perguntou Artur. A visão da pedra, o afetava
profundamente, embora ele não soubesse por quê.
—Nada — retrucou Merlim. — Apenas se lembre.
Após um momento, a espada na pedra começou a desaparecer, e
quando Artur voltou, após sua higiene matutina, a lâmina de Merlim
estava novamente cálida, os flocos de neve haviam se
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derretido ao sol do verão, e a pedra desaparecera como um sonho. O
menino sentiu vontade de chorar, porque sabia que a aparição era o
gesto de adeus de Merlim, de despedida e recordação.
O que aconteceu a Artur depois de partir para o mundo faz hoje
parte da lenda. Ele acabou chegando em Londres numa manhã de
Natal em que a neve caía sobre a cidade, do lado de fora da catedral
onde a espada enterrada na pedra misteriosamente reaparecera.
Para assombro da multidão que saía da igreja, ele arrancou a espada
e reclamou seu direito ao trono. Ele travou longas e amargas
batalhas para vencer um grande número de rivais que também
queriam ascender ao trono, estabelecendo depois a sede da corte em
Camelot. Ele vivia a cada dia os segredos do caminho do mago. Um
dia ele morreu e passou à história. Coube às gerações seguintes
imaginar o que teria Merlim ensinado a seu discípulo todos aqueles
anos na floresta, antes de o menino Artur avançar em direção à
pedra e apossar-se do destino, agarrando seu punho adornado com
pedras preciosas.
Pouco depois da derrocada de Camelot, o mundo de Artur
desapareceu. A terra voltou a ser dominada pela discórdia e pela
ignorância, e Merlim demonstrou ter sido o último da sua espécie,
exatamente como predissera. Depois dele, não houve mais magos na
história do ocidente.
Mas Merlim nunca achou que o caminho do mago dependesse do
rumo da história.
— O que eu sei está no ar — ele gostava de dizer. — Respire e o
conhecimento estará presente.
Os magos sabiam de coisas intemporais, e, por conseguinte, o
depósito do conhecimento deles precisa estar fora do tempo. O
caminho está aberto. Ele começa em todos os lugares e não conduz a
nenhum lugar; no entanto, ele desemboca num lugar real. Tudo isso
desabrocha quando ouvimos Merlim falar.
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1- Lição
Existe um mago dentro de todos nós. Esse mago tudo vê e tudo
sabe.
O mago está além dos opostos da luz e das trevas, do bem e do mal,
do prazer e da dor.
Tudo que o mago vê tem suas raízes no mundo
invisível.
A natureza reflete o estado de alma do mago.
O corpo e a mente podem adormecer, mas o mago
está sempre desperto.
O mago possui o segredo da imortalidade.
— Prove isto — disse Merlim certo dia, empurrando uma tigela de sopa
na direção do menino Artur.
Artur provou, hesitante. Era uma sopa deliciosa e consistente, de
carne de veado e raízes silvestres, temperada misteriosamente por
Merlim enquanto Artur estava de costas. A sopa era irresistivelmente
saborosa, e Artur mergulhou avidamente de novo a colher na tigela,
tendo o desprazer de tê-la arrebatada das mãos.
— Espere, quero mais — resmungou Artur, ainda de boca cheia.
Merlim balançou negativamente a cabeça.
— O banquete completo está na primeira colherada — advertiu o
mago.
No início, Artur sentiu-se invadido pela frustração e pelo
desapontamento, mas depois percebeu que estava se sentindo
satisfeito como se tivesse tomado o prato inteiro. Mais tarde,
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quando Artur estava cochilando debaixo de uma árvore, Merlim se
aproximou em silêncio e deixou uma grande tigela de sopa ao lado
do menino. Enquanto se afastava, o mago murmurou:
— Pense bem. De que serviriam todos esses anos de escola de
magia se eu não pudesse mostrar tudo para você na primeira lição?
COMPREENDENDO A LIÇÃO
E preciso uma vida inteira para aprender o que o mago tem a
ensinar, mas tudo que irá se desenvolver no decorrer dos anos e das
décadas está disponível na primeira lição de Merlim. E nela que o
mago se apresenta. Ele descreve sua abordagem diante da vida, que
é resolver os enigmas mais profundos da mortalidade e da
imortalidade. E tudo isso acontece de uma maneira mágica. Em
primeiro lugar, Merlim não aparece realmente numa forma física. As
formas são irrelevantes para Merlim. Ele já viu mundos surgirem e
desaparecerem, ele sobreviveu ao tumulto dos tempos, e sua reação
a tudo é a mesma: ele vê.
Os magos são videntes. O que eles vêem? A realidade como um
todo, e não suas múltiplas partes.
—Você sempre foi um mago? — perguntou o menino Artur.
—Como eu poderia ter sido? — retrucou Merlim. — Eu já vivi
como você, e quando eu olhava para uma pessoa, tudo que via era
uma forma de carne e osso. Mas depois de algum tempo, reparei que
as pessoas vivem em casas que prolongam seu corpo: pessoas
infelizes com emoções desordenadas vivem em casas desordenadas;
pessoas felizes e satisfeitas vivem em casas arrumadas. Era uma
simples observação, mas depois de algum tempo cheguei à seguinte
conclusão: Quando vejo uma casa, estou na verdade enxergando
mais daquela pessoa.
"Minha visão então se expandiu. Quando eu via uma pessoa, eu
também não podia deixar de ver sua família e seus amigos. Essas
também eram extensões da pessoa e me diziam muitas coisas sobre
ela. Mas minha visão se expandiu mais ainda. Comecei a enxergar
debaixo da máscara de aparência física. Vi
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emoções, desejos, temores, anseios e sonhos. Sem dúvida todos esses
são parte de uma pessoa, se tivermos olhos para enxergá-los. "Comecei a
observar a energia que cada pessoa emana. Nessa ocasião, a
disposição física de carne e osso da pessoa se tornara praticamente
insignificante, e logo avistei mundos dentro de mundos em todas as
pessoas que encontrava. Depois compreendi que cada coisa viva é
todo o universo, apenas vestida num disfarce diferente."
—Isso é realmente possível? — perguntou Artur.
—Um dia você perceberá que todo o universo pode ser encontrado
dentro de você, e nesse dia você será um mago. O mago não vive no
mundo; o mundo vive nele.
"Século após século o mago tem sido procurado em todos os lugares,
nas florestas ou cavernas profundas, nas torres ou nos templos. O
mago também viajou usando nomes diferentes: filósofo, mágico,
vidente, xamã, guru. & 39;Diga-nos por que sofremos. Diga-nos por que
ficamos velhos e morremos. Diga-nos por que somos fracos demais
para gerar uma vida satisfatória para nós mesmos.& 39; Somente diante
de um mago poderiam os mortais desabafar perguntas tão difíceis.
"Depois de escutar com muito cuidado, os magos, mestres e gurus
disseram a mesma coisa. & 39;Posso solucionar essa massa de ignorância e
dor se vocês compreenderem uma única coisa. Estou dentro de vocês.
Essa pessoa separada que parece estar falando com vocês na verdade
não é separada. Somos um só, e no nível em que somos um só, nenhum
dos nossos problemas existe."& 39;
Quando Artur queixou-se certa vez de que Merlim o mantinha na
floresta, permitindo apenas que ele tivesse breves vislumbres do
mundo, Merlim ficou furioso:
— O mundo? Como você imagina que as pessoas vivem,
aquelas que você viu no vilarejo? Elas se preocupam com o
prazer e a dor, buscando o primeiro e desesperadamente evitan
do a segunda. Estando vivas, elas desperdiçam a vida preocupando-
se com a morte. A riqueza e a pobreza as obcecam e
alimentam seus mais profundos receios.
Felizmente, o mago interior não vivência nada disso. Como ele
enxerga a verdade, ele não vê a inverdade, porque o jogo de
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opostos — prazer e dor, riqueza e pobreza, bem e mal — só parece real
enquanto não aprendemos a enxergar dentro da estrutura mais ampla
do mago. No entanto, não há como negar que esse drama da vida
cotidiana é extremamente real para as pessoas comuns. O espetáculo
externo da vida é a vida se você só acredita em seus sentidos, naquilo
que você vê e sente.
Os mortais procuravam os magos para resolver essa obsessão com
as aparências e esse anseio de significado. E preciso que haja algo além
do que o que estamos vivendo, pensavam os mortais, sem saber
exatamente o que poderia ser esse algo mais.
— Não passe o tempo refletindo sobre o que você vê — aconselhou
Merlim a Artur — e sim sobre por que você o vê.
A primeira lição, portanto, se resume no seguinte: olhe além do seu
eu limitado para ver seu eu ilimitado. Penetre a máscara da
mortalidade e encontre o mago. Ele está dentro de você, e somente
ali. Tão logo você o encontre, você também será um vidente. Mas o
que você pode ver desponta no tempo propício, paulatinamente. Antes
de você enxergar, surge o sentimento de que a vida encerra mais
coisas do que as que você está vivendo. E como uma voz indistinta
que sussurra: "Ençontre-me." Essa voz é neutra, tranquila, satisfeita
em si mesma — e impalpável. E a voz do mago, mas também é a sua.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Os ditados de Merlim atuam sutilmente, como a água que penetra
profundamente na terra. A água que jorra hoje do chão caiu como
chuva há milhares, até milhões de anos. Ninguém sabe muito sobre a
vida dessa água misteriosa, aonde ela vai, o que acontece a ela entre as
pedras profundamente ocultas. Mas um dia, libertada pela gravidade,
ela ascende das trevas, e, surpreendentemente, jorra completamente
pura e cristalina.
O mesmo acontece com Merlim. Se você se sentar em silêncio e
escutar por alguns minutos, as palavras começarão a se entranhar.
Deixe que isso aconteça, e depois permita que a sabedoria faça seu
trabalho. Não espere nem anteveja nenhum
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resultado, mas fique alerta ao que possa ocorrer. Qualquer coisa que
acontecer é boa.
O tema da primeira lição é encontrar o mago e apreciar seu ponto de
vista, que é muito diferente daquele adotado pela mente ou pelas
emoções. Estas últimas sentem e reagem. Elas são imediatas, como os
tentáculos de uma anêmona-do-mar que se contorcem, reagindo
imediatamente a uma sensação. A dor causa a contração emocional; o
prazer faz com que você se expanda e se sinta livre.
A mente, por outro lado, trabalha com muito menos
instantaneidade. Ela mantém um vasto arquivo de memórias e
constantemente o consulta. Ela compara o novo com o velho e toma
uma decisão: isso é bom, isso é mau, isso vale a pena repetir, isso não.
Assim, as emoções oferecem uma resposta imediata e impensada a
qualquer situação, como o bebé que sorri ou chora espontaneamente. A
mente consulta seu banco de memória e fornece uma reação
retardada.
O mago não tem nenhuma dessas duas reações, instantânea ou
retardada — Merlim simplesmente é. Ele vê o mundo e deixa que ele
seja o que é. Não se trata, contudo, de um ato passivo. Tudo no mundo
do mago se baseia no insight "Tudo isso sou eu". Por conseguinte, ao
aceitar o mundo como ele é, o mago encara tudo à luz da autoaceitação,
que é a luz do amor.
Parece estranho que a definição do amor do mago esteja envolvida
em silêncio. Para as emoções, o amor é um surto de sentimento, uma
atração muito ativa diante de um estímulo poderoso. A mente tem seus
próprios métodos, mas eles não são tão diferentes: a mente gosta de
qualquer coisa que repita uma experiência agradável do passado. "Eu
gosto disso" significa basicamente "Eu gosto de repetir o que me fez
sentir tão bem antes". Portanto, tanto a mente quanto as emoções são
seletivas. Selecionar e escolher não é errado, mas exige esforço.
Embora todos tenhamos aprendido que o esforço é positivo, que nada é
alcançado sem trabalho, isso não é verdade. O ser não pode ser
alcançado através do esforço; o amor não pode ser alcançado através
do esforço.
Num nível mais sutil, selecionar e escolher também envolve a
rejeição. A mente se concentra numa coisa de cada vez. Antes
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de você poder dizer: "Eu gosto disso", você precisa rejeitar todas as
outras escolhas. As coisas que rejeitamos tendem a ser tingidas pelo
medo. A mente e as emoções não encaram a dor e o sofrimento de
uma maneira neutra; elas os temem e rejeitam. Esse hábito de
seíecionar e escolher acaba fazendo com que você despenda muita
energia, porque sua mente está constantemente vigilante,
permanentemente em alerta para garantir que a mágoa, o
desapontamento, a solidão e uma série de outras experiências
dolorosas não voltem a acontecer. Que espaço é reservado ao
silêncio?
Sem silêncio, não existe espaço para o mago. Sem silêncio, não
pode haver uma verdadeira apreciação da vida, cuja estrutura
interior é tão delicada quanto um botão de rosa. Os mortais
procuravam os magos para pedir conselhos porque percebiam que
eles não viviam com medo. Qualquer coisa que aconteça aos magos é
aceita, até mesmo abraçada. "Como você alcança essa paz de
espírito?" perguntavam os mortais. E a resposta dos magos era "Olhe
para dentro de si, onde só existe paz".
Portanto, o primeiro passo no mundo de Merlim é reconhecer que
ele existe - isso basta. Quando você se entregar ao estudo desta
lição, sua mente poderá se rebelar, dizendo: "Não!" à noção de que
existe outro ponto de vista válido, um jeito diferente do dela. Suas
emoções podem participar dessa onda de desconfiança, ansiedade,
tédio, ceticismo, desprezo, seja lá o que possa surgir. Não resista a
esses sentimentos. Eles são meramente maneiras antigas e habituais
de seíecionar e escolher. Sua mente se torna importante ao rejeitar.
Durante anos ela o serviu fielmente, mantendo à distância as coisas
desagradáveis. A questão é: a tática da mente funcionou? A mente
pode conseguir torná-lo inteligente, mas está muito mal equipada
para torná-lo feliz, realizado, em paz consigo mesmo.
Merlim não discute com a mente. Todos os debates são gerados
pelo pensamento, e o mago não pensa. Ele vê. E essa é a chave para
o milagroso, pois tudo que você puder ver em seu mundo interior você
produzirá no mundo exterior. Viva com essa lição inicial, deixe que a
água da sabedoria comece a penetrar nas passagens secretas
existentes dentro do seu ser, e observe. O mago está dentro de você,
e ele só deseja uma coisa: nascer.
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2- Lição
A volta da magia só pode acontecer com o retorno da
inocência.
A essência do mago é a transformação.
Todas as manhãs o jovem Artur descia até uma lagoa na floresta
para se lavar. Sendo um menino típico, ele não ficava propriamente
ansioso para executar essa tarefa. Frequentemente ele se distraía
com o burburinho dos esquilos vermelhos, das pegas ou com
qualquer outra coisa que pudesse ser mais interessante do que água
e sabão.
Merlim não se preocupava muito com a sujeira que visivelmente
se acumulava no rosto de seu pupilo, ao redor do pescoço e em todos
os outros lugares. Mas finalmente chegou o dia em que o mago
explodiu:
— Eu poderia plantar feijões atrás das suas orelhas! Não
importa que você fique apenas um instante no lago, mas faça
alguma coisa enquanto estiver lá.
Artur baixou a cabeça:
— Tenho tido receio de confessar, Merlim, mas quando me
curvo em direção à água, não consigo enxergar meu reflexo. Não
consigo ver onde devo lavar, ou mesmo qual a minha aparência.
Para espanto do menino, quando ele levantou a vista, Merlim
estava ao lado dele, encantado.
—Tome — disse ele, introduzindo uma grande esmeralda na mão
do garoto como recompensa (Artur a usou mais tarde para saltar
através da água).
—Eu achei que sua desobediência significava a perda da
inocência, mas percebo que estava errado. Por não ter um
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reflexo, você não tem uma auto-imagem. Se você não está sendo
distraído pela auto-imagem, você só pode estar no estado de
inocência.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
Antes de ser encoberta, a inocência é nosso estado natural. É a autoimagem
que a encobre. Quando olhamos para nós mesmos, mesmo
quando tentamos ser completamente sinceros, vemos uma imagem
construída no decorrer de muitos anos, em camadas totalmente
entrelaçadas. As linhas e as rugas que se formam no rosto de uma
pessoa contam a história de antigas alegrias e tristezas, triunfos e
derrotas, ideais e experiências. É praticamente impossível enxergar
qualquer outra coisa.
O mago vê a si mesmo onde quer que olhe, porque sua visão é
inocente. Ela não é empanada por julgamentos, rótulos e definições. O
mago sabe que possui um ego e uma auto-imagem, mas ele não é
distraído por essas coisas. Elas sobressaem sobre a tela de fundo da
totalidade, de todo o contexto da vida.
O ego é "Eu": ele é seu ponto de vista singular. Na inocência esse
ponto de vista é puro, como uma lente cristalina. Mas sem inocência, o
foco do ego é extremamente deformado. Se você acha que conhece
alguma coisa — inclusive a si mesmo — você está na verdade vendo
seus próprios julgamentos e rótulos. As mais simples palavras que
usamos para descrever uns aos outros — amigo, família, estranho —
estão carregadas de julgamentos. O enorme abismo de significado
entre amigo e estranho, por exemplo, está repleto de interpretações.
O amigo é tratado de uma determinada maneira, o inimigo de outra.
Mesmo que esses julgamentos não ascendam à superfície, eles
obscurecem nossa visão como o pó encobre uma lente.
Por não ter rótulos para as coisas, o mago as enxerga sempre como
novas. Para ele não existe poeira nas lentes, de modo que o mundo
reluz repleto de novidades. A mesma canção indistinta é ouvida em
todas as coisas: "Olhe para si mesmo". Deus poderia ser definido como
alguém que olha em volta e vê apenas a Si
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mesmo em todas as direções; na medida em que somos criados à
imagem Dele, nosso mundo também é um espelho.
Os mortais achavam esse ponto de vista mágico muito estranho,
pois o interesse deles estava voltado para uma direção totalmente
diferente. Eles olhavam para fora e ficavam fascinados com as
coisas, e ansiavam por nomear e usar tudo que viam. Todos os
pássaros e mamíferos tinham que receber um nome. As plantas
tinham que ser cultivadas para fornecer alimento e prazer. As terras
existiam para ser exploradas e conquistadas.
Merlim não demonstrava praticamente nenhum interesse por
nada disso. Com frequência os magos não sabem o nome das coisas
mais comuns, como o carvalho, o gamo ou as constelações. No
entanto, o mago poderia contemplar um carvalho retorcido, uma
corça no período de aleitamento ou o céu noturno durante horas, e
em cada momento sua contemplação seria totalmente assimilada.
Os mortais desejavam compartilhar esse tipo de atenção
extasiada. Quando lhe perguntaram qual o segredo de se olhar para
o mundo sempre como sendo novo, com deleite, Merlim respondeu:
— Vocês não possuem inocência. Depois de rotularem uma coisa,
vocês deixam de enxergá-la e passam a ver apenas o rótulo.
Foi fácil dar um exemplo disso. Se dois cavaleiros que não se
conheciam se encontrassem na floresta, imediatamente procuravam
o emblema ou bandeirola que identificava se o outro era amigo ou
inimigo. No instante em que esse símbolo era identificado, os
cavaleiros podiam entrar em ação, mas não antes. O amigo podia ser
abraçado, convidado para o banquete ou para contar histórias. Ao
inimigo só era possível dar combate.
Essa obsessão de rotular as coisas, declarou Merlim, é pura e
simplesmente a atividade da mente. A mente não pode reagir sem
um rótulo. Carregamos milhões de rótulos na nossa cabeça, e nossa
mente é capaz de consultar esses rótulos com a rapidez do
relâmpago. A velocidade da mente é prodigiosa, mas a velocidade
não nos protege contra o desgaste. Qualquer coisa em que você
consiga pensar, você já experimentou, e você acaba se cansando de
tudo que já experimentou.
30
—Vocês se admiram de não conseguir olhar para um carvalho,
um veado ou uma estrela por mais do que um minuto? — indagou
ele. — Quase consigo ouvir a mente de vocês gemendo: "Aquela coisa
velha!" e lá se vão vocês em sua insensata corrida em busca de algo
novo.
—Não vejo por que isso seja um problema tão grande —
comentou um aldeão idoso. — O mundo é vasto, e a natureza está
repleta de aspectos e transformações interessantes.
—Isso é verdade — admitiu Merlim —; no entanto, de acordo com
seu argumento, nada deveria então se desgastar e ficar monótono.
Não se pode negar a quantidade infinita de coisas lá fora. Mas o
tédio é uma queixa comum entre os mortais, não é verdade? — O
ancião fez que sim com a cabeça.
—No entanto, você pronunciou a palavra certa — continuou
Merlim. — Transformação. Mas é o seu eu que precisa constantemente
estar em transformação. Você não pode levar ao mundo o
mesmo eu desgastado e esperar que o mundo seja novo para você.
O mago nunca vê a mesma coisa duas vezes da mesma maneira.
Assim, ao contemplar a floresta, ele não se deixa absorver tanto pela
visão de um veado quanto por uma nova faceta do seu ser: a doçura,
a virtude, o recato ou a delicadeza. Quando o olhar é puro, qualquer
pessoa é capaz de enxergar essas qualidades. Elas desabrocham
como as pétalas de uma rosa. Você precisa ter paciência, mas vale a
pena esperar por elas. Sua inocência é a única flor que existe. Ela
nunca esmaece, e por causa disso, o mundo tampouco se desvanece.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Depois de ler esta lição, conceda a si mesmo um momento para
tentar recuperar um toque de inocência. Isso é mais fácil do que as
pessoas imaginam. A primeira coisa que você deve saber é o que não
fazer. Não julgue seu estado de espírito atual. Você pode estar
cansado ou deprimido. Você pode ter muita raiva, medo ou culpa a
considerar. Esqueça tudo isso por um momento, porque a inocência,
como ensina Merlim, está além da mente.
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Olhe simplesmente para esta lista de palavras:
PESADO
LEVE
PRETO
BRANCO
SOL
LUA
Permita-se vivenciar essas qualidades, uma de cada vez. Não
importa se você é o tipo de pessoa que elabora imagens em vez de
sentimentos, ou conceitos em vez de objetos concretos. Qualquer
abordagem irá funcionar. Você percebeu que é impossível para sua
mente evitar alguma sensação de pesado, leve, preto, branco, e
assim por diante? De fato, você não conseguiria nem mesmo ler as
palavras sem concretizar pelo menos uma leve sensação de cada
qualidade.
Sua participação é necessária para que essas qualidades existam.
Se sua participação for inocente, elas existirão de uma maneira nova
e diferente. Essa é a visão do pintor. Ele contempla uma cesta de
frutas, um barco ou uma nuvem, mas em vez de ser o recebedor
passivo dessas coisas, ele as cria através da visão. Ele as impregna
do seu próprio espírito.
E todos fazemos o mesmo, até no mais simples ato de observar
uma coisa banal. Essa experiência demonstra que a inocência não
pode ser perdida, ela só pode ser encoberta. O segredo de ver com
inocência é ver a partir de um novo ponto de vista, que não seja
condicionado por aquilo que você espera ver.
—Se você pudesse realmente ver aquela árvore ali — disse
Merlim —, você ficaria tão assombrado que perderia o equilíbrio.
—Mesmo? Mas por quê? — perguntou Artur. — É apenas uma
árvore.
—Não — respondeu Merlim. — É apenas uma árvore na sua
opinião. Para outra pessoa, ela é uma expressão de espírito e beleza
infinitos. Para Deus, ela é um filho querido, mais doce do que
qualquer coisa que você possa imaginar.
Enquanto a mente pode registrar a cor, a luz, a densidade e o
sentimento do mundo, ela está percebendo a si mesma. A
32
palavra pesado ou branco lhe confere uma sensação interior que
pertence exclusivamente a você. Não existe nenhum peso ou
brancura "lá fora" sem que você esteja presente para percebê-lo; a
visão, o toque, o sabor ou o aroma só existem como um leve oscilar
da sua consciência. Você pode enviar uma câmera para a luz,
fotografar todas as crateras e vales lá existentes e trazer o filme de
volta para a terra. Se não houver aqui um ser humano para ver essas
fotos, elas não conterão imagens, apenas substâncias químicas que
reagiram a uma combinação momentânea de fótons. O filme está tão
morto quanto a lua. Merlim diria que se ninguém olhar para a
imagem da lua, tampouco existe uma lua.
Por conseguinte, é tremendamente importante olhar de maneira
inocente para o mundo, porque é só assim que o mundo contém vida.
É seu olho que confere vida a tudo que vê. Por trás de cada molécula
de existência precisa haver consciência e inteligência; caso
contrário, o universo seria um turbilhão aleatório de gases inertes e
estrelas sem vida, um vazio que anseia por receber a semente da
existência. Sem inteligência, não há vida, apenas atividade. Cada
olhar que você dá pela janela coloca a semente da vida no estado de
criação. É por isso que Merlim levava muito a sério sua função de
observar os carvalhos, os veados e as estrelas. Ele não queria que
eles morressem; ele era um amante da vida.
Esta lição se resume ao seguinte comentário: "Olhe com
inocência e você produzirá vida." Este é o princípio mágico pelo qual
Merlim vivia. Os mortais tinham dificuldade em entender uma ideia
tão simples porque ela contrariava o mais profundo preconceito
deles, que preceituava: "O mundo vem em primeiro lugar e eu em
segundo." Mas nós não estaríamos vivos se um Ser inocente não
tivesse nos visto primeiro. Esse foi o atqjjue plantou a semente de
todo o universo, e foi um ato de amor. Você conhecerá novamente
sua inocência quando conseguir ver o amor que palpita em cada
partícula da criação.
33
3- Lição
O mago observa o mundo ir e vir, mas sua alma
habita as esferas de luz.
O cenário muda, o observador permanece o mesmo.
Seu corpo é apenas o lugar que suas memórias chamam de
lar.
Merlim preferia evitar ser visto pelos mortais, mas às vezes, no final do
verão, era possível avistá-lo no campo de pé numa perna só. Fazendeiros
curiosos se aproximavam, mas Merlim permanecia como uma estátua,
sem fazer ruído e sem demonstrar ter percebido a presença deles.
Nessas ocasiões, Artur achava que seu mestre parecia um grou em
posição de arpoar um peixe no pântano. Certo dia, quando Merlim já
estava contemplando uma lagoa horas a fio, o menino não se conteve e
perguntou para onde ele estava olhando.
— Não sei dizer exatamente — respondeu Merlim. — Vi uma
libélula e quis examiná-la com mais atenção. Ela atravessou
meu caminho como um sonho, mas depois de alguns momentos
esqueci se eu estava sonhando com essa libélula ou se ela estava
sonhando comigo.
— A resposta não é óbvia? — perguntou Artur.
Merlim deu uma pancada forte na cabeça do menino.
— Você acha que seus sonhos acontecem aí dentro. Mas eu
me vejo em todos os lugares, portanto quem sabe que parte de
mim está sonhando com outra parte?
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COMPREENDENDO A LIÇÃO
O mago que existe dentro de todos nós também poderia se chamar a
testemunha. O papel da testemunha não é interferir no mundo em
transformação, mas sim ver e compreender. A testemunha não
descansa — ela permanece desperta mesmo quando você está
sonhando ou tendo um sono sem sonhos. Portanto, ela não precisa
enxergar através dos seus olhos, o que parece algo mágico. Não é o
olho o órgão essencial da visão?
A energia e a informação são fundamentais para tudo que
podemos ver, ouvir ou tocar no mundo relativo — todo átomo pode
ser desmembrado nesses dois componentes. No entanto, em seu
estado primordial, esses constituintes são informes. Um feixe de
energia pode se afastar num turbilhão caótico como um jato de
fumaça; as informações podem se desmembrar em pontos aleatórios
de dados. É necessária outra força para organizar a ordem
maravilhosa da vida: a inteligência. A inteligência é o elemento
aglutinador do universo.
Para o mago, esta não é apenas uma noção teórica, porque ele é
capaz de ver com sua visão interior que ele é essa inteligência. Esse
entendimento é um desafio para os mortais, uma vez que ele não
provém da mente. Eles estão acostumados a saber as coisas, mas
não estão habituados ao conhecimento propriamente dito.
— O mortal mais brilhante — declarou Merlim — não é melhor do
que o mais absoluto idiota assim que ambos vão para a cama. Eles
têm os mesmos pesadelos apavorantes e o mesmo medo de morrer.
O medo nasce com eles, e eles não conseguem desfrutar o mais
insignificante prazer sem ter a certeza de que ele irá desaparecer.
O conhecimento do mago continua presente até mesmo no sono.
A consciência universal desperta, sempre consciente e onisciente,
não é para o mago uma distante força criativa. Ela vive em cada
átomo. Ela é o olho por trás do olho, o ouvido por trás do ouvido, a
mente por trás da mente.
Logo, o mago não precisa estar desperto e de olhos abertos para
ver. A visão em seu sentido mais profundo pode ter lugar enquanto
sonhamos ou dormimos, porque ver significa estar
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desperto na inteligência do universo. Quando a testemunha está
plenamente presente, tudo é compreendido.
O conhecimento do mago é o saber que não se apoia em fatos
externos. E a água da vida extraída diretamente da fonte. Não importa
o tipo de mudanças que possam varrer o universo, o conhecimento do
mago não pode mudar — o cenário vem e vai, o observador permanece
o mesmo. Enquanto não encontramos o mago interior, dependemos
dos nossos sentidos e da nossa mente para saber quem somos. Nosso
conhecimento é adquirido. Ele está armazenado na memória e
catalogado de acordo com nossos interesses; ele é, portanto, seletivo. O
conhecimento do mago é inato.
Certa vez Artur ficou simplesmente apavorado quando Merlim
correu de um lado para o outro brandindo, como um louco, uma
enorme faca de açougueiro.
—O que você está fazendo? — perguntou o menino, aterrorizado.
—Estou pensando — respondeu Merlim. — Você não pensa desta
maneira?
— Não — disse Artur.
Merlim parou de repente.
— Ah, então eu devo estar enganado. Minha impressão era
que todos os mortais usavam a mente como facas, cortando e
dissecando. Eu queria ver como é isso. Devo dizer que existe
uma grande dose de violência oculta naquilo que vocês mortais
chamam de racionalidade.
A mente do mago é como uma lente que reúne o que vê, e deixa
passar tudo sem distorção. A vantagem desse tipo de percepção é que
ela une, enquanto a mente racional separa. Esta última olha "lá fora"
para uma enorme quantidade de objetos no tempo e no espaço,
enquanto o mago vê tudo como parte de si mesmo. Em lugar de "lá
fora" e "aqui dentro", existe apenas um fluxo inconsútil.
Por isso Merlim afirmou que mal conseguia definir se era ele que
estava sonhando com uma libélula, ou a libélula que estava sonhando
com ele. Apenas na separação, percebida pela mente, havia uma
diferença. Na visão do mago, ambos eram um só.
36
VIVENDO COM A LIÇÃO
Não é fácil explicar o que é testemunhar. No estado ordinário
desperto, todos vemos objetos, mas a testemunha vê a luz. Ela vê a si
mesma como um foco de luz, o objeto como outro foco, todos num
contexto de uma vasta esfera apenas de luz, em transformação.
A luz é uma metáfora para os estados superiores da existência.
Quando alguém tem uma experiência de quase-morte e diz: "Entrei
na luz", ele quer dizer que experimentou um grau mais sutil de si
mesmo. A luz poderá assumir a imagem do céu ou de outro mundo,
mas para o mago, nosso mundo habitual também é apenas uma
imagem. Ele também é projetado a partir da percepção.
— Toda percepção é luz — declarou Merlim —, toda luz é
percepção.
Os limites que construímos para separar o céu da terra, a mente
da matéria, o real do irreal são meras conveniências. Por termos sido
nós a criar os limites, podemos desfazê-los com a mesma facilidade.
Examine cuidadosamente esta página. Você a enxerga como um
objeto. Ela é sólida na medida em que é feita de fibras de madeira
transformadas em papel, mas é abstrata por ser feita de ideias. Uma
página é uma coisa de papel, uma coisa de ideias, ou ambas? Repare
como é fácil você percebê-la como sendo ambas, mas observe
também que você não consegue vê-las ao mesmo tempo. Em outras
palavras, diferentes realidades podem coexistir, mas cada uma
respeita seu próprio nível de existência. Num determinado nível,
uma palavra nada mais é do que pontos de tinta, mas em outro, ela é
a chave de uma ideia.
Cada estado de existência, do mais sutil e imaterial ao mais denso
e sólido, depende do observador. Se quiséssemos, poderíamos
dissolver a página sólida, transformando-a em nada, da seguinte
maneira: a página é feita de papel, o papel é feito de moléculas, as
moléculas são feitas de átomos, os átomos são feixes de energia no
nível quântico, e os feixes de energia se
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compõem de 99,99999 por cento de espaço vazio. Como a distância
entre um átomo e o átomo seguinte é muito grande —
proporcionalmente maior do que a distância entre a Terra e o Sol — você
só pode dizer que esta página é sólida se também estiver disposto a
declarar que o espaço entre nós e o Sol é sólido.
A experiência de transformar coisas aparentemente sólidas em nada
também pode ser revertida. Começando com o espaço "vazio", você
pode criar feixes de energia, átomos, moléculas e assim por diante,
ascendendo na cadeia da criação até chegar a qualquer objeto que você
queira, inclusive seu próprio corpo. A mão que vira esta página é uma
nuvem de energia, e a única maneira pela qual você é capaz de sentir
sua mão ou pela qual ela pode sentir a página é através de um ato de
consciência. Outros feixes de energia, como a luz ultravioleta que o
circunda, são completamente imperceptíveis para você. Desse modo,
as idas e vindas do mundo dependem totalmente do poder da percepção.
Você foi criado como um ser que enxerga para que o mundo exista
como uma coisa a ser vista. Sem os olhos, o mundo seria invisível.
Podemos pegar agora esse entendimento e dar mais um passo à
frente. Tudo na terra é nutrido pelo sol, que é apenas uma estrela. O
alimento que você come foi transformado a partir da luz desse astro, e
quando você o ingere, você cria um corpo que tem a mesma origem.
Em outras palavras, o ato de você fazer uma refeição é simplesmente o
ato de a luz do sol assimilar a luz do sol. Essa luz, apesar de assumir
muitas formas, desde a de gases rodopiantes e quasars à de um
coelho mordiscando um trevo, é uma luz única. Ela não tem uma
localização específica, estando em todos os lugares ao mesmo tempo.
Você parece ter uma localização, mas isso só é verdade porque você
está neste exato momento executando o ato supremamente criativo de
transformar o universo de luz num foco único que se chama seu corpo e
sua mente.
—Eu gostaria de fazer milagres — implorou Artur certo dia.
—Este mundo existe por sua causa — retrucou Merlim. — Este
milagre não basta?
O mago leva esse raciocínio mágico às últimas consequências. Se a
visão tornou o mundo visível, pergunta ele, quem ou
38
o que é o criador da visão? Quem viu o olho antes de o olho ver
alguma coisa? A resposta é a consciência. O observador por trás do
olho é apenas a consciência propriamente dita, dando à luz nossos
sentidos para que eles possam dar à luz tudo que nos rodeia.
Este não é um mistério metafísico. O embrião nasce dentro do
útero da mãe como uma única célula, desprovido de sentidos; depois
ele se desenvolve transformando-se em múltiplas células que se
agrupam em regiões específicas concentrando-se em várias funções;
e, por fim, essas funções emergem como olho, ouvido, língua, nariz,
e assim por diante. O olho não se parece em nada com o ouvido, mas
suas formas diferentes são ilusórias. Todos os seus sentidos estavam
contidos naquela primeira célula fertilizada sob a forma de
informações codificadas.
A informação é apenas a consciência manifestada de uma forma
armazenável, como este livro. Se você não soubesse o que é um livro,
você diria que ele é simplesmente uma coleção de marcas num
código estranho, quando na verdade ele é um canal para que uma
consciência se comunique com outra.
Na visão de Merlim, o mundo era uma maneira para que ele
falasse consigo mesmo.
—Se você algum dia esquecer alguma coisa — recomendou ele a
Artur —, a floresta o fará lembrar-se.
—Já me esqueci de muitas coisas que a floresta não me fez
lembrar — protestou o menino.
—Isso não é verdade — replicou Merlim. — A única coisa que
você pode esquecer é de você mesmo, e isso pode ser encontrado
debaixo de cada árvore.
Por que o mundo existe? Porque uma vasta consciência desejava
escrever o código da vida e estender seus filamentos pela página do
tempo. Não é de causar surpresa que um mago não seja capaz de
dizer onde termina seu corpo e começa o mundo. Você está
sonhando este livro, ou este livro está sonhando você?
39
4- Lição
Quem sou eu? É a única pergunta que vale a pena ser feita e a
única que jamais é respondida.
É seu destino desempenhar uma infinidade de papéis, mas esses
papéis não são você.
O espírito não é localizado, mas deixa atrás de si uma impressão
digital que chamamos de corpo.
Um mago não acredita ser um evento localizado
que sonha com um mundo maior.
Um mago é um mundo que sonha com eventos localizados.
Merlim desapareceu durante muitos anos da vida de Artur; de
repente, um belo dia, ele reapareceu, saindo da floresta e
irrompendo em Camelot. Cheio de alegria ao ver seu mestre, o rei
Artur ordenou que fosse oferecido um banquete em sua homenagem.
Mas Merlim mostrou-se aturdido, olhando para o antigo discípulo
como se nunca o tivesse visto antes.
— Talvez eu possa comparecer, se você for quem eu supo
nho que seja — declarou Merlim. — Mas diga-me sinceramente,
quem é você?
Artur ficou abismado, mas antes que ele pudesse protestar,
Merlim dirigiu-se em voz alta à corte:
— Darei este saco de ouro em pó a quem puder me dizer
quem é esta pessoa. — E imediatamente uma bolsa com puro
ouro em pó surgiu em suas mãos.
Desconcertados e mortificados, nenhum dos cavaleiros da Távola
Redonda veio à frente. Um jovem pajem então se aventurou:
— Todos sabemos tratar-se do rei.
40
Merlim sacudiu negativamente a cabeça e dispensou sumariamente
o pajem do vestíbulo.
—Nenhum de vocês sabe quem ele é? — perguntou ele de novo.
—É Artur — bradou outra voz. — Até mesmo um tolo sabe disso.
Merlim identificou de onde vinha a voz, de uma velha copeira que
estava no canto, e também ordenou-lhe que saísse. A corte murmurava
confusa, mas logo o desafio do mago transformou-se num jogo.
As respostas começaram a pipocar: o filho de Uther Pendragon,
governante de Camelot, soberano da Inglaterra. Merlim não aceitou
nenhuma delas, nem mesmo as mais inteligentes, como filho de Adão,
flor de Albion, um homem entre os homens, e assim por diante.
Finalmente, Guinevere em pessoa entrou na brincadeira.
—Ele é meu amado marido — murmurou ela. Merlim só fez sacudir a
cabeça. Um por um, todos foram dispensados, até que apenas o mago e
o rei permaneceram no grande vestíbulo.
—Merlim, você nos derrotou a todos — admitiu Artur. — Mas tenho
certeza de que sei quem eu sou. Portanto, minha resposta é a
seguinte: sou seu antigo amigo e discípulo.
Após hesitar imperceptivelmente, Merlim rejeitou essa resposta
como rejeitara todas as outras, e o rei não teve outra alternativa a
não ser retirar-se do recinto. Entretanto, a curiosidade conduziu-o a
uma porta aberta de onde ele ainda conseguia ver o grande vestíbulo.
Para sua surpresa, ele viu Merlim caminhar em direção a uma janela,
abrir a bolsa, e sacudir para fora o ouro em pó.
— Por que você jogou fora o precioso ouro? — gritou Artur,
incapaz de se conter.
Merlim ergueu a vista.
—Tive que fazê-lo — retrucou ele. — O vento me disse quem você era.
—O vento? Mas ele não disse nada.
—Exatamente.
41
COMPREENDENDO A LIÇÃO
Os magos, de um modo geral, preferem não ter nem nome nem
endereço certo. Eles não gostam de permanecer num lugar onde os
mortais possam penetrar demais na sua intimidade.
— Quem quer que chame meu nome é um estranho — disse Merlim.
— O fato de você reconhecer meu rosto não significa que você me
conheça.
Os magos vêem a si mesmos como cidadãos do universo. Por
conseguinte, o lugar específico onde eles possam ser encontrados é
irrelevante.
O que nos limita em primeiro e último lugar na vida mortal são os
nomes, os rótulos e as definições. Ter um nome é útil — ele permite que
você saiba que certidão de nascimento é a sua — mas ele rapidamente se
transforma numa limitação. Seu nome é um rótulo. Ele o define como
tendo nascido num determinado lugar e hora, filho de pais específicos.
Passados alguns anos, seu nome o define como alguém que frequenta
tal escola, e depois que tem tal profissão. Aos trinta anos, sua
identidade está enclausurada numa caixa de palavras. As paredes da
caixa podem consistir no seguinte: "Católico, advogado fiscal, formado
por Cornell, casado, três filhos e uma hipoteca." Esses fatos podem não
estar errados, mas são enganadores. Eles encerram em condições um
espírito incondicionado.
Muitas dessas limitações parecem pertencer a você quando na
verdade pertencem ao seu corpo, e você é bem mais do que seu corpo.
O mago tem um relacionamento peculiar com seu corpo. Ele o vê como
um fragmento de consciência que toma forma no mundo, mais ou
menos como as pedras, as árvores, as montanhas, as palavras, os
desejos e os sonhos fluem e tomam forma. O fato de o desejo ou o sonho
ser insubstancial, enquanto nosso corpo é sólido, não perturba o mago.
Os magos são desprovidos do nosso preconceito comum que iguala o
"sólido" ao "real".
O mago não julga ser um evento local sonhando com um mundo
mais amplo. O mago é um mundo sonhando com eventos locais. Ele não
é restringido por limites. Os mortais não pode42
riam existir sem limites. O corpo deles define quem eles são, sem o
corpo, a pessoa nem mesmo poderia saber onde é seu lar, visto que o
lar é onde o corpo encontra abrigo e repouso.
No entanto, Merlim não se considerava um sem-lar. Ele disse:
— Este corpo é como uma pousada que serve de lar aos meus
pensamentos, mas eles entram e saem tão rápido que podería
mos dizer que eles vivem no ar.
Mais uma vez, supomos que os pensamentos entram e saem da
nossa cabeça, mas não podemos prová-lo. Quem já viu um
pensamento antes de ele surgir? Quem segue o pensamento aonde
ele vai depois?
Merlim não conseguia entender por que os mortais queriam se
agarrar ao corpo.
— Aceito dizer que este pacote de carne e osso seja "eu" —
disse ele —, mas somente se aquela montanha, aquele pasto e
aquele castelo também forem "eu".
Um corpo mortal não era melhor, aos olhos de Merlim, do que um
cabide no qual crenças, receios, preconceitos e sonhos foram
deixados pendurados. Se você pendurar casacos demais num cabide,
você não mais poderá vê-lo. Foi isso que os mortais fizeram com o
corpo, disse Merlim. E impossível enxergar a verdade do corpo
humano — que ele é um rio de consciência que circula através do
tempo — porque muito peso do passado acumulou-se nele.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Para vivenciar esta lição, você precisa esquecer seu nome durante
algum tempo. Digamos que Quem sou eu? é uma pergunta real
agora. Livrar-se do nome e da forma significa descobrir quem você
realmente é. Na maior parte do tempo nós nos vivenciamos através
da limitação. Desempenhar um papel é uma limitação, e, no entanto,
todo mundo entra e sai de diferentes papéis o tempo todo. Lembre-se
de quando você era criança, e sua mãe, todo-poderosa. Não lhe
ocorria que ela tivesse outra vida além de ser Mamãe; a identidade
dela estava
43
fixada na sua mente. Somente depois de crescer é que você
percebeu que ela desempenhava outros papéis, como esposa, irmã,
filha, profissional liberal, e assim por diante. É difícil para a maioria
das crianças aceitar o fato de que as mães vivem vidas que não estão
inteiramente centralizadas na maternidade, tal o egocentrismo
natural de todas as crianças pequenas. Mas com o tempo
aprendemos a nos inserir em nossos papéis seguindo o exemplo dos
nossos pais.
Assumir mais papéis parece uma maneira de expandir nossa
experiência. Uma mulher que fosse apenas mãe acharia a vida
sufocante. Ser "completo" na nossa sociedade significa usar o maior
número possível de chapéus. Mas o mago encara a situação de uma
maneira completamente diferente. Para ele, ser completo significa
estar livre de todos os papéis.
— Sou um espírito livre, reduzido à aparência deste pequeno
corpo — diria Merlim. — Você pode envolver o sol com o polegar e o
indicador, mas mesmo assim a luz dele não cobre o céu?
Deixar de desempenhar papéis é um processo complicado, mas
você não pode ingressar no mundo do mago se você se definir
através dos papéis que desempenha. Qual é então a experiência de
se libertar totalmente dos papéis? Ela é na verdade bem simples.
Quando você acorda pela manhã, antes de começar a pensar no seu
dia, existe um momento em que você apenas se sente desperto, sem
que nenhum pensamento particular passe pela sua cabeça. Você é
apenas você, num simples estado de percepção consciente. Essa
experiência de simplicidade se repete de quando em quando durante
o dia, mas poucas pessoas notam esse fato, porque estamos
habituados a nos identificar com o processo de pensamento. Este
também prossegue através do dia. Na realidade, porém, você não é o
que você está pensando.
Você pode achar isso difícil de acreditar, mas os pensamentos na
sua cabeça não pertencem a você — eles pertencem ao seu nome,
aos papéis nos quais você se inseriu. Se você for uma mulher
pensando em seu filho, em como ele estará no colégio, no que
preparar para o jantar dele, e assim por diante, você não está tendo
esses pensamentos. É a Mãe que está. Se nas horas em que estou
envolvido com minha atividade de médico eu fico
44
pensando em diagnósticos, receitas, e assim por diante, é o Médico
que está tendo esses pensamentos. Mãe e médico são papéis úteis, é
claro, mas eles chegam ao fim, e, um dia, cada um de nós depara
com o enigma Quem sou eu? que nunca foi respondido, por melhor
que tenhamos desempenhado nossos papéis.
Não obstante, você pode escapulir dos papéis por um breve
espaço de tempo. Enquanto você lê esta página, dirija a atenção para
aquele que está lendo. Ou, enquanto estiver ouvindo música, volte a
atenção para aquele que está ouvindo. Ou, se você vir um arco-íris,
aviste aquele que está vendo. Em todos esses casos, você sentirá
imediatamente uma consciência que está alerta, desperta, isenta,
silenciosa, e contudo intensamente viva. O que você fez na verdade?
Você interrompeu o ato da observação para olhar de relance para o
observador. Este truque fornece um insight da absoluta certeza da
sua existência, porque além de toda a observação jaz o observador
imutável. Esse observador é o fator intemporal de cada experiência
temporal, e esse observador é você.
Ser intemporal pode ser uma perspectiva assustadora se você
estiver fortemente identificado com os papéis que desempenha.
Inúmeras pessoas ficam arrasadas quando perdem o emprego,
quando os filhos crescem e saem de casa, quando o cônjuge muito
amado morre. O^enso do^& 39;Eu" dessas pessoas está de tal modo
ligado aos seus nomes, rótulos e papéis, que elas não tiveram tempo
de descobrir quem realmente são.
Ser totalmente humanos nos torna reais. A realidade não pode ser
definida, só pode ser experimentada. Fique atento a esses breves
momentos do dia em que você vivência seu eu fundamental por trás
de um alento, um sentimento, uma sensação. Antes de pular da cama
amanhã, veja se consegue captar a fugidia sugestão de ser, pura e
simplesmente, antes que a mente comece a tagarelar. Esse estado
sereno, silencioso e inominável é extremamente satisfatório. Ele não
pode ser tocado pelo pensamento, pela fala ou pela ação. Ele é o
castelo cujos muros nenhum exército jamais conseguirá escalar, e
que abriga o tesouro onde estão guardadas as verdadeiras riquezas
da vida.
45
5~ Lição
Os magos não acreditam na morte. A luz da
consciência, tudo está vivo.
Não existem inícios ou fins. Para o mago, eles não
passam de elaborações mentais.
Para viver mais plenamente, é preciso morrer para o
passado.
As moléculas se dissolvem e se extinguem, mas a consciência
sobrevive à morte da matéria na qual ela viaja.
Todas as histórias a respeito de Merlim, mesmo as mais confusas,
tinham como certo que ele vivia às avessas no tempo. Na sua época,
isso causava uma grande consternação entre os mortais. O velho
mago gritava "Cuidado!" um segundo depois de Artur ter derramado
água quente em si mesmo. Ele aparecia inesperadamente nos
enterros e dava pancadinhas debaixo do queixo do cadáver como se
este fosse um bebé recém-nascido. Se isso já não fosse estranho o
bastante, os aldeões sussurravam que Merlim fora visto nos
cemitérios oferecendo presentes de bati-zado às lousas das
sepulturas.
—Você pode me explicar por que você vive às avessas no tempo?
— perguntou certa vez o menino Artur.
—Porque todos os magos vivem assim —respondeu Merlim.
—E por quê?
—Porque essa é a nossa escolha. Ela tem muitas vantagens.
—Não consigo ver nenhuma — insistiu Artur, pensando nos
estranhos hábitos de Merlim, como o de tomar o café da manhã
antes de ir para a cama.
46
—Venha, vou lhe mostrar — disse Merlim, saindo com Artur da
gruta de cristal. Era um dia quente de verão, o sol estava a pino e as
rosas silvestres curvavam-se, quase tocando o chão.
—Agora — disse Merlim, entregando uma pá ao menino. —
Comece a cavar uma vala daqui até ali, e não pare enquanto eu não
mandar.
Artur pôs mãos à obra, cavando com toda a força. Uma hora
depois, estava exausto, mas Merlim ainda não havia dito para ele
parar.
—Já é suficiente? — perguntou o menino. Merlim olhou para a
vala, que devia ter mais ou menos dois metros de extensão por
sessenta centímetros de profundidade.
—Sim, já está bom — respondeu Merlim. — Agora encha o buraco
de novo.
Apesar de acostumado a obedecer, Artur não gostou muito dessa
ordem. Suando e de cara amarrada, ele labutou debaixo do sol
causticante até encher inteiramente a vala.
—Sente-se agora do meu lado — disse Merlim. — O que você
achou desse trabalho?
—Completamente despropositado — deixou escapar Artur.
—Exatamente, e o mesmo acontece com quase todo esforço
humano. Mas a falta de propósito só é descoberta tarde demais,
depois que o trabalho já foi feito. Se você vivesse às avessas no
tempo, você teria percebido que cavar aquela vala era despropositado
e não teria nem começado o trabalho.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
As lendas da época arturiana que afirmavam que Merlim vivia às
avessas no tempo eram uma simplificação. Os narradores de mitos
de antigamente adoravam surpreender, e qualquer leitor que
tentasse decifrar o significado de viver às avessas no tempo se
maravilhava com a estranha criatura que Merlim realmente era. Em
decorrência disso, alguns o tomavam por um profeta ou adivinho.
Poder-se-ia dizer que qualquer profeta vivia às aves47
sas no tempo, visto que os profetas parecem vivenciar o que ainda
vai acontecer.
Mas num nível mais profundo, a mente medieval considerava que
viver às avessas no tempo representava um desafio ao ciclo natural
de nascimento e morte. Alguém que fica mais jovem a cada dia,
livrou-se das leis imutáveis que fazem com que todos os seres vivos
degenerem e morram. Ao que tudo indica, o dia do nascimento do
mago é aquele em que ele desaparece da face da terra, supondo-se
que ele venha a morrer um dia.
Para esclarecer esse paradoxo, precisamos compreender o tempo
como o mago o vivência.
—Vocês, mortais, extraíram seu nome da morte — declarou
Merlim na gruta de cristal. — Vocês seriam chamados imortais se
acreditassem ser criaturas da vida.
—Isso não é justo — protestou Artur. — Não escolhemos a morte.
Ela nos foi imposta.
—Não, vocês estão apenas acostumados com ela. Todos vocês
ficam velhos e morrem porque vêem os outros envelhecerem e
morrerem. Livrem-se desse hábito desgastado, e vocês deixarão de
ficar presos à rede do tempo.
—Nos livrarmos da morte? Como podemos fazer isso? —
perguntou Artur, curioso.
—Para começar, recue à origem do seu hábito. Lá você
encontrará o raciocínio falso que o convenceu inicialmente a ser
mortal. O raciocínio falso jaz na raiz de qualquer crença falsa.
Descubra então o defeito da sua lógica e destrua-o. Tudo é muito
simples.
Artur passou à lenda como o "antigo e futuro rei", uma indicação
de que ele também escapara ao feitiço da morte. O que ele
encontrou? Qual a falsa lógica que os magos enxergam atrás da
mortalidade? Basicamente, é nossa identificação com p corpo. O
corpo humano nasce, envelhece e morre. A identificação com esse
processo é uma lógica falsa, mas, uma vez abraçado, ele nos condena
a morrer também. Sucumbimos ao encantamento da mortalidade e
nossa única escolha é nos submetermos à morte.
Para quebrar o feitiço, precisamos deixar de nos identificar com o
temporal e passar a nos identificar com o intemporal. Por
48
conseguinte, o mago empreende uma jornada para descobrir a
verdade sobre o tempo — este é o verdadeiro significado da lenda
que diz que Merlim vivia às avessas no tempo. Ele queria recuar à
origem do tempo.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Na experiência do mago, o tempo é apenas a eternidade
quantificada.
— Todos estamos rodeados pelo intemporal — afirmou Merlim. —
A questão é: O que fazer com isso?
Fragmentar o intemporal em pequenas partes cria o tempo, e
essa é a nossa tendência. O tempo, para nós, corre de uma maneira
linear. Os relógios marcam segundos, minutos e horas, registrando a
longa marcha do passado através do presente e em direçãoao futuro.
Essa concepção linear do tempo foi desbancada por Einstein, quando
ele provou que o tempo é relativo, que tem a capacidade de acelerar
ou desacelerar.
Além de se parecer um pouco com Merlim, Einstein deve ter de
fato penetrado no mundo do mago para propor essa noção
espantosa. Ele podia sentir a teoria da relatividade, confessou
Einstein, muito antes de poder demonstrá-la matematicamente.
Todos sentimos o tempo como algo fluido e relativo — ipakjuer
experiência feliz faz com que ele ande mais rápido, qualquer
experiência dolorosa faz com que ele ande mais devagar. Um dia
com o ser amado parece um segundo, uma manhã na cadeira do
dentista, uma eternidade.
Mas essa nova maneira de perceber o tempo pode realmente nos
fazer transcender a morte? Para o mago, a morte é meramente uma
crença. A relatividade nos permite modificar nossa crença no tempo
linear. Não é difícil imaginar outros exemplos que nos permitiriam
acreditar na imortalidade. Se você encarar o universo, por exemplo,
como um grande depósito de energia, então, do ponto de vista da
energia, nada perece, porque a energia não pode ser destruída. Você
sempre estará presente como energia.
49
—Mas eu não quero ser energia — protestou Artur quando
defrontado com essa lógica.
—Esse é seu erro fatal — salientou Merlim. — Como você se
identifica com o corpo, você acha que precisa de uma forma. A
energia é informe, de modo que você acha que ela não pode ser
você. Mas eu só estava mostrando que a energia não pode nascer;
ela não tem início nem fim. Enquanto você achar que você teve um
início, você não encontrará sua parte imortal, que precisa nunca ter
nascido para que possa não morrer nunca.
Contemplando a expressão abatida do menino, Merlim declarou
mais moderadamente:
— Não estou roubando seu corpo para instituir que você é
informe. Você só precisa enxergar o informe dentro da forma, e
depois você pode ter a imortalidade em meio à mortalidade.
As moléculas se formam e se dissolvem, retornando ao caldo
primordial de átomos. Mas a consciência sobrevive à morte das
moléculas nas quais ela viaja. O que antes era um feixe de energia
num raio de sol transforma-se numa folha, vindo depois a cair e
transformar-se novamente em solo. Essa mudança de estado
atravessa muitas fronteiras. O raio de sol é invisível, ao passo que as
folhas e o solo são visíveis. A folha está viva e se desenvolve,
enquanto os raios de sol não. As cores da luz, da folha e do sol são
diferentes, e assim por diante.
Mas todas essas transformações existem como elaborações da
mente. A verdadeira energia presente no raio de sol não vivência
nenhuma transformação — ela é simplesmente parte da constante
interação de fótons e elétrons que tudo sustenta, quer a percebamos
como morta ou viva. A ciência moderna já conduziu nossa mente à
nova perspectiva adequada; agora temos que aprender a vivê-la. Os
pensadores de visão ampla como Einstein só podem nos ajudar a
superar as barreiras mentais; somos nós que temos que sobrepujar
as barreiras emocionais e instintivas.
O medo emocional da morte é uma dessas barreiras. Na
concepção dos magos, todo o fenómeno da morte está ligado ao
medo, embora esse medo esteja tão profundamente enraizado que
seus efeitos não são imediatamente óbvios. Um simples exercício,
porém, pode revelar esse fato para você. Sente-se com
50
uma pilha de várias folhas de papel num local tranquilo em que você
não vá ser distraído. Coloque a ponta de uma caneta sobre a
primeira folha de papel e prometa a si mesmo não erguer a caneta
durante cinco minutos. Comece a escrever as palavras "Tenho medo
de" e termine a frase como quiser.
Sem erguer a caneta, escreva novamente as mesmas palavras,
"Tenho medo de" e novamente termine com qualquer coisa que lhe
venha à mente. Enquanto fizer isso, respire lenta e ritmicamente sem
fazer pausas intermediárias. Essa respiração na qual a inalação e a
exalação estão ligadas é às vezes chamada de circular. Desde a
antiguidade, esse tipo de respiração refletida é considerada uma
forma de evadir as inibições da mente consciente. Sem essa técnica,
seria muito mais difícil alcançar o nível inconsciente do medo.
Enquanto você executa a respiração circular, inalando e exalando
sem fazer pausas, continue a completar o início das frases, "Tenho
medo de" sem parar e sem levantar a caneta do papel. Depois que
você se soltar e começar a escrever seus medos ocultos, talvez você
ache difícil parar.
Se você estiver fazendo livremente o exercício, deixando que seus
pensamentos simplesmente se expandam sem tentar controlá-los,
você descobrirá muitas associações estranhas e imprevistas com o
medo. E esses receios inesperados trarão consigo outras emoções,
não apenas o medo mas também a raiva, o sofrimento e um grande
alívio. Temores enclausurados podem começar a fluir.
Deixe que tudo emerja, mas volte sempre à respiração e não
levante a caneta do papel enquanto não tiver terminado. Uma
advertência: se você começar a sentir um mal-estar, pare. No final
do exercício, também é uma boa ideia deitar-se e descansar para
recuperar o equilíbrio habitual. Considero este exercício
extremamente eficaz na primeira vez que é executado, mas ele
poderá ser repetido sempre que você quiser.
Qual a relação disso tudo com a perspectiva de imortalidade do
mago? Poderíamos dizer que dedicar ao medo uma sessão de cinco
minutos é como descascar uma camada de um sistema de crenças. A
imortalidade está no âmago da vida humana, mas está envolvida em
inúmeras camadas de convicções contrárias. Es51
sas convicções tornam-se concretas na vida cotidiana — vivemos
nossos medos, desejos, sonhos, associações inconscientes e, em última
análise, nossa crença mais profunda de que devemos morrer. A mente
racional provavelmente defenderia essa posição alegando que a morte
está presente em toda parte na natureza.
Mas Merlim diria:
— Examine mais de perto suas dúvidas racionais. Atrás das dúvidas
situa-se o que duvida, atrás daquele que duvida o pensador, atrás do
pensador uma partícula de consciência pura que precisa estar
consciente antes que qualquer pensamento possa surgir. Eu sou essa
partícula de consciência. Sou imortal e imune ao tempo. Não especule
apenas sobre mim, julgando se deve me aceitar ou rejeitar. Mergulhe
interiormente, descasque suas camadas de dúvida. Quando finalmente
nos encontrarmos, você saberá quem eu sou. E então a imortalidade
não será simplesmente uma noção e sim uma realidade viva.
52
6a Lição
A consciência do mago é um campo que existe em
toda parte.
As correntes de conhecimento contidas no campo são
eternas e circulam eternamente.
Séculos de conhecimento estão comprimidos em
momentos reveladores.
Vivemos como ondulações de energia no vasto oceano de
energia.
Quando o ego é posto de lado, temos acesso à totalidade
da memória.
Certa manhã, Artur acordou muito cedo, tremendo em sua cama de
palha, e deu com Merlim olhando para ele do outro lado da gruta.
—Eu estava tendo um sonho mau — resmungou Artur. — Eu era a
última pessoa na face da terra e vagava por florestas e ruas vazias.
—Sonho? — disse Merlim. — Não foi um sonho. Você é, de fato, a
última pessoa sobre a terra.
—Como assim? — perguntou Artur.
—Você não concordaria que a única pessoa na terra também teria
que ser a última pessoa?
-Sim.
— Bem, do ponto de vista da sua auto-imagem, que as
pessoas no futuro chamaram de ego, você é o único.
53
— Como você pode dizer isso? Você e eu estamos juntos
aqui, não estamos? E visitamos vilarejos e cidades que abrigam
milhares de pessoas.
Merlim sacudiu a cabeça.
— Se você olhar verdadeiramente para si mesmo, o que você
é? Uma criatura de experiências que estão constantemente se
transformando em memórias. Quando você diz & 39;Eu& 39;, você está
indicando esse feixe único de experiências com sua história
particular que mais ninguém pode compartilhar.
"Nada parece mais pessoal do que a memória. Você e eu
percorremos caminhos separados, embora caminhemos juntos. Não
posso contemplar uma flor sem ter uma experiência da qual você não
participa. Não existe uma única lágrima ou sorriso que possa
verdadeiramente ser dado a outra pessoa."
Quando Merlim terminou seu discurso, Artur parecia angustiado.
—Você faz com que todo mundo pareça totalmente sozinho —
comentou o menino.
—Eu não — replicou Merlim. — É o trabalho do ego que o torna
solitário, encerrando-o num mundo no qual ninguém mais pode
entrar. Reparando na angústia do discípulo, Merlim amaciou a voz.
— No entanto, o ego pode ser posto de lado. Venha comigo.
Não amanhecera, e ele se levantou e saiu com Artur da gruta,
mostrando ao menino o céu ainda todo estrelado.
—A que distância você supõe que esteja aquela estrela? —
perguntou o mago, apontando para a estrela Sírio. Eram meados do
verão, e Sírio estava brilhante e baixa em relação ao horizonte.
—Não sei. Suponho que ela esteja mais distante do que eu possa
medir, ou possivelmente imaginar — respondeu Artur.
Merlim sacudiu a cabeça.
— Não existe nenhuma distância. Considere o seguinte: para
que você veja aquela estrela, a luz precisa entrar em seu olho,
certo? Feixes luminosos fluem continuamente de lá para cá,
como uma ponte invisível. O que é uma estrela a não ser luz? Por
conseguinte, se ela é luz tanto aqui quanto lá, e também na ponte
de ligação, não existe separação entre você e aquela estrela.
Ambos são parte do mesmo campo de luz inconsútil.
54
— Mas ela parece estar muito longe. Afinal de contas, não
posso arrancá-la do céu — objetou Artur.
Merlim deu de ombros.
— A_sep_aração é apenas umajhisão. Você parece estar
separado de mim e das outras pessoas porque seu ego adouFã
perspectiva de que estamos todos isolados e sozinhos. Mas~eú
lhe garanto que se você pusesse seu ego de lado, você nos veria
circundados por um campo infinito de luz, que é a consciência.
Cada pensamento seu nasce num vasto oceano de luz e a ele
retorna, junto com cada célula do seu corpo. Esse campqjie
consciência está em toda parte, uma ponte invisível para tudo o
mais que existe.
"Portanto, não existe nada em você que não seja parte_de todas
as outras pessoas — exceto na visão do ego. Seu trabalho é
transcender o ego e mergulhar no oceano universal de consciência."
Artur ficou pensativo.
— Terei que pensar no que você disse.
— Faça isso. — Merlim bocejou. — Ainda estou com sono.
O mago voltou-se para entrar na gruta aquecida e aconche
gante.
—Oh, já ia me esquecendo, antes de voltar para a cama, será que
você pode pendurar de novo aquela coisa?
—Coisa? — Artur olhou para baixo, surpreso, e percebeu que a
estrela Sírio havia sido arrancada do céu e deixada a seus pés.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
Como já vimos, o ego assumiu a função de selecionar e rejeitar
experiências. Em decorrência disso, o ego cria o isolamento, uma vez
que qualquer coisa que seleciona e escolhe cria uma lacuna. Entre
você e algo que você rejeitou, existe uma lacuna. Entre você e mim
também existe uma lacuna, porque escolhemos não ter a mesma
experiência — nossos egos são separados. Todos temos como certo
que não poderíamos possivelmente compartilhar experiências, pelo
menos não totalmente. Não
55
posso entrar em todas as suas emoções, medos, desejos e sonhos,
nem você nos meus. O melhor que geralmente fazemos é tentar
construir pontes de comunicação, que amiúde demonstram ser
fracas demais para se susterem. As coisas mais pessoais a seu
respeito desde que você nasceu, suas lembranças e experiências,
conduzem à solidão e ao isolamento.
Entretanto, o mago nunca está isolado, porque o ego não penetra
na maneira como ele vê as coisas. Ego aqui significa a sensação de
um "Eu" pessoal, incompartilhável. Merlim disse certa vez ao menino
Artur:
—Tente se esquecer de mim se você puder.
—O quê? — indagou Artur, surpreso. — Eu nunca poderia
esquecê-lo, e não quero fazê-lo.
Ele ficou ansioso, imaginando que Merlim estivesse de alguma
maneira rejeitando-o.
—Você quer me esquecer? — perguntou ele.
—Oh, absolutamente — retrucou calmamente Merlim. — Veja,
quero que sejamos amigos, e se eu me lembrar de você, o que terei?
Não o verdadeiro você, mas sim uma imagem morta. Mas enquanto
eu puder me esquecer de você diariamente, acordarei e verei você
mais uma vez no dia seguinte. Verei o verdadeiro você, despido de
imagens desgastadas.
Pôr o ego de lado significa pôr a memória de lado. Quando isso é
feito, as pessoas deixam de ficar isoladas. A mente individual limita
nossa percepção, fazendo com que olhemos o mundo como se
através de um olho mágico. No mundo do mago, todos compartilham
a mesma consciência universal. Ela flui eternamente e abarca todos
os pensamentos, emoções e experiências.
—Na medida em que você é uma pessoa — ensinou Merlim —,
você é como uma gota no oceano. Na medida em que você é parte da
consciência universal, você é todo o oceano.
—A gota individual simplesmente não se dissipa e se perde no
oceano? — perguntou Artur.
—Não, o indivíduo nunca pode ser obliterado, nem mesmo
através da experiência do oceano da consciência — Merlim lhe
assegurou. — Você pode ser você mesmo e ser ao mesmo tempo o
Todo. Isso pode parecer um mistério, mas é assim que é.
56
VIVENDO COM A LIÇÃO
Todos nos agarramos à memória porque elanos define. Mas para
eliminar a separação e o isolamento, você precisa estar disposto a ver a
irrealidade da memória. Pense em alguém que você conhece bem —
seu marido ou esposa, um irmão ou um amigo. Pense detalhadamente
nessa pessoa e pergunte a si mesmo o que você realmente sabe a
respeito dela. Vá além de meros fatos, como a cor dos olhos, o peso, o
trabalho ou o endereço dessa pessoa. Em vez disso, pense a respeito
de características mais pessoais, do que ela gosta e não gosta, de
lembranças e interações vívidas.
Quando você terminar este exercício, você poderá supor que formou
um retrato acurado dessa pessoa. Entretanto, tudo que você recordou
veio da sua memória, e, por conseguinte, o que você descreveu é seu
ponto de vista individual. Essa mesma pessoa poderia ser descrita de
uma maneira completamente diferente a partir de outra perspectiva.
O que parece provável para você é improvável para outras pessoas,
aquilo de que você se lembra pode ser completamente olvidável aos
olhos de um outro indivíduo.
Você não precisa ir muito longe para compreender que tudo que
você descreveu é totalmente relativo. A ideia que você faz de alto
equivale à noção de baixo ou normal de outra pessoa, o pesado pode
ser encarado como leve, o claro como escuro, o amigável como hostil,
e assim por diante. Você está na verdade descrevendo sua perspectiva,
não a pessoa. Além disso, suas experiências com aquela pessoa são
exclusivamente suas, o que torna sua descrição ainda mais
idiossincrásica. Se tudo que você julgava saber a respeito de outra
pessoa acabou estando indire-tamente relacionado com você, é óbvio
que a memória serve para isolar. Nós fragmentamos o mundo através
da maneira pessoal como o encaramos, criando conchas de isolamento
nas quais ninguém consegue penetrar totalmente.
57
Por ser completamente relativo, seu ponto de vista não pode ser
considerado real. A realidade não depende de um ponto de vista — ela
simplesmente é. E quase todos nós que vivemos dentro do nosso
mundo particular, não entramos em contato com muita frequência com o
real. O irreal é o habitat dos sentidos; o real é o habitat do mago. Você
precisa olhar atrás da cortina da memória para começar a descobrir a
verdadeira trama da realidade.
58
7- Lição
Quando as portas da percepção forem purificadas, você começará
a enxergar o mundo invisível — o mundo do mago.
Existe dentro de você um manancial de vida onde você pode
purificar-se e transformar-se.
Purificar-se consiste em livrar-se das toxinas da sua
vida: emoções tóxicas, pensamentos tóxicos
e relacionamentos tóxicos.
Todos os corpos vivos, físicos e sutis, são feixes de energia que
podem ser diretamente percebidos.
Certo dia de verão, quando Merlim e Artur descansavam sonolentos
à beira de um riacho, o mago disse:
— Li um poema quando era menino, há muito tempo no
futuro. Será que você gostaria de ouvi-lo?
Artur fingiu estar dormindo, cobrindo o rosto com a mão para
proteger-se do sol de julho. Sempre que Merlim falava sobre o futuro
como seu passado, o menino necessitava de uma boa dose de
concentração para acompanhá-lo.
— Você não precisa fingir que não está ouvindo — prosse
guiu Merlim —, pois este poema é belo demais para ser despre
zado:
E se você dormisse, E se,
em seu sono, você sonhasse? E se,
59
em seu sonho,
você fosse até o céu
e lá colhesse
uma bela e estranha flor?
E se,
quando você acordasse,
você tivesse a flor
na mão?
E então?
COMPREENDENDO A LIÇÃO
Quando acordamos, fixamos a atenção nas visões e nos sons do mundo
material, de modo que é fácil supor que o corpo físico é o único corpo
que temos. O que é um corpo? A definição mais ampla seria uma
coleção de células trabalhando em conjunto para formar uma unidade
mais vasta. Por ser muito maior do que a soma de suas partes, o corpo
pode agir, pensar e sentir de maneiras absolutamente impossíveis
para uma única célula.
Apliquemos esta definição a algo inesperado — os sentimentos.
Diariamente você tem sentimentos isolados que são como células
individuais; reúna-os, e você terá seu corpo emocional. Ele é, em
primeiro lugar, uma história viva de todas as coisas que você gosta e
não gosta, bem como dos seus temores, esperanças, desejos e assim
por diante. Se seu corpo emocional pudesse andar pela sala, seus
amigos o reconheceriam imediatamente, visto que o corpo emocional
nos confere uma enorme parte da nossa identidade.
Outros corpos, também invisíveis, ampliam nossa singularidade. Há
o corpo de conhecimento, que vem crescendo com você desde que você
nasceu. Você pode chamá-lo de corpo mental. O conhecimento é mais
sutil do que as emoções, uma vez que é formado de conceitos
abstratos. Porém ainda mais sutis são todas as razões que você tem
para viver, suas convicções mais profundas a respeito da existência e
da natureza da
60
vida, que estão armazenadas em seu corpo causal, a parte de você
que lhe permite compreender a existência. Nele residem as sementes
mais profundas da memória e do desejo.
Todos esses corpos são exclusivamente seus. Se seu corpo mental e
causal pudessem entrar numa sala, você também seria imediatamente
identificável. Portanto, a identidade — seu sentimento de ser "Eu" —
emana da sua percepção desses corpos. O mago sabe que esse brilho se
desloca do corpo mais sutil para o mais denso. 0^& 39;Eu" com o quaWocê
sejdentifica é criado inicialmente por suas crenças e razões para viver
(corpo causal), que dão origem às ideias (corpo mental) e sentimentos
(corpo emocional). Somente no final da sequência o corpo físico recebe
o impulso da vida. Como disse Merlim:
— Os mortais acreditam ser máquinas físicas que aprenderam a
pensar. Na verdade, eles são pensamentos que aprenderam a criar uma
máquina física.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Sob o aspecto prático, esse conhecimento encerra enormes
implicações. Se você supuser que é acima de tudo um ser físico, você
viverá a vida de uma maneira completamente diferente de alguém que
se considere fundamentalmente um ser sutil.
Artur e Merlim voltavam para casa após uma viagem a Questing
Wode, a densa floresta que era o domínio do mago. Como de costume,
Artur estava muito mais cansado do que Merlim depois do esforço; ele
se deitou debaixo de uma árvore para tirar um cochilo. No entanto,
tão logo havia fechado os olhos, sentiu que alguém estava lhe
cutucando as costelas.
— Que é? — resmungou ele, sonolento. — Deixe-me dormir.
Cutucando-o de novo com um bastão de aveleira, Merlim
sacudiu a cabeça do menino.
—Você precisa estar forte para a última etapa do percurso. Se você
tirar um cochilo, ficará exausto.
—Exausto? É exatamente por estar exausto que estou tentando
cochilar — replicou Artur.
61
—Ah, mas você trabalha muito mais dormindo do que acordado —
disse Merlim. Ele sabia que esse comentário despertaria a
curiosidade de Artur, e depois de se virar de um lado para o outro
algumas vezes na grama macia, o garoto se sentou.
—Que tipo de trabalho eu faço durante o sono? Por que não tenho
consciência disso? — perguntou ele.
—Oh, todos os tipos de trabalho — retrucou Merlim de um modo
casual. — Quando você dorme, seu corpo físico descansa e se renova.
Nos sonhos, o corpo emocional concretiza seus desejos, temores,
esperanças e fantasias. O corpo causal retorna ao mundo de luz, que
algumas pessoas percebem como o céu. Outras, contudo, o
percebem como a solução repentina de um problema ou um insight
inesperado que elas têm ao acordar. De todas essas maneiras, você
está reajustando a intricada coordenação existente entre seus
corpos.
"O ato mais criativo que você pode executar é o ato de criar a si
mesmo. Ele tem lugar em incontáveis níveis, visíveis e invisíveis. Ele
dirige toda a inteligência do universo, comprimindo bilhões de anos
de conhecimento em cada segundo da vida.
"Você não compreende", disse Merlim a seu discípulo, "que a
história do universo o trouxe aqui neste segundo? Somos os filhos
privilegiados da criação, para quem tudo isso foi feito."
Se sua verdadeira origem situa-se no mundo sutil e invisível em
vez de no mundo físico, então seu corpo não é na verdade formado
por células. Elas não são as partes componentes da vida, e o mesmo
podemos dizer com relação aos átomos e moléculas nos quais as
células podem se desmembrar. O corpo é construído sobre
abstrações invisíveis chamadas informação e energia — ambas
contidas em seu ADN.
Mas o mago esmiuça ainda mais profundamente o mundo
invisível, sabendo que as crenças mais profundas são as forças
criativas mais poderosas. Seu corpo físico surgiu do impulso
impetuoso da vida contido no ADN. Sem esse impulso, as
informações e a energia são inertes. Analogamente, seus pensamentos
e emoções penetram no mundo oriundos dos impulsos
invisíveis de inteligência que formam seu corpo mais sutil, o corpo
causal.
62
De acordo com os magos, o motivo de dormirmos à noite é
organizarmos esses corpos depois do esforço exercido quando
estamos despertos e ativos.
Mas o trabalho mais sutil de todos é executado no puro silêncio.
Na próxima vez em que você notar um momento passageiro de
tranquilidade no qual você não tenha pensamentos, desejos ou
sentimentos, não o considere um momento de distração. Sua
consciência deslizou entre as fissuras dos corpos físico, emocional,
mental e causal. No silêncio profundo, retornamos à causa última, ao
Ser puro. Ali você se vê frente a frente com o útero da criação, a fonte
de tudo que existiu, existe ou existirá, que é simplesmente você.
63
8- Lição
O poder é uma faca de dois gumes.
O poder do ego busca controlar e dominar.
O poder do mago é o poder do amor.
A sede do poder é o eu interior.
O ego nos segue como uma sombra escura. Seu poder é
inebriante e sedutor, porém essencialmente destrutivo.
O eterno conflito de poder termina na unidade.
Pouco antes de deixar a proteção de Merlim, Artur ficou muito
melancólico. Eleja estava com quase quinze anos, e raramente vira
outras pessoas.
— Você está triste por que vai ficar com eles? — perguntou
Merlim. — Afinal de contas, você pertence à espécie deles.
Artur afastou o olhar.
—Estou triste, mas não é por esse motivo.
—Por que então?
—Quero lhe fazer uma pergunta, mas não sei como fazê-la, ou se
devo fazê-la.
— Faça a pergunta.
Artur mostrou-se hesitante.
— Não é sobre nenhuma lição que você me ensinou. Mas é
uma coisa que desejo saber acima de tudo, quer dizer, se você
quiser me contar... — Ele fez uma pausa, meio sem jeito.
— Talvez você queira saber como é estar apaixonado?
Artur fez que sim com a cabeça, feliz por ter sido salvo pela
intuição de Merlim. O velho mago pensou por um momento e disse:
64
— Em primeiro lugar, não se envergonhe, porque você fez
uma pergunta realmente importante. Quando se está apaixona
do, existe algo que não pode ser captado através de palavras, mas
venha comigo.
Merlim conduziu Artur a uma clareira onde brilhava o sol do
meio-dia. Uma vela acesa surgiu na mão do mago, e ele a ergueu
contra o sol.
—Você consegue ver se ela está acesa ou apagada? — perguntou
Merlim.
—Não — respondeu Artur. O sol estava tão brilhante que a chama
da vela se tornara invisível.
—Mas veja — disse Merlim. Ele colocou uma bola de algodão
perto da vela, e ela se inflamou imediatamente.
—O que tem isso a ver com o amor? — perguntou o rapaz. Mas
Merlim não respondeu. Ele apenas pegou uma flor de genciana
silvestre e espremeu duas gotas de seu sumo sobre os dedos de
Artur.
— Prove — ordenou ele. Artur fez uma
careta.
— É muito amargo.
Merlim levou o rapaz até um lago e lhe disse que lavasse as
mãos.
—Agora prove a água — ordenou ele. — Você sente algum
amargor?
—Não — admitiu Artur. — Mas o que tem isso a ver com o amor?
Novamente Merlim não respondeu, embrenhando-se ainda mais com
o rapaz na floresta.
—Sente-se e fique imóvel — disse ele suavemente. Artur fez como
lhe fora ordenado. Depois de alguns momentos, um camundongo
surgiu furtivamente alguns metros à frente. Uma sombra passou pelo
alto, e antes que pudesse se mover, o camundongo foi arrebatado
por uma águia, que partiu voando com sua presa em direção a um
ninho num penhasco escarpado.
Desconcertado, Artur disse:
— Mas você disse que ia me ensinar o que é o amor. Por
acaso alguma dessas coisas que você me mostrou tem relação
com a minha pergunta?
65
— Ouça — disse o mestre. — À semelhança da vela que se torna
invisível diante do sol, seu ego se dissolverá na força arrebatadora
do amor. Como o sabor amargo que não pode ser detectado quando
é diluído pelo lago, o amargor da sua vida será mais doce do que a
mais doce das águas quando combinado ao amor. E como a presa
devorada pela águia, seu orgulho se tornará um lampejo aos olhos do
amor que o consome.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
O poder do amor é o poder da pureza. A palavra amor é empregada
de muitas maneiras, mas é uma palavra sagrada para o mago,
porque para ele, o amor é "aquilo que dissolve todas as impurezas,
deixando apenas o verdadeiro e o real".
—Enquanto você sentir medo, você não poderá amar de verdade
— advertiu Merlim. — Enquanto você sentir raiva, você não poderá
amar de verdade. Enquanto você tiver um ego egoísta, você não
poderá amar de verdade.
—Como então eu poderei amar? — indagou Artur, por saber que
o medo, a raiva e o egoísmo eram coisas que ele sentia com bastante
frequência.
—Ah, eis o mistério — replicou Merlim. — Por mais impuro que
você seja, o amor irá à sua procura e trabalhará em você até que
você seja capaz de amar.
O amor procura a impureza para poder consumi-la. Não existe
algo como uma pessoa sem amor, existem apenas pessoas que não
conseguem sentir a força do amor. Por ser invisível e continuamente
presente, o amor é mais do que uma emoção ou um sentimento; ele é
mais do que o prazer ou até que o êxtase. O amor é encarado pelos
magos como o ar que respiramos, a circulação em cada célula. O
amor tudo permeia a partir da sua fonte universal.
Eieij)j^exsurjrejTiivpíiDiu_e sejTj^mrjregar_a_ força, o amor tudo
atrai para si. Até no sofrimento, o poder do amor continua seu
trabalho, bem longe da vista do ego e da mente. Comparadas com o
amor, todas as outras formas de poder são medíocres.
66
—Você é tão poderoso quanto um rei? — perguntou Artur a
Merlim.
—O que o faz pensar que um rei possui algum poder? — indagou
Merlim como resposta. — O poder do rei lhe é conferido por seus
súditos, que podem se revoltar a qualquer momento e retomá-lo. É
por isso que todos os reis vivem com medo, eles sabem que tudo
que possuem é na verdade emprestado. O súdito mais pobre do
reino é mais rico do que o rei, ou seja, até que ele se desfaça do seu
poder e se curve diante dele.
O verdadeiro poder na vida é o poder interior. Ser capaz de ver o
mundo à luz do amor, que só pode vir do interior, é viver sem medo,
numa paz inabalável.
O amor encerra muitos segredos que escapam à atenção das
pessoas. Para__receber amor. primeiro_yocê precisa dá-lo JPara_
çertifícar-se de que outra pessoa o ama incondicionalmente, você
não pode impor condições a ela-Para aprender a amar outra pessoa,
você precisa primeiro amar a si mesmo. Grande parte dessas
afirmações parecem óbvias. Por que, então, não agimos de acordo
com esses preceitos?
A resposta do mago é que o amor precisa ser descoberto,
despido das camadas de raiva, medo e egoísmo que o encobrem
como um verniz velho. Para alcançar uma vida de amor total,
purifique a vida que você tem. Não existe uma maneira certa ou
errada de abordar o amor.
— Uma pessoa que procura desesperadamente pelo amor —
disse Merlim — me faz lembrar um peixe que busca desespera
damente a água.
O amor pode estar extremamente ausente da vida, mas é na
verdade o olho do observador, e não o mundo "lá fora", que priva
alguém do amor.
O primeiro passo para alcançar o amor como um aspecto
completo, inabalável da sua vida é redefinir o que você chama de
amor neste momento. Quase todos nós pensamos no amor como
uma atração que sentimos por outra pessoa, como uma força
carinhosa que nos faz sentir queridos, como prazer e alegria, ou
como uma emoção ou sentimento poderoso. Embora o amor seja um
aspecto de todas essas definições, o mago diria que, na melhor das
hipóteses, elas são parciais.
67
— O amor que vocês, mortais, definem precisa esmaecer e
morrer — declarou Merlim. — O suposto amor de vocês vem e
vai embora. Ele se desloca de um objeto de desejo para outro. Ele
rapidamente se transforma em ódio se seus desejos são contra
riados. O verdadeiro amor não pode mudar, ele não está relaci
onado com nenhum objeto, e não pode se transformar em outra
emoção porque, em primeiro lugar, ele não é uma emoção.
Se descartarmos todos os tipos falsos ou superficiais de amor, o
que resta? A resposta começa a emergir com a auto-aceitação. Por
ser uma força interior, o amor é visto inicialmente dentro de você e
dirigido para você.
—Os mortais ficam febris, inquietos e ansiosos com o amor —
disse Merlim. — Se eles não conseguem ter a pessoa amada, eles
acham que vão morrer. Mas o amor não pode torná-lo inquieto, não o
verdadeiro amor, porque ele nunca procura ir para o exterior. O ente
querido mais desejado é apenas uma extensão de você mesmo. O
amor que você acha que vai receber de outra pessoa revela uma
limitação da sua consciência. Para o mago, todas as formas de amor
vêm do eu.
—Isso soa terrivelmente egoísta — objetou Artur.
— Você está confundindo o eu com o ego, quando na realidade o
eu é o espírito — retrucou Merlim. — O egoísmo vem do ego, que
sempre quer possuir, controlar e dominar. Quando o ego diz: "Eu o
amo porque você é meu", ele está fazendo uma declaração sobre a
dominação e a posse, não sobre o amor. Aqueles que aprenderam
verdadeiramente a amar se despiram primeiro do egoísmo. Depois
disso, tem início uma experiência completamente diferente.
— E como ela é? — indagou Artur. — Algum dia irei conhecê-la?
— Um dia, depois que você conseguir superar essa febre agitada,
você verá uma pequena luz em seu coração. No início, ela será
apenas uma centelha, depois a chama de uma vela, finalmente uma
ardente fogueira. Você então despertará, e a chama devorará o sol, a
lua e as estrelas. Nesse momento, não haverá nada além de amor no
universo, mas todo ele estará dentro do seu coração.
68
VIVENDO COM A LIÇÃO
O aprendizado do afastamento do ego envolve três estágios — existem
muitas camadas de isolamento, medo, hábito, egoísmo e raiva que nos
impedem de experimentar o amor como o mago o conhece. O papel
principal no aprendizado do contato com a força universal do amor
pode inicialmente ser assumido por sua mente. Ela pode adotar uma
nova perspectiva, o que pode ser depois seguido pela reeducação das
emoções e das crenças.
Qual a base do novo ponto de vista da mente? Simplesmente que
existe uma força de amor presente em todos os lugares e que você pode
acreditar que ela vai trazer ordem e paz à sua vida. Experimente o
seguinte exercício: saia e contemple o céu cheio de estrelas. Durante
séculos a humanidade tem olhado para esse cenário, considerando sua
incrível estrutura e beleza. Este mapa é um perfeito exemplo da
sistematização da natureza: contemplando o céu noturno, podemos
apreciar o fluxo do tempo que através de bilhões de anos alimentou
cada pequeno passo da vida do universo, desde a organização do
primeiro átomo de hidrogénio, passando pela formação das estrelas, ao
advento do ADN. Nenhum fio foi esquecido nessa enorme extensão de
tempo; cada informação e energia evoluiu de maneira a permitir que
você, o observador, contemplasse um universo que é a imagem viva de
todo o seu passado.
As forças no universo são imensas, estão além do alcance da mente,
e contudo o processo que deu origem aos átomos de hidrogénio, às
estrelas e ao ADN foi extremamente delicado. As coisas poderiam ter
tomado direções muito diferentes; com efeito, poderiam ter avançado
numa infinidade de direções, que não teriam resultado naquilo que
você reconhece como sendo você. O que permite a ocorrência desse
ato estabilizador é a organização e a inteligência. Na visão do mago, a
ordem não pode simplesmente emanar da casualidade; ela é inata na
criação. Assim, as forças titânicas que rodopiam pelo cosmo não
guerreiam entre si; é-lhes permitido existir e evoluir como parte da
tendência da natureza em direção ao crescimento.
Tome agora em conjunto todas essas qualidades:^_ordem^
p^ejjmjjjbrjj^aj2y0.luca.0je a inte]igência-Você está diante de uma
69
descrição do amor. Não é o ideal pojuiax^é_o^amor do mago — a
força que sustenta e alimenta a vida. É aí que a mente~cõ?ne"ça a
compreender que a força do amor é de fato real. Na vida moderna,
nós nos acostumamos à aleatoriedade, à ideia de que a vida é
precária e está ameaçada a todo momento. Mas a história da vida
demonstra que ela sobreviveu por milhões de anos; de fato, ela
parece criar condições para sua sobrevivência através de uma
inteligência profunda que jamais é ameaçada. Por mais hostis que
sejam as condições, a vida é inextinguível.
Você pode aplicar esse insight à sua vida. Imagine seu início,
quando, contra bilhões de probabilidades, um único espermatozóide
conseguiu fertilizar um óvulo no útero da sua mãe. Sua identidade
atual depende inteiramente desse ato. As chances contra essa
ocorrência única a teriam feito parecer impossível, mas aconteceu
sem esforço. Analogamente, você tem sido agredido milhões de
vezes pelo ambiente, pela poluição, radiação, e até por mutações
aleatórias dentro das suas células; qualquer uma dessas agressões
poderia ter encerrado suas chances de sobrevivência em qualquer
momento desde a concepção até o dia de hoje. Entretanto, a
inteligência e o poder organizador existentes dentro de você
superaram com um desembaraço natural esses obstáculos, apesar de
todo o esforço que sua mente consciente possa considerar
necessário para que a vida continue. Na verdade, sua mente
consciente não poderia antever ou planejar como conceber a vida,
mantê-la em andamento ou defendê-la desses terríveis perigos.
Ora, se esse desembaraço natural pode operar no nível
inconsciente e celular, por que não no nível consciente? Você
consegue ver a si mesmo cavalgando a crista da onda da vida? Na
verdade, é isso que você está fazendo neste exato momento. Seus
impulsos pessoais de pensar, sentir e agir são como a crista de uma
onda, que avança constantemente em direção ao futuro, e, contudo,
constantemente se renova a partir das profundezas — o impulso do
amor que continuamente sustenta a vida é como o ímpeto do oceano
que renova cada onda.
Perceber isso é o início da confiança. Se forças titânicas como a
gravidade e as imensas energias que alimentam as estrelas
conseguem coexistir sem se destruir mutuamente, então
70
sua vida será sustentada. O medo e a dúvida dizem que isso não pode
ser verdade; nossa profunda crença no esforço se baseia na noção de
que se não lutássemos para sobreviver, seríamos esmagados pela
indiferença aleatória da natureza. O mago descerra um caminho
diferente, convidando-nos a ingressar num mundo no qual o medo, a
violência e a destruição são reflexos das nossas crenças erróneas. A luz
da confiança, à medida que ela aos poucos vai se desenvolvendo ao
longo do tempo, você descobrirá que é um filho privilegiado do
universo, totalmente seguro, completamente apoiado, inteiramente
amado.
71
9- Lição
O mago vive num estado de conhecimento. Esse
conhecimento dirige sua própria realização.
O campo da consciência se organiza ao redor das nossas
intenções.
O conhecimento e a intenção são forças. O que você pretende
muda o campo ã seu favor.
As intenções comprimidas em palavras envolvem o poder
mágico.
O mago não tenta solucionar o mistério da vida. Ele está
aqui para vivê-lo.
O menino Artur levou um longo tempo para reconhecer completamente
que fora treinado por um mago. Merlim o levara para a
floresta poucas horas depois de ele nascer, e foi somente ao retornar
ao mundo, anos mais tarde, que Artur compreendeu a curiosidade
despertada pela sua associação com um mago.
—Se você realmente conheceu Merlim — diziam as pessoas
(aquelas que se davam ao trabalho de achar que o rapaz não era
simplesmente louco) —, que encantamentos ele lhe ensinou?
—Encantamentos? — perguntava Artur.
—Feitiços, sortilégios, palavras especiais que conferem a Merlim
seus poderes — diziam eles, imaginando que Artur devia estar ou
muito confuso ou muito iludido.
—Merlim ensinou-me algumas coisas a respeito das palavras —
declarou Artur lentamente, ponderando a pergunta. — Ele disse que
as palavras contêm poder, que elas encobrem segredos como
alçapões que encobrem passagens subterrâneas.
72
Essa explicação encerrava uma qualidade sutil, mas as pessoas
ainda não estavam satisfeitas. Elas queriam saber de que modo os
encantamentos de Merlim efetivamente funcionavam.
— Bem — retrucava Artur —, quando eu era um bebé, lembro-me
de Merlim dizendo: "Coma". Quando cresci um pouco, ele disse:
"Ande", e se eu ficava acordado até tarde, ele dizia: "Durma". Até onde
consigo me lembrar, tenho comido, andado e dormido desde então, de
modo que esses devem ter sido encantamentos poderosos, vocês não
concordam?
Ninguém concordava. As pessoas iam embora perguntando a si
mesmas se essas bobagens que o jovem Sir Ector havia assimilado
algum dia serviriam para alguma coisa.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
O poder das palavras não repousa no seu significado superficial e sim
em suas qualidades ocultas. Toda palavra, por exemplo, encerra o
conhecimento e a intenção. Ambos são qualidades mágicas. A magia
do conhecimento é que muitas camadas de experiência, na verdade,
toda uma história, podem ser acondicionadas em poucas sílabas.
—Chame seu reino de Camelot — aconselhou Merlim antes de o
rapaz partir para o mundo.
—Por quê? — perguntou Artur.
—E uma palavra nova que não precisa suportar o peso da história
da maneira como a Inglaterra precisa — respondeu Merlim. — As
pessoas a identificarão com você e com todos os que você reunir à sua
volta. Ela servirá de pedra de toque. No momento em que as pessoas a
pronunciarem, todo o seu reino e todas as suas façanhas se abrirão
para eles, como se ao toque de uma alavanca se abrisse a porta de um
armário cheio de riquezas. — O que veio a ser verdade.
As palavras mais ricas na linguagem abrem passagens ocultas de
significado e conhecimento. Mas a segunda qualidade das palavras, a
intenção, é ainda mais poderosa. Uma intenção estava sendo expressa
quando Merlim, como qualquer pai ou
73
mãe, disse a seu protegido que comesse, andasse e dormisse. Foi através
dessas palavras que todos aprendemos importantes funções, mas agora
que as conhecemos, as palavras deixam de ser necessárias. Você não
diz mais para si mesmo que deve comer, andar ou dormir. A intenção
da palavra foi absorvida por você, e tudo que você necessita agora é de
um lembrete ("Acho que vou dormir agora"), e o resultado desejado
acontece. É realmente correio chamar isso de encantamento, como fez
Artur? Sim, porque quando a intenção de uma palavra é absorvida, um
feitiço é lançado sob a forma de uma impressão mental. Diga a palavra
escola para qualquer pessoa, e imediatamente a experiência de ir à
escola será despertada. O bom aluno fará associações de sucesso e
elogios, e o mau aluno de fracasso e críticas. Toda a nossa vida está
acondicionada dentro de nós como impressões desencadeadas por
palavras.
— Os mortais estão envolvidos pelas palavras da maneira
como a aranha envolve moscas em sua teia — declarou Merlim.
— A diferença é que neste caso vocês são ao mesmo tempo a
aranha e a mosca, porque vocês se aprisionam em sua própria
teia.
Sem dúvida, é verdade que usamos nossas palavras para imprimir
os hábitos que fazem com que a vida prossiga inconscientemente. A
questão de nos identificarmos com nomes e rótulos já foi mencionada;
estes, é claro, são palavras. Mas que palavras nos permitirão
abandonar velhos hábitos e a identificação limitada? Se toda palavra
forma uma impressão na mente, todas as palavras estão fadadas a
serem limitantes?
— O paradoxo das palavras — disse Merlim — é que você
precisa usá-las para disciplinar-se e exercitar-se. Os bebés são
desprovidos das funções de andar, falar e ler. Cabe à mãe e ao pai
educar a criança e prepará-la para o mundo, e isso é feito através
de palavras.
"O problema é que as palavras também trazem consigo um
significado psicológico. É por meio das palavras que os pais fazem as
crianças se sentirem bem ou mal, acharem que estão certas ou
erradas. As mais poderosas expressões que qualquer pessoa pode usar
são sim e não. O efeito dessas duas sílabas é criar limites ou eliminálos.
Todas as coisas que você acha que
74
pode fazer têm um sim embutido dentro delas, geralmente emitido
pelos pais ou um professor num passado distante. Tudo que você
acha que não pode fazer tem um não embutido, originário das
mesmas fontes."
—Por que isso é um paradoxo? — perguntou Artur.
—Porque embora as palavras nos digam quem somos, somos mais
do que elas podem expressar. Por mais poderoso o feitiço lançado
pelas palavras, as pessoas podem mudar. O poder das palavras pode
criar alguma coisa nova, não apenas um limite.
O mago usa palavras para dizer sim a coisas às quais nos
ensinaram a dizer não. Num certo nível, é isso que este livro está
fazendo — tecendo um novo mundo de significados para substituir
antigos significados que nos acompanham desde crianças. Mas
existe aqui um mistério mais profundo. As palavras abrangem tanto
o conhecimento quanto a intenção; por conseguinte, expressar uma
intenção através de palavras é o primeiro passo para transformá-la
em realidade. Dois bons exemplos são a prece e a afirmação. Afirmar
coisas como "Eu sou bom" ou rezar a Deus com palavras como "Faça
com que eu fique curado" é mais do que apenas expressar
verbalmente os pensamentos.
Sempre que uma palavra é respaldada pela intenção, ela penetra
o campo da consciência como uma mensagem ou um pedido. O
universo está sendo avisado de que você tem um certo desejo. Nada
mais é exigido para que os desejos se tornem realidade, porque a
habilidade de computação da consciência universal é infinita. Todas
as mensagens são ouvidas e processadas.
— Os mortais e os magos não são tão diferentes quanto você
possa imaginar — disse Merlim. — Ambos enviam seus desejos
ao campo esperando uma resposta, mas no caso dos mortais, as
mensagens são deturpadas e confusas; no caso dos magos, elas
são claras e transparentes. Nenhuma intenção jamais é des
considerada, mas pode haver obstáculos à sua realização porque
existem muitos conflitos ocultos nelas, todos os conflitos do
coração humano.
75
VIVENDO COM A LIÇÃO
Viver com esta lição significa reconhecer que sua intenção conduz a
um resultado. O mago é alguém que sabe precisamente como
introduzir suas intenções no campo e esperar que elas se tornem
realidade. O restante de nós não é tão consciente. Também estamos
constantemente enviando intenções para o campo, mas o fazemos
inconscientemente. Nossos desejos são aleatórios, repetitivos ou
obsessivos, e tudo isso é um desperdício de energia.
— Vocês, mortais, supõem que precisam se esforçar para tornar
seus sonhos realidade — disse Merlim —, quando, na verdade, a
maior parte do trabalho que vocês fazem impede que seus sonhos se
transformem em realidade.
Do ponto de vista do mago, quanto menos esforço for despendido,
melhor. Em seus ensinamentos, os magos mostram a seus discípulos
como pensar de uma maneira mais organizada, consciente e eficaz.
Para fazer isso, primeiro você precisa eliminar os hábitos de
pensamento que obstruem a capacidade do universo de realizar seus
desejos.
Imagine que sua mente é um radiotransmissor que bombardeia o
campo com mensagens. Se você se sentar em silêncio e observar sua
mente, verá que ela está repleta de sinais embaralhados. Também
temos dúvidas a respeito das coisas que queremos realizar; a pessoa
a quem queremos recorrer também é alguém com relação à qual não
nos sentimos seguros.
Da mesma forma, a mente está repleta de repetições inúteis. Foi
estimado que 90 por cento dos pensamentos que uma pessoa tem
num dia qualquer são os mesmos que os do dia anterior. Isso
acontece porque somos criaturas de hábito, preocupação e obsessão.
Finalmente, a mente está cheia de estática inconsciente, que recua
às profundezas da memória da infância. Você pode estar prestando
atenção apenas aos seus pensamentos conscientes e voluntários,
mas em segundo plano sua mente inconsciente se agita com
esperanças não realizadas e antigos temores e desejos — em
resumo, todas as coisas que não pareceram se tornar realidade no
passado.
76
As intenções são simplesmente desejos, e os desejos estão ligados
àquilo que você precisa. Por conseguinte, toda essa atividade da
mente que não está sendo consumada é formada por antigas
necessidades que não foram satisfeitas. Milhares de vezes no
passado você pensou "eu desejo" ou "eu espero", mas nada parecia
acontecer, ou então aconteciam coisas diferentes, menos desejáveis.
—Gostaria de poder fazer uma faxina no seu cérebro —
resmungou Merlim certa vez quando Artur estava agindo de uma
maneira particularmente confusa. — Seu pensamento deveria fluir
livremente; em vez disso, ele é uma guerra.
—Por que você não pode limpar meu cérebro? — indagou
inocentemente Artur.
—Porque tudo que está dentro dele é você. — Merlim suspirou. —
Você se transformou nesses conflitos velhos e repetitivos, e eles não
desaparecerão enquanto você não mudar.
O primeiro passo em direção à mudança é o reconhecimento.
Reconheça que pelo menos algumas esperanças e desejos seus se
tornaram realidade. Inesperadamente, sem que você tivesse que
fazer nada, pessoas telefonaram exatamente quando você precisava
falar com elas, você recebeu ajuda de onde menos esperava, preces
foram atendidas. Tudo isso está acontecendo no campo. Quando você
tem uma intenção e a envia para a consciência universal, você está
na verdade falando consigo mesmo de outra maneira. Na qualidade
daquele que envia a mensagem, você é um indivíduo que vive aqui no
tempo e no espaço. Mas você também é aquele que recebe a
mensagem, no seu aspecto de eu superior que preside sua identidade
espaço-tempo. E ainda mais do que isso, você é o veículo transmissor
da mensagem, a consciência propriamente dita.
Para você poder ver realmente a si mesmo, você precisa se ver
como possuindo esses três aspectos: o de quem envia, o de quem
recebe e o de veículo transmissor. O tema encerra muitas variações:
você é o desejo, aquele que deseja, e aquele que concede os desejos.
Este estado tríplice é conhecido como unidade. Por conseguinte,
enviar uma intenção ao campo e receber uma resposta não é algo
que você precise se esforçar para alcançar. Em sua natureza
unificada, tudo que você faz é
77
satisfazer as intenções; essa é sua ocupação de tempo integral. Você
não pode ter um único pensamento que deixe de produzir algum
resultado.
O problema é que não conseguimos perceber os resultados que
são excessivamente sutis, que não se encaixam imediatamente nas
nossas metas, que não coincidem com a opinião do nosso ego a
respeito de o que deveria acontecer.
— Vocês, mortais, vivem num mundo de deveria e e se — disse
Merlim. — Eu vivo num mundo de o que é.
Quando você aprende a acalmar a mente e purificá-la de todos os
seus antigos conflitos, a realidade simples de como o universo
funciona — o o que é — se revelará. Vamos falar mais a respeito
deste assunto na Terceira Parte deste livro. Por enquanto, dedique
um pouco de tempo todos os dias a observar o conteúdo da sua
mente. Este ato de observar, embora extremamente simples, é uma
das medidas mais poderosas que você pode tomar para efetuar
mudanças. Você não pode mudar o que você não vê.
Seu ego poderá não gostar de admitir que você está cheio de
negações, conflitos, intenções desordenadas, vergonha, culpa e
todas as outras confusões que obscurecem a mente e a impedem de
enxergar a realidade de o que é. Com efeito, o ego se orgulha da sua
habilidade de esconder essas coisas de você, sob o pretexto de que
você poderá sofrer se contemplar seus erros, falhas e pecados.
O segundo passo é aprender como realizar suas intenções. Os
passos são completamente naturais, mas precisam ser aprendidos.
Faça com que o ego, com todas as suas expectativas e previsões,
recue para segundo plano. Em vez de sentir que você precisa
controlar o resultado da sua intenção, esteja convencido de que o
campo fará o trabalho para você. Liberte sua intenção no campo do
intemporal; quanto mais expandida estiver sua consciência, mais
claro será o sinal que você irá enviar.
Finalmente,//*/^ tranquilo e natural com relação a todo o
processo. Quando todos esses passos se reunirem, sua intenção
penetrará o campo da consciência, que atua como uma matriz que
liga seu pensamento individual a tudo que é. O fluxo desem78
baraçado em direção a um resultado não será ameaçado nem
obstruído pelas ansiedades e apegos do ego temeroso.
Na verdade, nenhum dos aspectos ditos negativos da mente é
pecado.
— Lembre-se sempre — recomendou Merlim ao menino Artur — de
que Deus não julga, é só a mente que o faz.
Ter nossos mais sinceros desejos realizados é o que Deus quer
para cada um de nós; esse é nosso estado natural como criadores da
nossa realidade.
79
10a Lição
Todos possuímos um eu-sombra que é parte da nossa
realidade total.
A sombra não está presente para magoá-lo e sim para mostrar-lhe
onde você está incompleto.
Quando a sombra é abraçada, ela pode ser curada. Quando ela é
curada, ela se transforma em amor.
Quando você puder viver com todas as suas qualidades opostas,
você estará vivendo seu eu total como o mago.
— Você jamais parece se sentir solitário — comentou Artur. Havia
uma ponta de inveja na voz do menino. O mago perscru-tou-o
atentamente.
—É verdade, é impossível ficar sozinho.
—Talvez para você, mas... — O menino se conteve, mordendo os
lábios. Mas seus sentimentos levaram a melhor, e ele desembuchou:
— É bem possível sentir-se sozinho. Não há ninguém na floresta a
não ser você e eu, e apesar de eu amá-lo como se você fosse meu pai,
existem momentos... — Sem saber mais o que dizer, Artur parou de
falar.
—É impossível alguém ficar sozinho — repetiu Merlim com mais
firmeza.
A curiosidade levou vantagem sobre os sentimentos de Artur.
—Não vejo por quê — disse ele.
—Bem, existem apenas duas classes de seres com os quais
precisamos nos preocupar nesta questão — começou Merlim. — Os
magos e os mortais. E impossível para os mortais ficarem sozinhos
porque vocês têm muitas personalidades lutando den80
tro de vocês. É impossível para os magos ficarem sozinhos porque
eles não têm nenhuma personalidade dentro de si.
—Não compreendo. Quem está dentro de mim além de mim
mesmo?
—Em primeiro lugar, você precisa perguntar quem é essa coisa
que você chama de mim mesmo. Apesar da sensação de que você é
uma única pessoa, você é na verdade um composto de muitas
pessoas, e suas múltiplas personalidades nem sempre se dão bem
umas com as outras; aliás isso está longe de acontecer. Você está
dividido em dezenas de facções, cada uma lutando para ocupar seu
corpo.
—Isso acontece com todo mundo? — indagou o menino.
—Oh, sim. Enquanto você não encontrar seu caminho para a
liberdade, você será mantido como refém pelo conflito existente
entre suas personalidades internas. Segundo minha experiência, os
mortais estão sempre deflagrando guerras interiores que envolvem
todas as facções possíveis.
—Ainda assim, sinto que sou uma só pessoa — protestou Artur.
—Não posso fazer nada a respeito disso — replicou Merlim. — A
sensação que você tem de ser uma única pessoa nasceu do hábito.
Você poderia, com a mesma facilidade, ver a si mesmo da maneira
como descrevi. Minha maneira é mais verdadeira, porque explica por
que os mortais parecem tão fragmentados e conflituosos para o
mago. De um modo geral, é tão desconcertante encontrar um mortal,
que frequentemente acredito que estou falando com toda uma aldeia
em vez de com um único pacote de carne e osso.
O menino mostrou-se pensativo.
— Por que então eu me sinto tão solitário? Porque, Mestre,
para dizer a verdade, é assim que me sinto.
Merlim olhou para seu discípulo com um olhar penetrante.
— É de causar espanto que com todas essas pessoas lutando
para ocupar seu corpo você possa em algum momento se sentir
sozinho. Mas cheguei à conclusão que a solidão existe porque as
outras pessoas existem. Enquanto existir "eu" e "você", haverá
um sentimento de separação, e onde existe a separação existe
81
necessariamente o isolamento. O que é a solidão senão outro nome
para o isolamento?
—Mas sempre haverá outras pessoas no mundo — protestou Artur.
—Você está tão certo disso? — replicou Merlim. — Sempre haverá
pessoas, isso é inegável, mas serão elas sempre outras pessoas? Espere
até chegar ao fim do caminho do mago, e conte-me então como você se
sente.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
Se você olhar atentamente para dentro de si, encontrará muitas
personalidades competindo para usar seu corpo. Por exemplo, o conflito
entre o bem e o mal dá origem a duas personalidades chamadas santo
e pecador. Elas nunca param de discutir; um dos lados espera
eternamente ser suficientemente bom para satisfazer a Deus, e o outro
sente eternamente impulsos "maus" que nem sempre podem ser
reprimidos.
A seguir estão os papéis com os quais você se identifica — filho, pai,
irmão, irmã, homem, mulher, sem falar na sua profissão: médico,
advogado, padre, assistente social infantil, e assim por diante. Cada um
desses fez uma reivindicação dentro de você, elevando a voz acima da
dos outros a fim de apresentar um limitado ponto de vista. Repare que
nem mesmo tocamos no seu senso de nacionalidade e identidade
religiosa — esses sozinhos podem causar infinitos problemas.
Essas personalidades estão geralmente em conflito. O que
chamamos de felicidade é um estado no qual grande parte desse conflito
desaparece. Quando você nasceu não havia uma guerra dentro de você,
porque os bebés não estão em conflito por causa de seus desejos. As
vozes do bem e do mal, por exemplo, são inexistentes até o bebé ter
idade suficiente para assimilar esses conceitos dos seus pais.
—Você não pode se tornar um mago enquanto não pensar
novamente como um bebé — declarou Merlim.
—Como é que o bebé pensa? — perguntou Artur.
82
— Basicamente sentindo. O bebé sente quando está com
fome ou com sono. Quando as sensações são apresentadas a ele,
o bebé é capaz de sentir se elas lhe trazem prazer ou dor, e ele
reage em conformidade com o que sente. O bebé não se sente
inibido por desejar o prazer e querer evitar a dor.
—Não vejo nada de especial nisso — disse Artur. — Os bebés
apenas choram, riem, comem e dormem.
—Muitos mortais teriam sorte se fizessem isso depois de adultos
— murmurou Merlim. — Estar aqui neste mundo num estado de
contentamento é uma verdadeira realização.
O instinto inocente do bebé recém-nascido a respeito do que
parece bom ou mau rapidamente se perde. Começam a surgir vozes
dentro dele; no início, a voz da mãe dizendo "sim" e "não", "bebé
bom" e "bebé mau". Quando sim, não, bom e mau estão em
concordância com o que o bebé quer, não existe dano. Mas
inevitavelmente acaba surgindo um conflito entre as necessidades do
bebé e o que seus pais esperam. O mundo interior e o exterior
começam a colidir. Em breve são semeadas as sementes da culpa e
da vergonha; o temperamento destemido do recém-nascido é
manchado pelo medo. O bebé aprende a duvidar de seus instintos. O
impulso interior de "É isso que eu quero" se transforma na
pergunta:"É aceitável que eu queira isso?"
Passamos a vida nos esforçando para voltar ao estado de autoaceitação
no qual naturalmente nascemos. Durante anos as
perguntas se multiplicam, e empurramos nas cavernas secretas e
nos porões escuros da psique a maior quantidade possível de
dúvidas, vergonha, culpa e medo. Esses sentimentos permanecem
vivos, por mais profundamente que os enterremos. Todos os conflitos
internos que temos tanta dificuldade em conciliar reconduzem a um
eu-sombra.
—Sua corte é muito interessante — comentou certa vez Merlim
com Artur, depois de este se tornar rei. — Eu não percebera que
vocês, mortais, têm todos o mesmo emprego.
—E mesmo? — perguntou Artur. — E qual é ele?
—Carcereiro — replicou Merlim, recusando-se a falar mais sobre
o assunto.
Aos olhos do mago, somos todos carcereiros do nosso eu-sombra.
A mente inconsciente é a prisão onde energias indese83
jáveis estão encarceradas, não por imposição, mas por terem sido
marcadas por anos de sim e não, bom e mau. Depois de ponderar as
palavras de Merlim a respeito de ele ser um carcereiro, Artur foi até
o Mestre e disse:
—Não quero ser assim. Como posso mudar?
—Nada mais fácil — retrucou Merlim. — Certifique-se de estar
desempenhando ambos os papéis, o de carcereiro e o de prisioneiro.
Se você for os dois lados da moeda, nenhum dos dois poderá ser
você, pois eles se neutralizam. Reconheça este fato e fique livre.
—Não sei como — protestou Artur. — De que maneira posso
encontrar esse eu-sombra de que você fala?
—Apenas escute. Como todos os prisioneiros, ele tamborila
mensagens na parede da sua cela.
O eu-sombra é apenas outro papel ou identidade que trazemos
conosco, mas nós não o apresentamos em público. Na maior parte do
tempo, o eu-sombra está excessivamente confuso e amedrontado
para ser mostrado à luz do dia. Mas não existe nenhuma dúvida de
que ele existe, pois cada um de nós inventou a própria sombra, uma
persona cuja tarefa é conduzir todas as energias das quais não
conseguimos nos descartar. Para o recém-nascido, o problema de se
agarrar a sentimentos "maus" ou pouco saudáveis não existe. No
instante em que você lança algo negativo no ambiente do bebé, ele
chora ou se afasta.
Essa é uma reação extremamente saudável, porque ao se
expressar tão livremente, o bebé é capaz de livrar-se de energias que
de outra maneira se agarrariam a ele. Quando crescemos, contudo,
aprendemos que nem sempre é apropriado nos entregarmos a esse
tipo de manifestação espontânea. Em nome da polidez e do tato, de
conhecermos nosso lugar, ou ainda de fazer o que nossos pais
mandaram, cada um de nós aprendeu a se agarrar a energias
negativas. Nós nos tornamos baterias com uma vida útil cada vez
maior, até que agora, como adultos, nos agarramos a uma raiva,
ressentimento, frustração e medo com anos de existência. O pior de
tudo é que nos esquecemos do instinto de descarregar nossas
baterias.
— Um dia você ficará muito interessado em ver o quanto vo
cê se parece com uma bomba — disse Merlim para o menino Artur.
84
—O que é uma bomba?
—Se você vivesse às avessas no tempo, que aliás é a única
maneira sensata de viver, você saberia. — Merlim pensou durante
um segundo. — Imagine que você sopre uma bexiga de porco até ela
estourar. Uma bomba trabalha de acordo com o mesmo princípio,
exceto que ela explode com tanta força que mata as pessoas.
—Meu Deus, isso não poderia ser evitado no futuro? — perguntou
Artur alarmado.
—Não, você não compreendeu. As bombas explodem porque
matam pessoas. Esse é o ponto. Só mencionei isso porque as bombas
são extremamente parecidas com os mortais, pois estes estão o
tempo todo prestes a explodir. A explosão de granadas — é assim
que eles vão chamar as coisas que vão explodir — nada mais é do
que a explosão da raiva manifestada. Com efeito, se os seres
humanos pudessem explodir e matar as pessoas sem temer uma
represália, a maioria deles o faria.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Acabar com a guerra interior significa fazer chegar ao fim o conflito
entre todas as suas personalidades. Você pode aliviar o eu-sombra
da carga de energias do passado, criando assim uma condição para a
paz interior, visto que é o medo de ser ferido que faz com que suas
vozes interiores não tenham confiança umas nas outras. Mas você
não pode começar a resolver essas tensões interiores enquanto não
conhecer os componentes das suas personalidades interiores.
As personalidades são sempre formadas pela mesma coisa — uma
energia antiga apegada a uma memória. Digamos, por exemplo, que
você se lembra de ter sido punido quando criança por algo que você
não fez. A energia do ressentimento ou da injustiça se apegará a
essa lembrança, e você começará a criar um fragmento de
personalidade — uma criança ressentida — que viverá de acordo
com sua visão estreita das coisas até que essa energia seja liberada.
A criança interior ressentida é apenas uma
85
memória que quer descarregar sua energia retida, e enquanto essa
descarga não acontecer, essa energia ficará retida.
Como você tem recordações que encerram tanto associações
felizes quanto associações dolorosas, as personalidades interiores se
manifestam de maneiras agradáveis e desagradáveis. E agradável
recordar ter sido elogiado por um bom trabalho; é desagradável
lembrar ter sido criticado. Mas essas memórias opostas não se
neutralizam; elas retêm sua integridade e conflito com seus opostos.
Faz parte da natureza dos julgamentos dizer "Estou certo", mesmo
que a experiência seguinte seja totalmente contraditória. A crítica ou
a punição injusta seguirá com você, repetindo várias vezes as antigas
cenas, enquanto no compartimento seguinte outra energia, a de ser
tratado com justiça e bem recompensado estará expressando seu
ponto de vista.
~f Você pode facilmente entrar em contato com essas energias
retidas. Sente-se sozinho por um momento num aposento tranquilo.
Inspire e expire relaxadamente. Agora, observe apenas o fluxo e o
ritmo suave da respiração, sem alterar seu ritmo. Não vá adiante
enquanto sua respiração não estiver agradável e estável. Quando
isso ocorrer, tente lembrar-se de um incidente extremamente
desagradável do seu passado, que envolva fortes emoções negativas,
como a vergonha, a humilhação ou a culpa. Digamos que o tenham
surpreendido colando numa prova ou até roubando. O fato de o
incidente ter sido banal ou grave não é importante — você está em
busca de uma emoção remanescente.
Traga à lembrança uma imagem vívida desse incidente e permitase
experimentar os sentimentos que o acompanharam. Observe
agora sua respiração — ela não mais estará relaxada. Dependendo
do tipo de emoção que você estiver recordando, sua respiração terá
se tornado irregular ou superficial. Você poderá até mesmo ficar
ofegante ou prender a respiração. Essas modificações refletem o fato
de que a respiração é um espelho fiel do processo do pensamento, e
particularmente de qualquer emoção que possa ser recordada. Você
está na verdade vivenciando os três componentes sobre os quais
falamos: a memória, a energia e o apego. Quando os três se reúnem,
você obtém os primórdios de uma subpersonalidade.
86
Todas as subpersonalidades desejam a mesma coisa: ex-pressarse
através de você. O bebé que chora, a criança solitária,
0 adolescente frustrado, o amante esperançoso, o funcionário
ambicioso, todos querem ter uma vida através de você. E eles o
conseguem, até certo ponto. Nenhuma personalidade individual
jamais se realiza completamente; por conseguinte todas pre
cisam gritar para obter seu momento ao sol — ou à sombra.
E o conflito resultante que torna a vida humana tão ambígua, tão
cheia de luz e sombra ao mesmo tempo. O mago, porém, vive
somente na luz. A semelhança de um bebé, o mago não se agarra à
energia. Tendo abandonado todos os apegos da memória que
alimentam nossa guerra interior, o mago transcendeu a persona-
1 idade e vive na consciência pura. A maneira de nos
deslocarmos
do estado mortal para o estado do mago pode parecer misteriosa,
mas é, na verdade, totalmente natural. Tudo que é necessário é
o equilíbrio, o qual o fluxo da vida é perfeitamente capaz de
preservar.
Existem muitas maneiras de liberar antigas energias. Uma das
mais poderosas é simplesmente reconhecer que elas estão presentes.
Em vez de negar que você sente vergonha ou culpa, por exemplo,
olhe para si mesmo e diga simplesmente: "É assim que eu me sinto".
Com frequência esse momento de autoconsciência é suficiente,
porque, em última análise, todas as energias retidas são capturadas
e mantidas presas do lado de dentro através da negação. Supere a
negação, e metade da batalha estará vencida. O reconhecimento é
uma forma de auto-aceitação. Você não precisa dizer: "É aceitável
sentir vergonha e culpa", porque na verdade essas são energias das
quais você quer se descartar, e não perpetuar. Mas certamente é
aceitável dizer: "Tenho esses sentimentos. Eles são reais."
Uma das técnicas mais eficazes para superarmos a negação
emprega, mais uma vez, a respiração. Deite-se num aposento
tranquilo e relaxe. Inspire da maneira que quiser, profunda ou
superficialmente, rápida ou lentamente, e depois solte naturalmente
o ar. Não adote nenhum ritmo nem faça esforço, apenas deixe o ar
sair. Talvez você suspire ou fique um pouco ofegante; não há
problema.
87
Inspire mais uma vez e, novamente, simplesmente solte o ar, sem
forçar nem prender a respiração. Enquanto você continua a respirar
dessa maneira, deixe que quaisquer emoções ou imagens venham à
tona para serem liberadas. Esse processo pode ser favorecido se
você focalizar a atenção no coração ou em qualquer parte do corpo
onde você sinta sensações — certos pontos físicos estão
estreitamente associados às emoções.
A medida que você dá seguimento ao exercício, suas energias
retidas começarão a circular para fora. Os sintomas dessa descarga
podem incluir memórias, sombras ou sentimentos indistintos, ou
mesmo poderosas manifestações de emoções, como chorar. (Se os
sentimentos se tornarem excessivamente fortes, interrompa o
exercício e descanse de olhos fechados durante cinco minutos.)
Quase todas as pessoas têm tanta energia armazenada que
adormecem rapidamente quando respiram dessa maneira — isso é
um indício de que uma fadiga profundamente retida está sendo
liberada pelo seu corpo.
Se você não sentir nenhuma liberação de energia sob as formas
que acabo de descrever é porque sua mente está atrapalhando o
processo. Você pode ludibriar a mente modificando ligeiramente a
respiração: experimente resfolegar superficialmente e com relativa
rapidez. Essa respiração rápida, superficial e rítmica distrairá a
mente consciente e permitirá que as energias passem
desapercebidas por ela. Você poderá resfolegar dessa maneira no
máximo por uns dois minutos, porque a liberação pode facilmente se
tornar intensa demais.
Este exercício pode ser repetido para eliminar antigas energias
armazenadas, mas ele também é extremamente útil para que você
aprenda a descarregar qualquer emoção ou sentimento novo que
queira sair. Como qualquer outra parte do seu ser, sua sombra
deseja expressar-se e tornar-se livre, e o primeiro passo é descobrir
uma maneira natural e confortável de liberar as energias negativas
em vez de armazená-las nos calabouços ocultos da mente, y
88
11- Lição
O mago é o mestre da alquimia. A alquimia é
a transformação.
É através da alquimia que você começa a busca da perfeição.
Você é o mundo. Quando você se transforma, o mundo em que
você vive também será transformado.
As metas da busca — o heroísmo, a esperança, a graça e o amor —
são a herança do intemporal.
Para invocar a ajuda do mago, você precisa ser forte na verdade,
sem ser teimoso no julgamento.
Depois que o jovem Artur deixou a floresta de Merlim, ele foi morar
com o velho Sir Ector e seu filho Kay. Ele recebeu o posto de
escudeiro, mas apenas nominalmente. Artur não tinha nem família
nem posses. Ele não tinha recursos para comprar suas roupas, e
ninguém realmente acreditava que ele viesse de uma família nobre.
Escondidos de Sir Ector, os garotos do estábulo costumavam atirar
lama nele, e as criadas cochichavam que Artur conhecia magia
negra.
Em decorrência disso, Artur passava muito tempo sozinho. Certo
dia, ele estava sentado à margem de um bosque de carvalhos,
contemplando um jarro de chumbo amassado, quando Kay
casualmente passou por onde ele estava.
—Você roubou isso? — perguntou Kay desconfiado.
—Não — replicou Artur, sacudindo a cabeça. — Eu o peguei
emprestado.
—Para quê?
89
— Alquimia.
Kay arregalou os olhos. Ele ouvira dizer que os magos tinham o
poder de transformar os metais não preciosos em ouro.
— Você aprendeu alquimia? — perguntou Kay.
Artur fez que sim com a cabeça.
— Se você pode transformar chumbo em ouro — disse Kay
agitado — nossa família será a mais rica da Inglaterra. Mostreme
como se faz.
Artur concordou e fez um gesto convidando Kay a sentar-se ao
lado dele na grama. Sem proferir mais nenhuma palavra, ele
começou a olhar fixamente para o jarro. Depois de algum tempo, Kay
percebeu que os olhos de Artur estavam fechados. Ele esperou
impaciente, mas quando Artur abriu os olhos quinze minutos depois,
o jarro permanecia inalterado.
— Acho que você é um embusteiro — declarou Kay acalo
radamente. — O jarro continua de chumbo.
Artur olhou calmamente para ele.
— Ora, claro que continua. Ele é apenas um ponto de
referência. É a mim que eu estou tentando transformar em ouro.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
A alquimia é a arte da transformação. Como ensinado pelos magos,
os segredos da alquimia existem para transformar os mortais,
levando-os de um estado de sofrimento e ignorância para um estado
de iluminação e bem-aventurança. Merlim disse:
— A alquimia acontece o tempo todo. Você não pode impedir que
ocorram transformações em todos os níveis da vida. É na sua
transformação que estou interessado. Em comparação com isso,
transformar metais não preciosos em ouro é algo trivial.
A alquimia é uma busca, e a busca é sempre pela mesma coisa: a
perfeição. Assim como o ouro é o mais perfeito dos metais porque
não pode ser corrompido, a perfeição no ser humano significai
liberdade com relação à dor, ao sofrimento, à dúvida e ao medo.
90
— Mas e se os seres humanos não forem capazes de se
aperfeiçoar? E se formos de fato tão fracos e imperfeitos quanto
parecemos? — indagou Artur.
— O segredo não repousa na sua aparência — replicou Merlim
—, e sim em quão profundamente você está disposto a olhar.
As buscas são jornadas individuais, e cada passo é dado
solitariamente. Mas Merlim tinha muito a dizer a Artur antes que
este alcançasse o significado da sua busca.
— Já lhe disse muitas vezes que essa massa de carne e osso
não é seu corpo, que essa personalidade limitada que você
vivência não é seu eu. Seu corpo é na verdade infinito e um só
com o universo. Seu espírito abarca todos os espíritos e não
possui limites no tempo ou no espaço. O trabalho da alquimia lhe
revelará essas verdades.
Quando Merlim pronunciou essas palavras, a época dos magos
estava praticamente desaparecida, dando lugar à nova era, que seria
governada pela razão. Esta última sustenta que a alquimia não é
possível, e à medida que os magos recolhiam-se à penumbra da
lenda, as pessoas começaram a aceitar que estavam de fato limitadas
a viver como pacotes finitos de carne e osso em delgadas fatias de
tempo e espaço.
Por termos como certo que as coisas sólidas são reais, atribuímos
realidade à matéria sólida da qual somos feitos. Os mesmos átomos
de hidrogénio, oxigénio e carbono formam as nuvens, as árvores, as
flores, os animais e seu corpo, mas esses átomos estão em constante
modificação e transformação — menos do que 1 porcento dos átomos
que estavam presentes em seu corpo há um ano permanecem nele
hoje. Mesmo sob o aspecto material, faz pouco sentido afirmar que
você é feito de matéria sólida, quando debaixo dessa solidez existe
um mundo de espaço vazio e fluxo constante. A busca que é a
alquimia começa debaixo da superfície dos átomos e moléculas, atrás
da aparência de mudança.
Mesmo quando menino, Artur estava ansioso pela sua primeira
busca, e esperava ardentemente que Merlim lhe fornecesse um
cavalo e um mapa. Mas Merlim disse:
— Os mapas são inúteis no lugar aonde você está indo,
porque o território que você tem à sua frente está em constante
91
modificação. Seria a mesma coisa que tentar fazer um mapa da água
corrente.
Tão logo você aceita que não é nada menos do que o fluxo da
vida, a busca pela perfeição torna-se uma busca além do ilimitado.
As coisas perfeitas dentro de você são a essência, o ser e o amor.
Estes não podem ser limitados pelo tempo e pelo espaço. Quando
você atravessa a sala, seu amor por sua família atravessa a sala?
Quando você se molha na banheira, a sua essência se molha? As
fronteiras podem ser mapeadas, e o aspecto visível de um ser
humano pode ser cartografado como ossos, músculos, tecidos e
células. O cérebro pode ser mapeado como caminhos para a
incessante interação de dez milhões de neurónios. Entretanto, em
ambos os casos, o mapa não é o território. A essência, o ser e o amor
que compõem o ser humano possuem uma vida própria que começa
e termina com a mesma percepção invisível.
—Posso vê-lo como uma nuvem de energias — disse Merlim a
Artur. — E você pode me ver da mesma maneira, mas mesmo essa
nuvem não é o verdadeiro você. Trata-se apenas de mais substâncias,
só que num nível mais sutil.
—Que tipo de energias? — perguntou o menino.
—Vamos chamá-las de luz e sombra, que se deslocam ao redor da
sua forma enquanto você pensa e sente. A luz fica diferente
conforme você esteja feliz ou triste, inspirado ou cansado, animado
ou entediado. Alguns mortais caminham pelo mundo como luzes
brilhantes, outros como melancólicas sombras. Mas por mais
luminosa que possa ser a luz, ela não é tão real quanto o silêncio
puro que existe dentro de você.
—Por que não vejo a mim mesmo como você vê? — indagou Artur.
—Porque essas energias funcionam como mantos. Alguns são
densos, outros leves, e não existem duas pessoas que possuam
camadas idênticas. Mesmo assim, todos vocês se parecem com
nuvens ambulantes. Enquanto você não despir as camadas que
envolvem sua alma, você não perceberá o núcleo límpido e
intemporal que jaz no centro do seu ser.
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VIVENDO COM A LIÇÃO
Na doutrina da alquimia, os quatro elementos — terra, ar, água e
fogo — misteriosamente se combinaram para chegar a um produto
final chamado vida. É inegável que você seja composto dos
elementos terra, ar e água, rearrumados a partir de uma forma
anterior, como a comida. No entanto, a chama que inflama esses
materiais inertes não pode ser destilada, por não ser um fogo visível,
ou mesmo um calor metabólico. É o fogo da transformação, puro e
simples. Por conseguinte, você é a transformação, o transformador e
o transformado. Você é seu próprio alquimista, que constantemente
transmuda moléculas opacas e inertes na personificação viva de si
mesmo. Esse é o ato mais criativo e mágico que você jamais poderá
empreender.
Não existe limite para as maravilhas dessa alquimia. Em qualquer
momento dado você pode estar lendo um livro, digerindo uma
refeição, fabricando proteínas e enzimas, armazenando informações
como memória, crescendo, respirando, sentindo seu ambiente,
curando uma ferida, substituindo células mortas, evitando o ataque
de vírus e executando inúmeras outras ativi-dades. Todas essas
transformações ocorrem, em grande parte, desapercebidas. O
alquimista é invisível, trabalha atrás dos bastidores, e poucos de nós
pensamos, algum dia, em descobrir quem ele é. Seu lar não está
situado no tempo e no espaço e sim no intemporal, além da memória.
Sente-se por um instante, e imagine que você consegue ver sua
vida como um pergaminho que vai se desenrolando à medida que
você examina eventos que aconteceram cada vez mais no passado.
Comece desenrolando esse pergaminho até enxergar uma cena
familiar, como a do dia em que você conseguiu seu atual emprego.
Veja-a com clareza, e depois recue um pouco mais, digamos à época
em que você frequentou a faculdade, e continue a desenrolar o
pergaminho passando pelo segundo grau, primeiro grau e jardim de
infância. Veja o mais claramente possível as cenas de quando você
era criança, de quando você começou a andar, de quando era um
bebé. Não importa que as
93
imagens não sejam vívidas; basta que você tenha um sentimento de
como era ser você mesmo naquelas idades.
Recue agora ao dia em que você nasceu — isso será pura
imaginação — e depois veja a si mesmo como feto, e a seguir como
uma coleção de células transparentes que formam uma bola. Observe
a bola até ela se transformar em duas células, e depois em uma.
Finalmente, vá adiante e imagine-se antes disso, sem mesmo uma única
célula à qual você possa se apegar.
Ao transpor esse limiar, repare que sua identidade não desaparece.
Mesmo não tendo um corpo ou uma imagem para observar, você
continua a ser quem você realmente é — uma consciência observante
que permanece a mesma embora o cenário da sua vida
constantemente se modifique. Essa é sua identidade como
consciência, um alquimista sábio e ativo que permanece
independente, atrás do incessante espetáculo da transformação.
Tente agora imaginar o desaparecimento dessa consciência. Em
outras palavras, imagine uma época antes de você existir. Isso não
pode ser feito, porque o alquimista não está limitado à esfera do tempo,
onde todos os eventos têm um início e um fim. Analogamente, você pode
desenrolar o pergaminho em direção ao futuro e tentar imaginar-se
morto e completamente inexistente. Mais uma vez, isso não pode ser
feito. Quando você alcança o final da memória, do sentimento, da
emoção, da imaginação e das ideias, o que ainda permanece é você
numa forma pura, como um impulso vital, que flui eternamente através
do milagre da criação. Esse fluxo tem lugar como uma incessante
transformação, a alquimia da existência estendendo-se por todos os
mundos e transcendendo-os.
94
12a Lição
A sabedoria está viva e é, portanto, sempre imprevisível.
A ordem é outra face do caos, o caos é
outra face da ordem.
A incerteza que você sente interiormente é a porta de
entrada para a sabedoria.
A insegurança sempre estará com o que busca — ele
continua a tropeçar mas nunca tomba.
A ordem humana é feita de regras. A ordem do mago não tem
regras — ela flui com a natureza da vida.
Pequenos detalhes da natureza amiúde chamavam a atenção de
Merlim, e neles ele conseguia perceber lições. Certo dia, quando ele
e Artur caminhavam pela floresta, ouviram um gaio repreen-dendoos
de um pinheiro nas proximidades.
— Pare e olhe — comentou Merlim baixinho.
O gaio era um pássaro nervoso e extravagante. Depois de chilrar
para os dois intrusos, voou até outro galho para ter uma visão
melhor. Depois de alguns segundos, ainda insatisfeito, voou para um
terceiro. A seguir, o pássaro aparentemente esqueceu-se da
presença dos dois e saltou no chão para examinar uma pinha. Em
questão de segundos, ele patinhou numa poça d& 39;água, enxotou uma
garriça cinzenta e começou a bicar um pedaço de casca de árvore em
decomposição.
— Qual é a sua opinião sobre esse modo de vida? —
perguntou Merlim.
95
—Considero-a desprezível — replicou Artur. — O pássaro age como
uma bola de penas desmiolada que não tem ideia do que vai fazer a
seguir.
—E o que parece sempre que uma criatura vive apenas confiando
em Deus — disse Merlim. — Ele passa os dias seguindo um impulso
descuidado após o outro, sem pensar no futuro, e, no entanto,
consegue viver muito bem, você tem que admitir.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
A natureza da vida é conter tanto o caos quanto a ordem. Os padrões
emergem da desordem e se dissolvem novamente nela. Seu corpo é
totalmente caótico em determinados níveis — átomos rodopiantes de
oxigénio penetram na sua corrente sanguínea a cada respiração,
numerosas enzimas e proteínas enchem cada célula, e até a descarga
de neurónios em seu cérebro é uma incessante tempestade elétrica.
No entanto, esse caos é apenas uma das faces da ordem, pois não há
dúvida de que nossas células são obras-primas de uma função
organizada, que nossa atividade cerebral resulta em pensamentos
coerentes.
Com efeito, o caos e a ordem existem em tão estreita comunhão
que não podem realmente ser separados.
— Antes de ser uma estrela dançante, você precisa ser o caos — disse
Merlim. E isso é literalmente verdadeiro, pois os rodopiantes gases
primordiais que formaram o universo tiveram que preceder o
nascimento das galáxias. No início, esses gases não exibiam nenhum
padrão, apenas uma leve tendência de serem atraídos uns para os
outros. No entanto, a partir desse ténue indício de atração
gravitacional, foi posta em movimento uma cadeia de eventos que
acabou por conduzir à formação do ADN humano, uma molécula de tal
modo complexa que perturbar qualquer um de seus três bilhões de
unidades genéticas poderia estabelecer a diferença entre a vida e a
morte.
Na escala pessoal, todos nos debatemos na ordem e na desordem.
As coisas têm a tendência de se desintegrar; o que era
96
fresco e maduro acaba por se deteriorar; o que era jovem fica velho e
morre.
— A morte é uma ilusão — disse Merlim —, mas a luta que
os mortais empreendem diante da morte é extremamente real.
Nenhum mortal efetivamente sabe o que é a morte, mas o evento
é de tal modo assustador que os mortais lutam contra ele com
todas as forças, sem perceber a tremenda desordem e o caos que
provocam com essa atitude.
O mago sabe que a vida sempre se organizou a partir do interior.
A mesma leve atração da gravidade que criou as estrelas dançantes a
partir do caos existe em cada nível da natureza. A rosa pode ter a
certeza absoluta de que se transformará numa rosa, embora ao
nascer ela possa se parecer com um feijão ou uma violeta, e em forma
de semente sua única reivindicação de individualidade possa repousar
em seus filamentos geminados de ADN. Nós, humanos, contudo, nos
preocupamos muito em virmos a ser perfeitos, de modo que
despendemos incontáveis horas esforçando-nos para garantir nossa
singularidade.
—O que importa se os pássaros vivem sem pensar, ou se uma rosa é
sempre uma rosa? — indagou Artur. — Eles não têm uma mente e
portanto sua única escolha é ser o que são.
—É verdade, vocês mortais têm o livre-arbítrio, mas vocês atribuem
a ele uma importância exagerada — replicou Merlim. — Eu vivo sem
escolhas e considero minha vida muito mais feliz.
—Sem escolhas? Mas você toma as mesmas decisões que eu tomo —
protestou Artur.
Merlim deu de ombros.
—Você se deixa enganar pelas aparências. Examine sua mão. Não
há dúvida de que ela lhe pertence; no entanto, você não escolhe como as
células dela se desenvolvem; você não tem noção de o que faz os
nervos e os músculos dela se moverem; você não obriga
conscientemente suas unhas a crescerem e nem faz um corte cicatrizar
quando machuca a mão, não é verdade?
—Sem dúvida, não preciso fazer nada disso.
—Em outras palavras, elas não representam uma escolha para você
— prosseguiu Merlim. — Essas funções foram entregues a um lado
involuntário do seu cérebro, que cuida automa97
ticamente delas. Do mesmo modo, todas as coisas às quais você dedica
tanto tempo, pensar, decidir, sentir, escolher, julgar, eu entreguei ao
lado automático do meu cérebro, o que é a mesma coisa que dizer que
eu as entreguei a Deus.
— Então para que você usa sua mente consciente? — perguntou
Artur.
— Para apreciar este mundo e o milagre da vida. Sou testemunha
de tudo que existe, e posso lhe assegurar que não existe espetáculo
mais belo, surpreendente ou satisfatório.
VIVENDO COM A LIÇÃO
A vida moderna está tão cheia de pressões que a empurram de um
lado para outro que a maioria de nós reage tentando impor-lhe ordem.
Nossa sociedade de forças caóticas é portanto uma sociedade de
infindáveis leis e regulamentos. Isso não é de causar surpresa, porque
os seres humanos vicejam na ordem e se assustam com a desordem.
Esta última é imprevisível e está fora do nosso controle, fazendo,
portanto, com que nos sintamos estressados. Pense numa ocasião em
que a desordem e a imprevisibilidade tenham de repente invadido sua
vida: um momento em que você tenha perdido um avião, em que seu
carro tenha enguiçado à beira da estrada, em que você tenha ouvido a
pessoa amada dizer que perdeu o emprego.
Quase sempre esses eventos se resolvem sozinhos; nenhum dano é
realmente causado à sua existência, apenas uma simples
inconveniência. Entretanto, seu sistema nervoso provavelmente reagiu
de forma voervta, expressando medo e desconforto quando seus
planos não deram certo. A reação do ego diante do caos é combatê-lo e
impor um controle ainda maior. Na vez seguinte em que você viajou
de avião, você provavelmente verificou duas vezes o horário da partida
e saiu cedo para o aeroporto. Na vez seguinte em que dirigiu, você
provavelmente tomou precauções para evitar que o carro enguiçasse
novamente. O problema é que toda essa luta, preocupação, planejamento
e controle vai contra o sentido da vida. A vida comprime junto
98
o caos e a ordem. Não é possível ter um sem o outro. Se você quer
acompanhar o fluxo da vida, você não pode ao mesmo tempo lutar
contra ele. Por conseguinte, aquele que busca a perfeição aceita que
a incerteza sempre existirá em sua vida, que ele sempre se sentirá
desequilibrado.
— O papel do discípulo — disse Merlim — é sempre tropeçar,
mas nunca cair.
Apesar do fato de seu ego detestar a imprevisibilidade, a verdade
é que você várias vezes extraiu benefícios dela. Pense por um
momento nas inesperadas oportunidades que surgiram em seu
caminho, nas ofertas de ajuda que você jamais antevira, nas
repentinas ideias e inspirações que você teve, nas decisões
impulsivas de se mudar ou falar com um estranho que abriram novos
horizontes. Essa é a maneira natural de viver.
— Sua vida já está organizada dentro de si mesma — disse
Merlim. — A vida emana da vida, o botão se transforma na flor,
a criança se torna um adulto. Confie em cada estágio, celebre-o,
e deixe que o seguinte venha a você sem esforço.
Um simples exercício poderá lhe mostrar como é maravilhoso
viver uma vida imprevisível. Sente-se por um momento e imagine
que você pode ver sua vida na mente como um vídeo. Comece a
passar o vídeo com os eventos de hoje e deixe-os se desenrolarem da
maneira como você deseja que seja o amanhã, o depois de amanhã, e
em seguida imagine-se envelhecendo: veja o futuro que você gostaria
de viver se pudesse ter tudo que quisesse. Deixe sua fantasia vagar
por onde ela quiser, e termine o vídeo com sua morte. Faça dela uma
morte desejável, indolor e tranquila.
Depois de fazer isso, volte atrás e veja um vídeo completamente
diferente. Comece com os eventos de hoje, mas faça com que eles
resultem em algo completamente diferente. Você está apenas
fazendo uso da imaginação, de modo que pode inventar uma vida
turbulenta e catastrófica, uma vida dramática, ou ainda uma vida
santa. Leve o vídeo até a cena da sua morte. Volte mais uma vez e
recomece tudo. A finalidade do exercício é mostrar que tudo que
você visualizou é verdade — seu futuro não é composto de um único
cenário, mas sim de todos os cenários possíveis. Eles se expandem a
partir do momento presente como
99
fios invisíveis de potencial. A vida de todo mundo é assim; somente
nosso falso senso de controle nos faz acreditar que podemos impor a
ordem ao que na verdade é totalmente imprevisível.
O ego precisa examinar seus receios e parar de tentar controlar as
coisas. Essa é uma parte enorme da busca que você está
empreendendo. Se você conseguir aceitar o fluxo da vida e se render a
ele, você estará aceitando o que é real. Somente quando aceitar o que
é real é que você poderá viver com paz e felicidade. A alternativa é
uma luta interminável, porque ela é uma luta com o irreal, com uma
miragem da vida em vez de com a vida propriamente dita.
100
13a Lição
A realidade da sua experiência é uma imagem especular das suas
expectativas.
Se você projetar as mesmas imagens todos os dias, sua realidade
será a mesma todos os dias.
Quando a atenção é perfeita, ela cria ordem e clareza a
partir do caos e da confusão.
Depois de se tornar rei, Artur só compartilhou suas experiências na
gruta de cristal com uma única pessoa, sua esposa. Passaram-se
anos antes que Merlim reaparecesse, e Guinevere pensava nele mais
ou menos como pensaria num unicórnio ou outro animal mítico.
—Se ele for tão selvagem quanto as sombrias montanhas galesas
onde dizem que ele nasceu, eu morreria de medo de encontrá-lo —
confessou ela certa vez a Artur.
—Ele não é assim — retrucou Artur. — Ele não se parece com
nada que você poderia esperar ou prever.
—Meu senhor, conheci magos na corte francesa, ou aqueles que
assim se chamavam — declarou Guinevere. — Eles não são
simplesmente velhos, com uma longa barba branca, que agem de
uma maneira muito sábia, e sacodem a cabeça como se estivessem
vendo coisas que não podemos ver, e afirmam ter poderes que
ninguém jamais testemunhou?
Artur sorriu.
— Esses magos atravessaram meu caminho, mas Merlim
não era um deles. Certa vez eu disse a ele: "Em que você e eu
somos diferentes? Para mim somos apenas duas pessoas à beira
de um riacho, sentados debaixo de uma árvore, esperando para
101
pescar um peixe para o jantar." Ele olhou para mim e sacudiu a
cabeça. "É verdade que somos apenas duas pessoas sentadas aqui
como você diz, mas para você este cenário é toda a sua realidade, ao
passo que o riacho, a árvore e tudo que nos cerca é uma partícula
mínima sobre o horizonte mais distante da minha consciência."
Guinevere perguntou:
—Se Merlim realmente vivia num mundo tão separado do seu, ele
algum dia lhe disse como alcançá-lo?
—Disse — respondeu Artur. — Ele insistiu em afirmar que minha
versão da realidade, a árvore, o riacho, a floresta, era uma completa
ilusão, uma alucinação particular que minha mente me impôs, enquanto
o mundo dele estava aberto a todos por ser um mundo totalmente de
luz.
Guinevere ficou perplexa.
—Mas tanto você quanto eu estamos vendo este quarto onde
estamos, e todo mundo que conhecemos também consegue vê-lo. Não
creio que ele seja apenas uma ilusão.
—Deixe-me então mostrar-lhe uma coisa — disse Artur. Ele pediu à
rainha que deixasse o aposento e prometesse não retornar até a
badalada da meia-noite. Guinevere fez o que o marido lhe pedira, e ao
voltar descobriu que o quarto estava escuro como breu, as velas todas
apagadas e as cortinas de veludo fechadas.
—Não se preocupe — disse uma voz. — Estou aqui.
— Meu senhor, o que quer que eu faça? — perguntou
Guinevere.
Artur replicou:
— Queco descobrir se você realmente conhece este quarto.
Caminhe na minha direção e descreva os objetos que estão ao
seu redor, mas não toque em nada.
A rainha achou que esse era um teste muito estranho, mas fez o
que o marido lhe pedira.
— Aqui está nossa cama, e ali a arca de carvalho do meu
dote, que eu trouxe através da água. No canto está um candelabro
espanhol alto, de ferro batido, com duas tapeçarias penduradas
de cada lado.
Caminhando com cuidado para não tropeçar nas coisas, Guinevere
foi capaz de descrever cada detalhe do quarto, que na verdade tinha
sido mobiliado por ela, até o último travesseiro.
102
—Olhe agora — disse Artur. Ele acendeu uma vela, depois uma
segunda e uma terceira. Olhando em volta, Guinevere ficou perplexa ao
perceber que o quarto estava completamente vazio.
—Não compreendo — murmurou ela.
—Tudo que você descreveu foi uma expectativa do que este quarto
contém, e não do seu verdadeiro conteúdo. Mas a expectativa é
poderosa. Mesmo no escuro, você viu o que você esperava e reagiu de
acordo com sua expectativa. O quarto não lhe pareceu o mesmo? Você
não andou com cuidado nos locais onde achava que poderia tropeçar
nos objetos? — Guinevere fez que sim com a cabeça. — Mesmo à luz do
dia — continuou Artur, — andamos por aí de acordo com o que
esperamos ver, ouvir e tocar. Cada experiência se baseia na
continuidade, que alimentamos ao nos lembrarmos de tudo como era
no dia anterior, na hora anterior ou no segundo anterior. Merlim me
disse que se eu pudesse ver totalmente sem expectativas, nada que eu
tivesse como certo seria real. O mundo que o mago vê é o mundo real,
depois que a luz aparece. O nosso é um mundo de sombras que
tateamos no escuro.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
O mago libertou-se completamente do conhecido. Para ele, a única
liberdade jaz no desconhecido, porque tudo que é conhecido já passou
e está morto.
— Você sabe por que eu sempre digo que seu mundo é uma prisão?
— perguntou Merlim. — Porque tudo que a mente pode conceber
precisa ser restringido. Tão logo você atribui palavras a uma
experiência, envol ve-a com o pensamento ou diz "eu sei", algo
maravilhoso e invisível escapole. Os limites são gaiolas; a realidade é
um pássaro delicado que treme na sua mão. Se você o segurar por
muito tempo, ele morrerá.
Se é verdade que o desconhecido é seu bilhete para a liberdade,
também é verdade que o ego se sente mais à vontade com limites.
Nossa mente gera as mesmas imagens dia após dia. Essas imagens são
um espelho de quem você é, e no entanto o
103
ego as considera reais. "Não é óbvio que uma árvore é uma árvore,
um muro um muro, uma montanha uma montanha?" pergunta o ego.
Mas eles só são reais num determinado estado de consciência — o
estado desperto. Num sonho você poderá se sentar num campo e
observar as nuvens passando sobre uma montanha. Ao acordar, você
compreenderá que a montanha, as nuvens e o campo eram apenas
descargas aleatórias de células cerebrais dando origem a imagens
passageiras. Não existe nenhuma prova de que estar acordado é
diferente. Montanhas, campos e nuvens "reais" não possuem uma
realidade comprovável fora das imagens que explodem em seu
cérebro. Artur ficou chocado quando Merlim descartou o mundo
visível como uma ilusão.
—Mas eu posso tocar nas coisas à minha volta e sentir que elas são
duras. Se eu bater a cabeça contra uma pedra, terei uma contusão —
protestou Artur.
—As imagensnão são apenas visíveis — lembrou-lhe Merlim. — Você
também pode tocar as coisas num sonho, e sentir toda a amplitude das
sensações.
—Então por que faço uma distinção entre estar acordado e estar
sonhando? Por que todo mundo chama um de realidade e outro de
ilusão?
—Hábito. Se os mortais assimilassem esse conhecimento dos
magos, eles aprenderiam a fazer despertos tudo que fazem nos sonhos.
Os limites começariam a se dissolver, e a realidade os tiraria da sua
sombria prisão.
Todos experimentamos o novo e o desconhecido, mas poucos de
nós vemos este último como uma força que acena para nós. O
desconhecido contém pistas que conduzem a outra realidade. Que
pistas são essas? Elas mudam a cada momento, mas se você examinar
atentamente qualquer imagem que o mundo lhe apresente, uma parte
maior do seu eu começará a olhar de volta. A aparente aleatoriedade
dos eventos começará a se transformar em forma e significado, como
se parte de você estivesse dizendo: "Estou aqui. Você não consegue me
encontrar?" Encontros casuais, coincidências inesperadas, pressentimentos
que se tornam realidade, a repentina realização de desejos,
lampejos de uma felicidade imprevisível, a sensação de
104
um profundo conhecimento, o despertar da confiança — todos são
formas que a realidade pode assumir quando ela nos convence a sair das
prisões que nós mesmos construímos. Não somos obrigados a escutar
esse sussurro que acena para nós. A escolha é totalmente pessoal.
Uma decisão precisa ser tomada, no recôndito do seu coração, entre
o conhecido, que é rançoso porém familiar, e o desconhecido, que é
novo, um campo de infinitas possibilidades.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Viver com esta lição significa ir além da fronteira do conhecido. Se você
pudesse esquecer tudo e não antever nada, você automaticamente daria
consigo transpondo os limites que o impedem de perceber uma
realidade superior. Essa realidade superior está enredada na
realidade familiar que você vê e atravessa diariamente; nenhuma
distância separa as duas. E contudo milhões de quilómetros também
podem separar as duas.
Ao lado do hábito e da inércia, o medo também ajuda muito a manter
a realidade igual ao que sempre foi. Experimente uma versão do teste a
que Artur submeteu Guinevere. Coloque-se, à noite, no meio de um
aposento familiar completamente às escuras. Ande agora através dele,
aproximando-se o mais possível dos objetos do aposento sem tropeçar
neles. Você irá reparar que é extremamente difícil andar por um
aposento às escuras, por melhor que você o conheça, sem sentir uma
certa apreensão. Quase todos tememos a cegueira por causa da
incerteza que ela provocaria; o coração dispara diante do pensamento
de que poderíamos cair ou derrubar as coisas.
No entanto, você está na verdade demonstrando que o conhecido
não é capaz de protegê-lo do medo. Por melhor que você conheça o
aposento, a apreensão está presente, e o mesmo acontece no mundo à
luz do dia, só que nele o medo está enterrado um pouco mais
profundamente. Precisamos de algo mais do que o escuro para ficar
com medo: um acidente, uma quebra da rotina, a repentina perda da
segurança. Por mais à
105
vontade que você ache que está no mundo das coisas conhecidas, o
potencial para o desastre nunca está muito longe do seu
subconsciente.
Você pode obter uma amostra do desconhecido com outra
experiência simples. Ponha uma venda nos olhos e sente-se na cozinha.
Peça a um amigo que coloque três pratos de comida à sua frente sem
lhe dizer quais são. Prove-os pedindo a seu amigo que ponha uma colher
ou um pedaço do alimento na sua boca. Você rapidamente reconhecerá
cada comida, mas também deverá perceber que, na fração de segundo
de incerteza antes do reconhecimento, você provará algo novo — uma
textura inesperada, uma nuança de sabor, um leve aroma — que você já
não lembrava estar presente.
Esse é o poder da incerteza. Enquanto você tiver certeza das coisas,
você estará vivendo dentro de limites. No entanto, coisas a respeito das
quais você se sente tão seguro possuem na verdade novas qualidades a
serem desenvolvidas.
— Deus criou este mundo — disse Merlim. — Portanto ele deve ser
suficientemente interessante para prender a atenção Dele. Se você
descobrir que as coisas estão ficando monótonas, rançosas ou
previsíveis, talvez tenha sido você que perdeu a capacidade de se
interessar.
É difícil para o ego aceitar a abertura do caminho para a incerteza,
mas ele é a única avenida que conduz ao mundo do mago.
106
14& Lição
Os magos não lamentam a perda, porque a única coisa que
pode ser perdida é o irreal.
Mesmo que você perca tudo, o real permanecerá.
No cascalho da devastação e do desastre estão enterrados
tesouros ocultos.
Quando você examinar as cinzas, examine bem.
Como acontece a todas as crianças, a morte um dia chamou a
atenção de Artur. Ele tinha quatro ou cinco anos quando Merlim
encontrou-o agachado na floresta contemplando uma pequena pilha
de penas cinzentas, os restos mortais do que fora um dia um pardal.
—O que aconteceu a ele? — perguntou o menino.
—Depende — replicou Merlim.
—De quê?
—De como você encara o processo. A maioria dos mortais o
chamaria de um pássaro morto. Com morto eles querem dizer que a
vida dele foi destruída. Os mortais mais sábios, contudo, fazem um
exame mais profundo. Eles percebem que a morte é apenas uma
rearrumação. A substância da qual o pássaro era formado está
voltando à terra para se misturar com os elementos que o deram à
luz.
O menino pensou por um momento.
—Por que fico com medo quando vejo isso?
—Por causa da memória. Quer saiba quer não, você formou ideias
a respeito da morte desde que era bebé, e à medida que elas se
desdobram você se lembra do medo e da dor ligados a essas
memórias.
107
O menino era pequeno demais para entender tudo que Merlim
estava dizendo, e, como a maioria das crianças, parou de fazer as
perguntas realmente profundas. Durante um ano ele ficou satisfeito
com as explicações de Merlim, até que passou pela cabeça dele que a
morte também poderia acontecer a ele e não apenas aos animais.
— Eu acho — disse Artur quando tinha doze anos — que é
provável que eu fique cada vez com mais medo da morte.
Merlim concordou.
— A medida que você experimentar mais o mundo, suas
memórias voltarão cada vez com mais força. Mas existe também
outra coisa. Os mortais temem a morte porque têm medo de
perder suas posses. Quando você vê um animal morto, você não
é capaz de dizer qual a parte dele que morreu. Depois do último
suspiro, o corpo pesa a mesma coisa; as células são as mesmas.
Apenas a respiração está ausente, e seja o que for que está além
dela.
"Mas os mortais têm casas e coisas dentro deles. Eles têm famílias
e experiências que lhes são caras. A ideia de perdê-las assusta-os
terrivelmente. Mas vou lhe contar um segredo. Nada morre no instante
da morte. A morte é um começo, não um fim. Os mortais a temem
porque se apegam às suas memórias. Ninguém realmente sabe o que é
a morte. Adote a perspectiva do mago e acolha com alegria todas as
perdas, até mesmo a perda suprema da morte."
—Vou tentar — declarou Artur hesitante —, mas você está certo.
Existem muitas coisas que não quero perder.
—Desapegue-se então um pouco, e lembre-se: tudo a que você se
agarra já está morto, porque é passado. Morra a cada momento e
você descobrirá a porta para a vida eterna.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
Num mundo de mudança é preciso que haja ganho e perda. O ego
considera o ganho bom e a perda má, mas a natureza não estabelece
essas distinções. Enquanto houver criação, tem que haver destruição.
108
— Vocês, mortais, gostariam de abolir a morte — declarou
Merlim —, mas não pensam em como o mundo ficaria entulhado
de pessoas, animais e plantas. A floresta em breve ficaria
sufocada debaixo da sua própria força vital, os mares se retorce
riam com criaturas lutando por espaço e ar, e a delicada beleza
da natureza deixaria de existir.
O ciclo de nascimento e morte torna-se uma questão de medo e
luta somente quando se torna pessoal. Após lutar durante toda a vida
para evitar a perda, o ego considera a morte a derrota final. Para a
maioria das pessoas o medo da morte é por demais esmagador para ser
enfrentado; é um assunto empurrado para o subconsciente e negado na
vida cotidiana. Ou então a negação é intelectualizada, fazendo com que
a morte se torne um mistério metafísico que pode ser examinado a
partir de uma segura distância emocional.
Os magos dizem que a morte não pode ser conhecida, por uma
razão diferente; eles alegam que a experiência normal, e com ela
nosso modo normal de conhecimento, pára no momento da morte. A
experiência normal está orientada para o que podemos ver, ouvir,
tocar, cheirar e provar. Adicionam-se ainda o pensamento e a emoção.
Morrer significa abandonar os sentidos, deixar para trás o mundo
material, e ir em direção a um novo tipo de percepção.
—Se você ao menos o soubesse — disse Merlim —, eu já estou
morto.
—Isso não me parece possível — retorquiu Artur. — Estar vivo para
mim significa comer, beber, dormir e ter experiências. Você não faz isso
o tempo todo, exatamente como eu?
Merlim sacudiu a cabeça.
—Por que você acha que a vida e a morte não podem coexistir? Ao
mesmo tempo que faço todas as coisas que você mencionou, também
me encontro num estado de conhecimento, consciente de mim apenas
como eu mesmo, que nunca nascerei e nunca morrerei. A morte abre
para nós a descoberta desse estado. Se você tiver a sorte de fazer essa
descoberta cedo, antes de deixar o corpo, melhor para você.
—Você tem muita sorte por não ter mais que temer a morte —
comentou Artur.
109
— É verdade, mas eu tomei uma decisão que a maioria de vocês,
mortais, evitaria tomar. Decidi perseguir a morte e tomá-la em meus
braços como um amante, ao passo que vocês estão sempre fugindo dela
como se ela fosse um demónio. A morte é extremamente sensível, e se
você a converter num demónio ela se manterá afastada e guardará para
si seus segredos. "Na verdade, tudo que você teme com relação à morte
é uma projeção da sua ignorância. Você simplesmente tem medo do que
desconhece.
VIVENDO COM A LIÇÃO
A morte é um evento supremo, mas antes de ela acontecer, inúmeras
perdas secundárias acontecem durante o percurso. Se você parar um
momento para pensar no assunto, poderá facilmente perceber o
padrão de perda e ganho que atravessa sua vida. Quando ocorrem, as
perdas parecem dolorosas, e o ego inevitavelmente reage diante delas
querendo resistir. No entanto, a passagem da infância para a
adolescência é uma perda a partir de uma perspectiva e um ganho a
partir de outra; o casamento representa a perda da vida de solteiro e a
aquisição de um parceiro. O ganho e a perda são duas faces do mesmo
fenómeno. A única coisa na vida que acarreta um ganho absoluto é o
ganho da percepção consciente, que é a essência da busca.
— Já lhe ocorreu alguma vez que você não pode perder nada —
perguntou Merlim — porque você nunca na verdade teve nada? A
única coisa que você realmente já teve é você mesmo. Esse eu poderá
passar algum tempo numa casa ou num emprego, algum tempo na
presença de certas coisas ou ter uma certa quantidade de dinheiro, mas
com o tempo tudo isso se modifica. Tudo que você tem então é uma
memória, uma imagem, um conceito. Estes não são reais; são
invenções da mente. Os pensamentos são como hóspedes; eles entram
e saem enquanto você permanece. Encare os objetos e as posses da
mesma maneira. Eles vêm e eles vão. O que fica é você.
A vida está repleta de adversidades, pequenas ou grandes. O ego
assumiu o fardo de proteger sua vida. Ele o defende da perda
110
e da desgraça, e afasta o conceito da morte pelo maior tempo
possível. Mas o mago acolhe com alegria a adversidade, qualquer
perda, pelas seguintes razões, que você pode aplicar à sua vida: tudo
na criação é feito de energia. Depois de criada, qualquer forma de
energia precisa se sustentar por um certo tempo. Depois de um
período de estabilidade, a força vital deseja pôr em cena algo novo.
Para que isso aconteça, padrões desgastados precisam ser
dissolvidos.
Essa dissolução tem lugar em nome da vida, porque só existe vida
à nossa volta. Não obstante, o ego se apega a certas formas de
energia que ele não quer ver dissolvidas. Uma grande quantidade de
dinheiro, uma casa, um relacionamento, um governo — à maneira
deles, todos são formas de energia que tentamos proteger do fluxo
do tempo. As pessoas lutam até a morte, como diz o ditado, o que
significa que elas defenderão algo até que a dissolução seja a única
alternativa.
Na verdade, essas lutas não são necessárias, você não pode lutar
para fazer uma rosa florescer. Você não pode se esforçar para fazer
com que um embrião se transforme num bebé, essas coisas
simplesmente acontecem seguindo seu ritmo natural. Seu ego
facilmente aceita esse fato com relação às rosas e aos bebés, mas
não a respeito de dinheiro, casas, relacionamentos e outras coisas às
quais ele se apega. Mas o mago percebe que as mesmas leis
universais governam a vida. Afinal de contas, o ego não se esforçou
para trazer você ao mundo.
A luta do ego é uma forma de oposição à vida, porque ele tenta
impor uma vida artificial.
— A natureza leva as coisas embora por suas boas razões e
na época adequada — disse Merlim. — Se você quiser flores fora
da estação, você pode bordar flores que irão durar para sempre,
mas quem poderia fingir que elas estão efetivamente vivas?
Analogamente, sempre que você sente necessidade de controlar e
lutar, de manter as pessoas, o dinheiro ou as coisas presos a você
quando eles vão embora, você está se opondo à força universal que
mantém tudo em equilíbrio.
— Você terá que adquirir confiança antes de poder renunciar
ao seu controle. Seu condicionamento conduz à desconfiança,
porque vocês, mortais, querem desesperadamente acreditar que
111
são imunes aos ciclos da natureza — disse Merlim num tom meio
divertido. — Enquanto seu corpo nasce, envelhece e morre, vocês
criam fantasias a respeito de deixar prédios e estátuas imortais, uma
reputação e cofres cheios de riquezas. Façam como quiserem, mas
se vocês querem escapar à dor e à morte, livrem-se primeiro da
ilusão de que estão além da natureza.
Quando você começar a perceber as sementes da oportunidade
nas cinzas da desgraça, a confiança estará começando a crescer.
Essa confiança surge em estágios. Primeiro, comece a perceber que
os julgamentos do ego sobre a perda são falsos.
— A dor não é a verdade — disse Merlim. — A dor é o que
os mortais sofrem para descobrir a verdade.
Segundo, procure a outra face da desgraça ou da perda, a
minúscula semente do novo que quer nascer.
— Quando você examinar as cinzas — recomendou Merlim
—, examine bem.
Terceiro, substitua a culpa e a queixa pelo conhecimento calmo e
seguro de que você está protegido no plano da natureza; não importa
o que você possa ter perdido, é temporário e irreal. Isso estava
destinado a ir embora, não porque a natureza seja cruel e
indiferente, mas porque cada passo que você dá em direção ao real é
precioso. A partir dessa perspectiva, você começará a perceber que a
perda e o ganho são apenas uma máscara. Debaixo dela encontra-se
a luz constante do eterno, que brilha através de todas as coisas,
tecendo a unidade a partir do caos.
112
15- Lição
Na medida em que você conhece o amor, você se torna o
amor.
O amor é mais do que uma emoção. Ele é uma força
da natureza
e, portanto, tem que conter a verdade.
Quando você pronuncia a palavra amor, você pode captar o
sentimento, mas a essência não pode ser proferida.
O amor mais puro situa-se onde é menos esperado —
no desapego.
O mais puro cavaleiro a servir Artur era Galaad, e contudo ele tinha
em comum com o rei o fato de ser um filho ilegítimo. Não havia
nenhum estigma associado ao fato de Galaad ser filho natural de
Lancelote, mas quando chegou o dia de Galaad tornar-se o paladino
de uma dama da corte, Artur sacudiu a cabeça e franziu a
sobrancelha.
—Eu não faria de você o paladino de nenhuma nobre dama —
declarou Artur. Galaad ficou vermelho como um pimentão e
gaguejou:
—Mas, meu senhor, todo cavaleiro deve servir uma dama devido
à pureza do seu amor.
—O que você sabe do amor? — indagou Artur, num tom tão direto
que Galaad ficou duas vezes mais vermelho. — Se você está tão
ansioso para ser o paladino de uma dama, eu lhe oferecerei três
delas para que você faça sua escolha.
O rei imediatamente mandou chamar Margaret, uma velha
faxineira de cabelos grisalhos e verrugas no nariz.
113
— Você a serviria por amor, belo cavaleiro? — inquiriu
Artur.
Galaad estava desconcertado.
— Não compreendo, meu senhor — murmurou ele.
Artur lançou-lhe um olhar penetrante e mandou embora a
velha senhora.
—Tragam outra — ordenou. Desta feita foi trazida à presença de
Galaad um bebé do sexo feminino.
—Se você achou Margaret velha e feia demais para que você possa
servi-la, que tal esta dama? Ela é de origem nobre, e você precisa
reconhecer que é linda. — O bebé, sem dúvida, era lindo, mas Galaad
ficou ainda mais confuso. Ele sacudiu a cabeça.
—Esse amor a que você se refere é um senhor exigente — disse
Artur. Ele mandou buscar a terceira dama, e Arabelle, uma encantadora
menina de doze anos, entrou no recinto. Galaad olhou para ela e
tentou controlar sua raiva.
—Meu senhor, ela é apenas uma jovem donzela e minha meia-irmã
— disse ele.
—Você pediu uma dama à qual pudesse servir — declarou Artur — e
fui bastante generoso ao submeter três delas à sua consideração.
Agora você precisa tomar sua decisão.
Galaad parecia atordoado.
— Por que você está zombando assim de mim? — perguntou
ele.
Artur ergueu a mão, e num instante todos se retiraram do grande
vestíbulo, deixando os dois sozinhos.
— Não estou zombando de você — disse ele. — Estou
tentando mostrar-lhe algo que me foi ensinado por meu mestre
Merlim.
Galaad ergueu a vista e percebeu uma expressão enternecida no
rosto do rei.
—Meus cavaleiros afirmam servir as damas por amor — prosseguiu
Artur, e, apesar de seu juramento de servir virtuosamente, amiúde eles
sentem paixão por aquela que servem, não é verdade? — Galaad fez
que sim com a cabeça.
—E quanto mais apaixonadamente apegados eles são às damas,
maior o entusiasmo que sentem em servi-las, não é mesmo? —
perguntou mais uma vez Artur. O jovem cavaleiro concordou
novamente. — Merlim ensinou-me outra maneira de
114
amar — disse Artur. — Considere a velha mulher, o bebé e a menina
que é sua irmã. Todas são manifestações do aspecto feminino, e à
medida que essas formas se alteram, aquilo que você chama de amor
se modifica com elas. Quando você afirma estar apaixonado, o que
você está na verdade dizendo é que uma imagem que você carrega
dentro de si foi satisfeita.
"É assim que o apego começa, com o apego a uma imagem. Você
pode afirmar amar uma mulher, mas se ela o trair com outro homem,
seu amor se transformará em ódio. Por quê? Porque sua imagem
interior foi profanada, e como foi essa imagem que você amou o
tempo todo, a traição dela o deixa enfurecido."
—O que pode ser feito a respeito disso? — indagou Galaad.
—Olhe além das suas emoções, que sempre se modificarão, e
pergunte o que jaz atrás da imagem. As imagens são fantasias; as
fantasias existem para nos proteger de algo que não queremos
enfrentar. Neste caso é o vazio. Por não amar a si mesmo, você
forma uma imagem para encobrir o vazio. É por isso que ser
rejeitado ou traído no amor causa tanta dor: a ferida aberta da sua
necessidade fica exposta.
—O amor é considerado extremamente belo e sublime —,
lamentou-se Galaad —, mas você faz com que ele pareça horrível.
Artur sorriu.
— Aquilo que é geralmente tomado por amor pode ter
consequências terríveis, mas esse não é o fim da história. O amor
encerra um segredo. Merlim contou-me esse segredo há muitos
anos, e vou partilhá-lo com você: quando você puder amar da
mesma maneira uma velha, um bebé e uma menina, você estará
livre para amar além da mera forma. Aí então a essência do amor,
que é uma força universal, se revelará dentro de_ yQcê^JVocê
ficará livre do apego, que é o chamado silencioso a que o amor
precisa obedecer.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
Quando o mago fala do amor, ele está se referindo praticamente ao
oposto daquilo que chamamos de amor. Para nós, o amor é um
115
sentimento altamente pessoal; para o mago, ele é uma força
universal. Apaixonar-se é para nós uma condição que acaba por fenecer;
o mago não se apaixona porque se encontra permanentemente na
corrente do amor propriamente dito. Mas a maior diferença envolve o
apego. Este último surge quando você diz: "Eu o amo porque você é
meu." Esta forma de amor é realmente uma extensão do ego, que
sempre pensa em função de "eu", "mim" e "meu".
— Vocês, mortais, acham que estão diante do amor quando
se sentem completamente apegados a uma outra pessoa — disse
Merlim. — Sua fantasia é possuir alguém completamente ou ser
totalmente possuído. Mas os magos chamam amor o fato d^ não
seiítiremjnenhumsentimento de apegoxiujle_poss©v
— Isso não é simplesmente indiferença? — indagou Artur.
Merlim sacudiu a cabeça.
— A indiferença não contém vida nem energia. O amor do
mago é incrivelmente vivo e flui com a energia do cosmo. Para
que isso aconteça você precisa ser como um recipiente vazio. Os
mortais estão tão cheios de ego que não há lugar para mais nada.
O mago é completamente vazio; por conseguinte, o universo
pode enchê-lo de amor.
Merlim falou suavemente, quase com ternura.
— Apaixonar-se é uma maravilhosa oportunidade para você
— disse ele. — Normalmente você vive em segurança atrás dos
muros do seu ego. Você gosta da estabilidade que sente ali, da
sua falta de vulnerabilidade. Quando você se apaixona, os muros
desmoronam, pelo menos temporariamente. Você fica exposto
e vulnerável, exatamente como temia, mas a força avassaladora
do amor faz com que essa condição seja extática em vez de
dolorosa como você esperava. Em sua melhor manifestação,
apaixonar-se significa partilhar o desconhecido com outra alma,
estar disposto a penetrar junto com ela a sabedoria da incerteza.
Os magos não vêem as formas do amor como superiores ou inferiores
— essa é a linguagem do julgamento, e os magos não julgam.
— Se seu inimigo passar por você e o insultar — declarou
Merlim — ele estará praticando um ato de amor. O impulso do
amor foi despertado no coração do seu inimigo, transformandose
em ódio ao passar através do crivo da memória. Suas expe116
deformado ou distorcido ao vir à tona. Mas não se engane; qualquer
expressão seria amorosa se você pudesse encontrá-la na origem
dela.
—É possível construir uma ponte do tipo de amor que os mortais
sentem para o tipo que você sente? — indagou Artur.
—Você não precisa construir uma ponte, pois existe apenas um
único tipo de amor — replicou Merlim. — O amor pessoal que vocês
sentem uns pelos outros é uma forma concentrada do amor
universal; o amor universal é uma forma expandida do amor pessoal.
Você pode experimentar a ambos em sua plenitude se você se
permitir ser receptivo.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Até certo ponto, todos nos apaixonamos por imagens. Carregamos
essas imagens dentro de nós, esperando até encontrar algo que se
ajuste a elas no mundo exterior. Geralmente procuramos uma pessoa
que reflita nossa auto-imagem ou que a corrija. Um tipo de amor
procura um espelho, o outro uma peça que está faltando. Em ambos
os casos existe uma sensação subjacente de necessidade. Por se
sentir incompleto, você tenta compensar sua carência através de
outra pessoa.
— Se você quiser sentir o amor como Deus sente, você precisa
preencher todos seus vazios, porque Deus só pode amar a partir de
um estado de plenitude — advertiu Merlim.
Ser um amante perfeito significaria não ter nenhuma fraqueza ou
ferimento secreto que você deseje que outra pessoa cure para você.
Descobrir seus vazios é o primeiro passo e preenchê-los com o Ser
ou a essência, o segundo. Este processo normalmente se chama
aprender a amar a si mesmo, mas precisamos ter cuidado com essa
expressão. Frequentemente ela é sinónimo de aprender a amar a
auto-imagem. Aos olhos do mago, a auto-imagem é simplesmente o
ego; é a negação que procura disfarçar o vazio da falta.
Uma melhor denominação para o verdadeiro processo do
aprendizado de amar a si mesmo seria aprender a amar o Eu,
117
significando o espírito. Se você examinar com sinceridade seu
passado, que está agora armazenado sob a forma de milhares de
memórias interiores, você sempre encontrará um conjunto bastante
sortido — algumas experiências podem ter despertado o amor do eu
ou de outras pessoas, muitas não o fizeram. As memórias de
vergonha, culpa, rejeição, ódio, ressentimento e de outros sentimentos
desagradáveis não podem ser convertidas em amor. Essas
imagens são o que são. Aceite-as e avance em direção a um senso
mais elevado do Eu, que não está relacionado com a memória.
Esta última só pode encerrá-lo numa sensação sufocante do seu
passado pessoal. Além da memória situa-se a tranquila experiência
do Ser, a simples percepção consciente sem conteúdo. Essa é a
região do amor, a região que existe dentro de você e na qual você
entra através da meditação. Existem muitos tipos de meditação; a
tradição, tanto no oriente quanto no ocidente, é guiada pelo
princípio de que existe dentro de você um núcleo do Ser, ou
essência, que pode ser penetrado. O acesso não se dá através do
pensamento ou do sentimento. Em vez disso, meditar é ir
diretamente à região silenciosa interior.
Você pode ter uma ideia de como é ir além das imagens através
do seguinte exercício: pense numa mulher ou num homem bonito,
que represente seu objeto ideal de amor. Veja a pessoa o mais
vividamente possível, e depois mude o rosto dela, tornando-a cada
vez mais velha, até que a beleza desapareça e você passe a
contemplar uma pessoa enrugada e encarquilhada. Seu sentimento
de amor ainda é tão forte quanto o do início? Quase todos nós
achamos extremamente difícil nutrir os mesmos sentimentos por
uma face velha e enrugada e por um rosto jovem e belo. Você pode
chamar isso de amor, quando uma mera mudança na imagem causa
uma alteração tão grande?
—Por que o amor muda? — perguntou Artur.
—Porque a emoção do amor sempre encerra seu oposto. O amor
mais forte encobre um ódio igualmente forte — replicou Merlim. — A
única diferença é que o amor está em florescência enquanto o ódio
ainda é uma semente.
Ou então experimente fazer este exercício correlato: pense. numa
ocasião em que alguém que você amava profundamente o magoou.
Pode ter sido um momento de indiferença ou traição, ou pode ter
sido um ato que revelou que seu amado não era
perfeito e sim apenas humano. S^xox^Jor-sincercL-consigCL mesmo,
118
se^lemhrará 4e como o amor pode se transformar em outros
sentimentos de uma forma violenta e repentinaJQ ódio, o ciúme, a
mágoa ou a indiferença que surgiu esteve sempre presente de uma
forma incipiente, oculto pela visão do amor que você preferia sentir. Por
que você o preferia? Além do simples prazer, existe outro motivo: o
ega Na verdade, o tipo de amor que você sente por outra pessoa diz
respeito a você, porque o que mantém ativo esse amor não é o que é
real no ser amado e sim algo bem mais premente: sua necessidade de
possuir.
Quando você pensa que possui uma outra pessoa, você está na
verdade descobrindo uma maneira de fugir de si mesmo, de evitar os
medos e as fraquezas que você nega. Em vez de se enfrentar, você
olha no espelho do amor e enxerga a perfeita realização nas emoções
que você sente pelo ser amado. Isso não é uma crítica. Na visão do
mago, o amor é na verdade uma maneira de vivenciar a realização
perfeita, mas isso não pode acontecer através da fantasia. O espelho do
amor é uma maneira divina de transcender o ego, mas somente
depois de você alcançar a corrente pura do Ser que jaz como uma
jóia secreta dentro de cada sentimento de amor.
— Lembre-se — disse Merlim —, o amor não é um mero sentimento
e sim uma força universal, e como tal ele precisa conter a verdade.
Se você for capaz de se aprofundar dessa maneira, perceberá que
todas as emoções vêm a ser o amor disfarçado. O ciúme e o ódio
parecem opostos ao amor, mas eles também podem ser vistos como
uma maneira deformada de retornar ao amor. A pessoa ciumenta
procura o amor, mas tem um jeito distorcido de envolver-se com ele; a
pessoa que tem ódio dentro de si pode querer desesperadamente o
amor, mas odeia ao se sentir desesperada por nunca consegui-lo.
Quando você parar de encarar o amor como uma mera emoção,
perceberá que faz sentido o fato de que uma força universal atrai todo
mundo na direção dele — esse é o amor do mago. Assim, deveríamos
honrar todas as expressões do amor, por mais deturpadas que sejam.
Embora poucas pessoas possam ser capazes de vivenciar o amor
universal em sua plenitude, todas estão percorrendo o caminho em
direção a ele.
119
16- Lição
Além de andar, sonhar e dormir, existem infinitas
esferas de consciência.
O mago existe simultaneamente em todas as épocas.
O mago enxerga infinitas versões de cada evento.
As linhas retas do tempo são na verdade fios de uma teia
que se estende em direção ao infinito.
O manto de Merlim era bordado com luas e estrelas, e o menino
Artur tinha curiosidade de saber por que ele era assim.
—Vou lhe mostrar — disse Merlim. O mago levou Artur para o
alto de uma colina. — Mostre-me agora a coisa mais distante que
você consegue enxergar.
—Vejo a floresta estendendo-se por quilómetros até alcançar o
horizonte. Isso é o mais longe que consigo ver — foi a resposta de
Artur.
—E o que está mais longe do que isso? — perguntou Merlim.
—A extremidade do mundo, o céu, e o sol, eu suponho —
respondeu Artur.
—E além disso?
—As estrelas e depois o espaço vazio, estendendo-se em direção
ao infinito.
—E isso também seria verdade se eu o virasse de costas? —
indagou Merlim. O menino fez que sim com a cabeça.
—Muito bem — disse o mago. — Agora, siga-me.
Ele conduziu o menino ao riacho aonde frequentemente iam à
tarde para cochilar.
120
—Agora qual a coisa mais distante que você consegue ver? —
perguntou Merlim.
—Não consigo ver muito longe nas florestas profundas como esta;
só enxergo até a última curva do riacho, ali adiante. — Artur apontou
para um ponto situado a cerca de cem metros dali.
—Mas você sabe que o riacho corre em direção ao mar e que o
mar avança em direção ao horizonte, não é? — indagou Merlim.
Artur concordou com ele. — Então o horizonte daria lugar à
extremidade do mundo, ao céu, ao sol, às estrelas e ao espaço
infinito, exatamente como antes? — perguntou Merlim.
—Sim — respondeu Artur. Uma vez mais o mago demonstrou
estar satisfeito e conduziu o discípulo à gruta de cristal.
—Agora até onde você consegue ver? — perguntou ele.
—Está escuro, e tudo que consigo enxergar são as paredes da
gruta — disse Artur —, mas, antes que você me pergunte, concordo
que fora da gruta estão a floresta, as montanhas, o horizonte, o céu,
o sol, as estrelas e o espaço vazio.
—Então guarde bem isso — declarou Merlim num tom de voz
mais elevado. — Não importa aonde você vá, o mesmo infinito se
estende em todas as direções. Você é portanto o centro de universo,
não importa aonde vá.
—Isso parece um truque — protestou Artur.
—Não, seus sentidos é que estão lhe pregando uma peça, fazendo
com que você acredite que possui uma localização específica. Na
verdade todo ponto no cosmo é o mesmo ponto, um foco para o
infinito em todas as direções. Não existe aqui ou ali, perto ou longe.
Na visão do mago, há apenas todos os lugares e nenhum lugar.
Sabendo disso, você também vestiria luas e estrelas. Sem a ilusão
dos sentidos, você compreenderia que a lua e as estrelas estão bem
aqui ao seu lado.
—Quando compreenderei isso? — perguntou o menino.
—Com o tempo. Quando o tumulto da sua alma se acomodar,
você verá os céus dentro do seu ser.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
Se acreditamos nos nossos sentidos, o espaço e o tempo não são
misteriosos. De pé sobre uma montanha, podemos ver que a terra
121
termina no horizonte e que o sol nasce no céu. Os segundos vão
passando e o tempo se desloca em linha reta do passado em direção
ao futuro. No entanto, para o mago, o tempo e o espaço são
infinitamente misteriosos. O mago acredita num presente eterno, ele
percebe que todos os eventos ocorrem simultaneamente, e cada
lugar é o mesmo ponto circundado pelo infinito.
— O espaço-tempo ordinário é um véu que você ainda não
atravessou — disse Merlim. — Enquanto confiar nos seus senti
dos, você permanecerá deste lado do véu. Quando você trans
cender seus sentidos, contudo, dará consigo em esferas e mun
dos que você não consegue imaginar agora. Cada esfera é um
estado de consciência, e a descoberta de novos mundos depende
apenas da redefinição da sua consciência até que ela desperte
para as realidades que pairam tão perto. Neste exato momento,
tanto você quanto eu podemos ver o infinito em todas as
direções, mas fazemos disso um uso muito diferente.
Para fazer uso do infinito, você precisa reformular sua concepção
mental do tempo e do espaço, descartando a percepção grosseira
dos sentidos. Você já sabe que a extremidade do mundo não é o
horizonte, que o sol na verdade não nasce no céu. Os fatos que
substituíram essas crenças erróneas podem parecer bastante
sólidos, mas também estão abertos à mudança. O mago vê o tempo,
por exemplo, como uma frágil coleção de fios tecidos momento a
momento. A cada vez que você toma uma decisão, você cria uma
nova linha de eventos que se estende a partir deste momento; até
você ter tomado essa decisão, esse fio de tempo não existia.
Por perceber o tempo dessa maneira, como subjetivo e criativo, o
mago pode tecer sua própria versão de eventos na teia e, desse
modo, alterar o passado ou o futuro.
—Alguém pode realmente modificar o passado? — perguntou
Artur.
—É claro — retrucou Merlim. — Vocês, mortais, têm o hábito de
acreditar que o passado cria o presente e que o presente gera o
futuro. Este é apenas um ponto de vista arbitrário. Imagine por um
momento sua versão de um futuro perfeito. Veja a si mesmo nesse
futuro tendo realizado tudo que possa desejar neste momento. Você
consegue se ver lá?
122
Artur fez que sim com a cabeça, porque ele tivera de repente uma
visão de Camelot em toda sua glória.
—Muito bem. Pegue agora a memória desse futuro e traga-a para
o presente. Deixe que ela influencie a maneira como você irá se
comportar a partir deste momento. Se você imaginou a paz e a
satisfação numa total ausência de medo, viva isso agora. Sempre que
impulsos de raiva, medo ou carência surgirem do passado, desfaçase
dessas memórias e aja de acordo com suas memórias futuras.
Livre-se do fardo do passado, e deixe-se guiar por sua visão de um
futuro realizado. Você percebe o que aconteceu?
—Não estou bem certo — replicou Artur.
—Você está vivendo às avessas no tempo, exatamente como faz o
mago. Viver hoje o sonho de amanhã é uma possibilidade que está
sempre aberta a você. Quem diz que você precisa viver apenas o
passado? Por viverem para a frente no tempo, os mortais são sempre
oprimidos pelo fardo da memória; eles deixam que o passado crie o
presente. O mago escolhe deixar o futuro criar o presente, é isso que
realmente significa viver às avessas no tempo.
—E você alterou o passado, então, por não mais permitir que ele
influenciasse suas ações no presente — disse Artur.
—Exatamente. Mas esse não é o final da história. O passado pode
ser modificado de um modo muito mais profundo. Quando você
aprender que o tempo está sendo inventado na sua consciência, você
perceberá que não existe passado. Existe apenas o eterno presente,
em eterna renovação. O agora é o único tempo que realmente existe.
O passado é memória, o futuro é potencialidade. Este momento é o
ponto central de qualquer futuro possível que você possa imaginar.
Mude, portanto, completamente o passado vendo-o como irreal, um
espectro da mente.
Viver às avessas no tempo não é uma fantasia, uma vez que você
já está vivendo alguma versão do futuro neste momento. Você
carrega na sua consciência modelos de como as coisas funcionam;
esses modelos lhe permitem projetar suas expectativas para a frente
no tempo. Você antevê que seus amigos continuarão a ser seus
amigos, que você continuará a ter uma
123
família e um emprego. Num nível mais profundo, seus modelos sociais
lhe dizem que o país e o governo permanecerão os mesmos, e assim
por diante. Nesse mesmo nível mais profundo, seu modelo da realidade
supõe que a gravidade, a luz e outras forças da natureza não sofrerão
modificações.
É tão importante psicologicamente para nós ter um modelo de como
as coisas continuarão a funcionar, que sofremos quando esse modelo é
ameaçado por qualquer mudança profunda ou inesperada na nossa
vida; seguindo a mesma linha de raciocínio, também usamos projeções
que nos proporcionam uma vida mais satisfatória do que a que temos
neste momento. Todos temos desejos, sonhos, temores e crenças —
eles são projeções dos nossos modelos internos — que nos conferem
uma segunda v ida, por assim dizer, inteiramente baseada em
projeções. Aos olhos do mago, quase todas as pessoas parecem trens,
com lâmpadas reluzindo na locomotiva, atravessando velozes a linha
férrea. Tudo que vêem é o que se encontra no campo de visão dos seus
faróis dianteiros, sem levar em consideração a infinita expansão de
possibilidades que se estendem em ambos os lados.
Pense na linha férrea como o tempo. Nosso estreito senso de tempo
está diretamente amarrado às nossas estreitas convicções. O pessimista
acredita que nada vai dar certo, o que lhe proporciona um modelo
unidirecional para o futuro. O idealista acredita que os valores mais
elevados irão prevalecer, e esse também é um modelo para o futuro.
Quando o pessimista depara com a boa sorte ou o idealista com
resultados que estão aquém do ideal, ambos preferem seus modelos à
realidade. Esta observação não pretende criticar a utilidade dos
modelos, e sim mostrar que eles não são reais. Em vez de enfrentar
cara a cara o momento presente, todos vivemos às avessas no tempo,
utilizando o futuro que projetamos para guiar nossas ações no
presente. Mas ao contrário do mago, não fazemos isso
conscientemente.
Em vez de você ser presa do seu subconsciente, que está
constantemente impelindo-o a abraçar um futuro previsível, você pode
assumir o controle do seu talento para projetar. Viva agora seu mais
elevado ideal. Veja um futuro baseado na crença de que o universo se
preocupa com você, que você está crescendo em direção a uma
consciência superior, que o amor, a verdade
124
e a auto-aceitação já são seus. Você não precisa atingir esses estados
a fim de vivê-los agora. Vivê-los agora é a maneira de alcançá-los.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Como acabamos de ver, é fundamental que você destrua suas antigas
suposições sobre o tempo e o espaço, porque o que você considera
como o tempo e o espaço "reais" são na verdade ideias preconcebidas
herdadas da infância. Chamo isso de a teia do tempo — explicou
Merlim —, porque eu me vejo como uma aranha sentada no centro de
todos os eventos, que emanam de mim como fios da teia. Cada evento,
assim como cada fio, é necessário para a criação da teia, e no entanto
posso escolher seguir um de cada vez se o desejar.
O mago acha fácil deslocar-se do tempo local para o tempo
universal, deixar de ver as coisas como eventos isolados e percebê-las
como uma totalidade.
Como você pode aprender a ver o tempo como uma totalidade em
vez de encará-lo como uma linha reta? Na história, Merlim mostrou a
Artur como ele poderia se ver como o centro espacial do universo não
importa onde estivesse. O mesmo pode ser feito com relação ao tempo.
Considere o momento presente e depois recue no tempo até ontem, o
ano passado, uma década atrás. Continue a recuar até atingir seu
nascimento, depois acelere e veja os séculos passados, a pré-história,
o início do mundo. Leve a linha até o nascimento da terra, do sol, das
estrelas. Ao dissolver as estrelas e recuar até o universo primordial,
você chegará ao momento do big-bang. Sua imaginação agora
provavelmente será incapaz de criar imagens de um passado ainda
mais distante, mas mesmo assim você não precisa parar. Não existe
realmente um início do tempo, porque com relação a qualquer
momento que você considere um início, você pode fazer a pergunta: O
que aconteceu antes disso?
Analogamente, se você começar no momento presente e avançar
no tempo, poderá esgotar suas imagens depois de
125
imaginar o fim do mundo, o fim do sol, o fim das galáxias. Mas nunca
haverá um final do tempo, porque você sempre poderá perguntar: O
que vai acontecer depois disso? Em resumo, o tempo é uma
eternidade que se estende em ambas as direções, não importa o
momento que você escolha como seu início. Isso lhe diz duas coisas:
você é o centro da eternidade, e todos os pontos no tempo são na
verdade o mesmo. Isso precisa ser verdade se a eternidade
realmente for igual a partir de qualquer ponto no tempo. Foi dito que
o tempo é a maneira de a natureza evitar que experimentemos tudo
simultaneamente. Também poderíamos dizer que o tempo é a
maneira de a natureza deixar que satisfaçamos pouco apouco nossos
desejos, que é, afinal de contas, a maneira mais agradável.
De fato, cada momento é cada outro momento, e o que cria a
ilusão de passado, presente e futuro é apenas o foco da sua atenção.
Sua mente é a faca que corta o continuum do espaço e do tempo em
distintas fatias de experiência linear. Quando você conseguir utilizar
conscientemente esse poder, você será um mago.
— Escreva a palavra nowhere (em nenhum lugar) — ordenou Merlim
a Artur — e depois reescreva-a como now here (agora aqui). Você
tem em poucas palavras a verdade a respeito do tempo e do espaço.
Você teve origem num continuum que não tem um início no tempo ou
no espaço. Por ser infinito e eterno, você não vem de nenhum lugar.
Sua mente e seus sentidos localizaram a eternidade num ponto, que
é agora aqui. O relacionamento entre nenhum lugar e agora aqui é o
relacionamento entre o infinito e este momento no qual você está
vivendo
126
17a Lição
Os buscadores nunca se perdem, porque o espírito está sempre
acenando para eles.
Os buscadores recebem continuamente pistas do mundo do
espírito. As pessoas comuns chamam essas pistas
de coincidências.
Não existem coincidências para o mago. Cada evento existe para
expor outra camada da alma.
O espírito deseja conhecê-lo. Para aceitar esse convite, você
precisa deixar cair suas defesas.
Comece a procurar em seu coração. A gruta do
coração é o lar da verdade.
Merlim tinha o estranho hábito de parecer apreciar os pequenos
infortúnios de que era vítima o menino Artur. Se Artur chegava na
gruta todo machucado por ter caído de uma árvore, o mago
murmurava "Otimo" quase inaudivelmente. Certa vez, durante uma
tempestade de relâmpagos, um sicômoro velho e podre foi atingido
por um raio e quase caiu em cima de Artur.
— Excelente — resmungou Merlim.
Apesar de suavemente proferidos, esses comentários faziam com
que o menino se sentisse fortemente magoado. Ele prometeu a si
mesmo que iria ocultar do mestre esses pequenos acidentes, mas no
dia seguinte ele estava cortando lenha perto da gruta quando o
machado escorregou da sua mão. Numa fração de segundo a lâmina
atravessou o sapato de Artur, quase atingindo seus dedos do pé.
Quando ele gritou assustado, Merlim chegou rapidamente e fez uma
rápida avaliação do sapato.
127
—Está cada vez melhor — sussurrou Merlim suavemente. Artur
não conseguiu se conter.
—Como você pode ficar feliz por eu ter me machucado? — ele
gritou.
—Feliz? Do que você está falando? — Merlim parecia
genuinamente confuso.
—Você não percebe que eu noto, mas sempre que algo ruim me
acontece, você parece ficar satisfeito.
Merlim fez uma careta.
— Você não deveria escutar às escondidas conversas que
não são para você ouvir, especialmente quando são conversas
que tenho comigo mesmo.
Essa resposta fez com que o menino se sentisse extremamente
deprimido. Ele estava prestes a afastar-se rapidamente para escapar
ao coração de pedra de Merlim quando o mago segurou-o pelo
ombro.
—Você acha que me entende, mas isso não é verdade — disse ele.
Sua voz tornou-se mais suave. — Eu não estava festejando sua
desgraça. Eu estava comemorando o fato de você conseguir escapar.
Você nem pode imaginar como esses acidentes poderiam ter sido
piores.
—Você está querendo dizer que me salvou do perigo? — indagou
Artur desconcertado. Merlim sacudiu a cabeça.
—Você salvou a si mesmo, ou pelo menos está aprendendo a fazêlo.
Não existem acidentes, embora vocês, mortais, acreditem neles.
Existe apenas causa e efeito, e quando a causa está muito distante
no tempo, o efeito retorna depois de você ò haver esquecido. Mas
esteja certo de que tudo que lhe acontece de bom ou de mau é
resultado de alguma ação no passado.
Por ser jovem e confiar em seu mestre, Artur não opôs resistência
a essa nova ideia. Ele refletiu por um segundo.
—Você está dizendo que esses infortúnios são como um eco. Se
eu gritasse ontem e o eco esperasse até hoje para voltar, eu talvez o
tivesse esquecido.
—Exatamente.
—Então como estou aprendendo a evitar essas reações
retardadas, se já esqueci as ações que lhes deram origem? —
indagou o menino.
128
— Estando mais alerta. As ações voltam repetidamente para
nós vindas de diferentes direções. Existem tantos tipos de causa
e efeito atuando à nossa volta que precisamos ficar muito atentos
para poder percebê-los. Nada é aleatório no universo. Suas ações
passadas não estão voltando para puni-lo e sim para captar sua
atenção. É como se elas fossem pistas.
— Pistas? Para o quê?
Merlim sorriu.
— A pista perderia a finalidade se eu lhe contasse. É
suficiente que eu lhe diga que você não é quem pensa ser. Você
vive em múltiplas camadas de realidade. Uma delas chamare
mos de espírito. Imagine que você não se conhece como espírito,
mas que seu espírito o conhece. O que poderia ser mais natural
do que ele chamar por você? As pistas que caem do céu são men
sagens do espírito, mas você precisa estar alerta para captá-las.
—Mas tudo que aconteceu foi eu cortar meu sapato com um
machado e quase ser atingido por uma árvore que tombou. Foi apenas
uma coincidência eu estar debaixo daquela árvore para me proteger
da tempestade — protestou o menino.
—Isso é o que você diz, e os mortais gostam de dizê-lo o tempo
todo. Mas se você prestar atenção, perceberá que uma pista
disfarçada está presente em cada coincidência. Cabe a você interpretála.
Contudo, vou lhe dizer o seguinte. Se aquela árvore tivesse caído
em cima de você ou se você tivesse se machucado hoje, eu não teria
me lamentado. Eu teria dito: E difícil prestar atenção ao espírito.
Como você está conseguindo evitar cada vez melhor os acidentes, posso
afirmar em vez disso: Ele está aprendendo a ouvir.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
Dos mundos que o mago habita, os que estão mais afastados um do
outro são o da matéria e o do espírito. Esses são os dois pólos da nossa
existência. E natural oscilar de um pólo para o outro, abandonar a fé
em favor do ceticismo, até os opostos se unirem. No presente momento,
o impulso está distante do pólo material,
embora esse pólo ainda domine o pensamento de todo mundo. Quando
falamos de causa e efeito, queremos dizer que as coisas materiais
interagem — o Sol atrai a Terra fazendo com que gire ao redor dele, o
riscar de um fósforo cria uma chama, o raio atinge a árvore e ela cai.
O fato de os seres humanos habitarem essa arena de causa e efeito não
129
faz nenhuma diferença; as leis da natureza operam sem fazer caso de
nós.
O mago não aceita esse ponto de vista materialista. Para Merlim
cada ação da natureza, por mais insignificante, tinha um significado
humano. Isso se deve ao fato de ele olhar para o pólo oposto, o mundo do
espírito, para descobrir o lugar onde a causa e o efeito realmente
começam.
—Vocês, mortais, precisam ser muito mais vaidosos — disse ele a
Artur.
—Mais vaidosos? Você frequentemente diz que nada tão cheio de
vaidade jamais foi criado — retorquiu Artur.
—Ainda afirmo a mesma coisa, mas se vocês fossem ainda mais
vaidosos, talvez conseguissem perceber como são excepcionais. O
universo está organizado ao redor do seu destino e obedece aos seus
menores caprichos, e no entanto vocês saem por aí reclamando que
Deus e a natureza são totalmente indiferentes.
—Se Deus não é indiferente, então por que Ele não mostra Suas
intenções?
—Ah, você precisa tentar descobrir isso. Talvez o mundo todo tenha
sido criado como um jogo divino de esconde-esconde.
—Esse seria um jogo muito cruel — disse Artur, sacudindo a cabeça.
— Eu não simpatizaria com um pai amoroso que se recusasse a
mostrar o rosto para mim. O que significaria então esse suposto amor?
—Não esteja tão certo de que a decisão foi Dele — admoestou
Merlim. — Se Deus pareceu afastar-se, talvez tenha sido você que O
mandou embora.
Merlim está tratando aqui de uma questão de perspectiva. Se você vê
o mundo como material, então os eventos acontecem sem levar em
consideração a existência humana. Por outro lado, se você percebe que
o espírito é a força primária no universo, então a aparente indiferença
da natureza pode ser uma máscara ou encerrar uma mensagem oculta.
Os magos enxergam através
130
da máscara, descobrindo uma mensagem do espírito em cada evento,
mas as mensagens permanecem disfarçadas enquanto nossa
percepção está obscurecida.
E por isso que Merlim chamou as mensagens de pistas. Para haver
pistas, é preciso existir um mistério. Neste caso, o mistério é como o
mundo consegue ser ao mesmo tempo material e espiritual, como o
mesmo ato pode dar a impressão de ser o trabalho de um Deus
completamente indiferente ou o sinal da Sua presença amorosa.
— Não cultivo os paradoxos simplesmente porque isso me
agrada — declarou Merlim. — A perspectiva é tudo. Se alguém
corre em sua direção de braços abertos, você pode considerar
esse ato um ataque se você sentir que a pessoa é um inimigo, ou
um abraço se ela for um amigo. O bebé pode chutar e gritar
quando sua mãe esfrega seu rosto, mas do ponto de vista da mãe,
ela está praticando um ato de amor ao limpar o filho.
"Analogamente, a maioria dos eventos que vocês chamam de
desgraças ou até de castigo divino são na verdade oriundos da
compaixão, pois Deus sempre corrige os desequilíbrios da natureza
da maneira mais afável. São vocês que criam esses desequilíbrios, os
quais Ele precisa purificar a fim de salvá-los de desgraças mais
profundas."
Os buscadores são aqueles que tentam resolver o aparente
paradoxo da indiferença de Deus e do amor de Deus. Eles examinam as
crises que a maioria das pessoas evita. Porque é da dor, do fracasso ou
da desgraça que podemos extrair a verdade mais profunda. Vale a
pena dedicar toda uma vida à solução desse enigma.
— Não me interprete mal quando eu digo que o espírito deixa
pistas em toda parte — disse Merlim. — Não estou querendo
dizerque as pistas são óbvias ou que o mistério será facilmente
solucionado.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Se o espírito derrama pistas em toda parte, como você pode detectálas?
Primeiro, você precisa estar disposto a enxergar
131
essas pistas. Elas se manifestam de diferentes formas: quando você
encontra alguém em quem acaba de pensar, ouve uma pessoa
pronunciar uma palavra que acaba de passar pela sua mente, vê seus
planos fracassarem e descobre nisso um benefício oculto, observa que
um número excessivamente grande de coincidências estão
acontecendo na sua vida para que possam ser verdadeiramente
coincidências. O espírito frequentemente começa a falar dessas
maneiras — elas poderiam ser chamadas de primeiros encontros.
Escapar por um triz, os felizes acidentes e as intuições que se tornam
realidade também se encaixam nessa categoria; em todos esses casos,
os padrões normais de causa e efeito são estendidos, algumas vezes
rompidos. Se você tentar aplicar o tipo de lógica que diz que A causa B,
que por sua vez causa C, a explicação não vai funcionar, porque essas
coincidências são altamente improváveis e excessivamente pessoais. A
verdadeira pergunta não é "Por que isso aconteceu?" e sim "Por que
isso aconteceu comigo?"
E claro que a autocomiseração pode gerar a mesma pergunta: Por
que isso aconteceu comigo? É preciso aprender a fazê-la de uma
maneira diferente, em função de uma curiosidade desprovida de
autocomiseração. O ego acha que uma coisa estranha ou má que
acontece não pode possivelmente ser ao mesmo tempo boa. No
entanto, qualquer ocorrência destina-se a ser útil. O espírito às vezes
precisa usar uma bondade superior, ensinando uma árdua lição, por
compaixão, para que coisas verdadeiramente desastrosas sejam
evitadas. E o que dizer do que é realmente desastroso? O mago encara
esses eventos como o melhor que o espírito poderia fazer, tendo em vista
a complexa rede de causa e efeito em que cada pessoa está
emaranhada.
No entanto, frequentemente, não existe um conteúdo espiritual
óbvio nas pistas da vida cotidiana. Elas são apenas o primeiro aceno,
um chamado para o despertar. Todo mundo nota os eventos fora do
comum, mas a não ser que os encare como pistas, você não
perguntará o que eles querem dizer. Você simplesmente os deixará
acontecer e seguirá adiante. Eles permanecerão inexpressivos.
É importante ter uma estrutura de entendimento, saber que outro
aspecto de si mesmo — o espírito — está brilhando através
132
18- Lição
A imortalidade pode ser vivida em meio à mortalidade.
O tempo e o intemporal não são opostos. Por abarcar tudo,
o intemporal não tem opostos.
No nível do ego, nos esforçamos para resolver nossos
problemas.
O espírito percebe que o problema é o esforço.
O mago tem consciência da batalha entre o ego e o espírito,
mas compreende que ambos são imortais
e não podem morrer.
Cada aspecto seu é imortal, até mesmo as partes que
você julga com mais severidade.
Quando Artur era um rei muito jovem, ele ouviu falar num louco que
vivia nas profundezas da floresta de Camelot.
— Não preste atenção a esses rumores infundados — reco
mendaram os mais sábios. — Trata-se apenas de um lunático que
se fechou numa cabana e logo morrerá.
Mas Artur sentiu algo despertar dentro de si. Ele convocou seus
cavaleiros e partiu em busca do louco. Horas depois, o grupo real
chegou a uma clareira não muito distante da estrada principal que
atravessa a floresta. No meio da clareira erguia-se uma cabana feita
de taipa, tão mal construída que galhos nus sobressaíam em toda
parte. Artur apeou e caminhou em direção a ela. A cabana não tinha
porta, apenas uma pequena janela para deixar o ar entrar.
— Quem está aí? — perguntou ele.
133
— Alguém que não é deste mundo — respondeu uma voz
fraca.
Artur ficou parado um momento, pensando.
—Gostaria de conversar com você, seja lá quem você for. Saia por
ordem do rei.
—Não tenho nenhum rei. Deixe-me em paz — retrucou a voz.
—Mas você não tem nem água nem comida. Você precisa de
ajuda — disse Artur.
—Não preciso da sua ajuda — retorquiu a voz, recusando-se
depois a pronunciar qualquer outra palavra. Os cortesãos queriam
que Artur partisse, constrangidos por ele estar interessado num
lunático, mas em vez de acatar a sugestão deles, o rei ordenou que
qualquer pessoa que tivesse informações sobre o homem fosse levada
à presença dele. Vários homens partiram a cavalo pela floresta,
regressando com uma pobre mulher maltrapilha.
—Esta é a esposa — disse um dos homens soltando a mulher, que
estava claramente confusa e assustada.
—Por favor fique calma. Só quero ajudar seu marido — disse
Artur.
A mulher ainda tremia, mas disse:
—Ele não me chama mais de esposa. Meu Will jurou ficar isolado
dentro dessa cabana até morrer ou receber um sinal de Deus.
—Por quê? — perguntou Artur.
—Por estar sofrendo, meu senhor. Tínhamos um filho que ele
amava mais do que tudo no mundo. Meu Will é lenhador, e um dia
ele entrou na floresta com nosso menino, que tinha seis anos. Will
estava absorto em seu trabalho, e quando não estava olhando, o
garoto escapuliu. Nós chamamos e procuramos até ficarmos
desesperados. No dia seguinte, seu pequeno corpo apareceu
flutuando correnteza abaixo. Nosso filho morreu afogado, e meu
marido não consegue se perdoar por isso.
A história deixou Artur muito triste.
—A dor não é motivo para alguém se matar — disse ele.
—O mesmo digo eu — declarou a pobre mulher. — Mas ele jurou
que enquanto Deus em pessoa não vier lhe dizer por que nosso filho
foi levado embora, ele amaldiçoará este mundo e não terá nada a ver
com ele. "Observei toda minha vida o sofrimento
134
que Deus permite", diz ele, "e não terei mais nada a ver com ele. Se
Ele não aparecer para Se explicar, não faz diferença, porque, de
qualquer modo, estou praticamente morto."
Apesar de a hi stória da mulher ser extremamente comovente,
Artur não pôde deixar de ficar intrigado com a curiosa postura desse
homem diante de Deus.
—Essa história é verdadeira? — perguntou ele ao homem que
estava dentro da cabana. Ouviu-se um grunhido baixo, mas Will, o
lenhador, nada mais teve a dizer.
—Vou passar a noite aqui e conversar com esse pobre coitado —
anunciou Artur, mandando para casa o resto do grupo real. Os
cortesãos mostraram-se relutantes em deixar seu rei sozinho na
floresta, mas ele acabou convencendo-os a se afastarem e
acamparem a meia légua dali. A noite caiu rapidamente, e não havia
lua. Artur sentou-se ao lado da cabana, embrulhado em seu manto,
para proteger-se da umidade.
—De certa maneira sinto-me mais próximo de você do que de
qualquer outra pessoa no meu reino — começou ele. — Sou novo no
governo, e sinto intensamente o sofrimento que me cerca. Existem
pobres, doentes e aleijados em toda parte, mas os problemas deles
também são meus, enquanto eu for o rei. Passei muitas noites em
claro me perguntando como poderia resolver os males deste mundo.
Parece que eu poderia passar a vida inteira e gastar toda minha
fortuna para combater a desgraça que vejo à minha volta, e, no
entanto, como o trigo na primavera, as sementes do infortúnio
germinariam duas vezes mais abundantes na estação seguinte.
—Estou esperando Deus — interrompeu de repente a voz dentro
da cabana. — Não preciso ouvir seus discursos. Deixe que Ele
responda por Si mesmo.
—Bastante justo — replicou Artur. — Mas é da minha conta o fato
de eu me ver em você. Tive um mestre chamado Merlim, e ele me
disse que existe apenas uma única solução para o mal, que é não
lutar contra ele e sim compreender que o mal não existe.
—Palavras tolas — disse a voz. — Procure outro mestre.
—Você precisa escutar mais — insistiu Artur. — Merlim disse que
o bem e o mal entram constantemente em conflito;
135
ambos nasceram há milhares de vidas. E enquanto houver luz e
sombra, o bem e o mal subsistirão.
—Nesse caso, você deveria se desesperar e se fechar comigo
nesta cabana, pois você viu os verdadeiros sentimentos de Deus com
relação a este mundo. Ele quer que soframos — declarou
amargamente a voz.
—Também me senti como você durante um longo tempo, mas
então Merlim me mostrou que existem dois caminhos na vida. Num
deles a pessoa tenta conquistar a recompensa do céu, e se viver
virtuosamente, ela atingirá sua meta. Mas mesmo no paraíso existem
sementes de insatisfação, e finalmente, por estar entediada, ou por
ter medo de não merecer o céu, a pessoa começa a avançar na outra
direção. Ela afunda e acaba dando consigo no inferno. O inferno
precisa existir se o céu existe, mas ele também é temporário, pois
com o tempo a pessoa se cansará de seus tormentos e começará a
subir de novo. Assim, o primeiro caminho que a alma pode escolher é
um ciclo constante, que vai do céu para o inferno e de volta para o
céu.
—Se o que você afirma é verdade, estamos sendo enganados além
de amaldiçoados — disse a voz com uma amargura ainda mais
profunda. — Quem pode amar um pai que nos apresenta o paraíso
apenas para nos mandar de volta para o inferno?
—Você está certo — disse Artur. — Meu mestre salientou
exatamente isso. Mas depois ele me falou sobre um segundo
caminho. A chave para esse caminho é a percepção de que o céu e o
inferno são criados por nós, que somos nós que mantemos o ciclo em
andamento. Como acreditamos na dualidade, é preciso haver o mal
em oposição ao bem, assim como a luz precisa ter a sombra, caso
contrário ela não seria luz. Depois de entender isso, podemos fazer
uma escolha diferente.
—Que é?
— Renunciar à dualidade, recusar tanto o céu quanto o
inferno. Além da ação dos opostos, disse Merlim, jaz uma esfera
intemporal de pura luz, puro Ser, puro amor. "Toda essa questão
de bem e mal", disse ele. "Pare de correr atrás da sua cauda e
afaste-se dela." Não posso falar por você, meu amigo, mas para
mim essa é a mensagem divina. Se Deus deve aparecer para nós,
é através do nosso entendimento do que é possível. Nossa
136
vontade é livre, e podemos nos prender eternamente ao ciclo de
prazer e dor. Mas somos igualmente livres para partir e não sofrer
nunca mais.
Artur parou, sentindo de repente como era estranho ele estar
conversando daquela maneira com um pobre infeliz que nunca vira
antes.
— Sinto muito por ter me intrometido na sua dor — disse ele
finalmente. — Vou me retirar agora.
O homem na cabana não fez nenhum comentário.
Artur se levantou, apertou mais o manto de encontro ao corpo, e
caminhou em direção à floresta. Tinha andado cerca de trinta metros
quando sentiu atrás de si uma incandescência e o crepitar de
chamas. Temendo que o louco tivesse incendiado a cabana, ele se
voltou e começou a correr de volta, mas parou no meio do caminho.
A cabana se transformara numa bola de luz branca, dela saindo
um anjo, que disse:
— Deus me disse que vocês, mortais, conheciam um segredo, e
como sempre Ele estava certo. Você sabe que Deus não está sim
plesmente no céu, e sim muito além, na esfera do espírito puro.
E com essas palavras, o anjo desapareceu.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
A essência desta lição, ou seja, que existem dois caminhos na vida,
está explicada nela mesma. O primeiro caminho é a aceitação de que
a dualidade é real, de que o bem e o mal com que deparamos
diariamente são simplesmente realidade, e precisamos fazer todo o
possível para lutar contra eles. O segundo caminho é perceber a
dualidade como uma escolha nossa. Embora tudo na criação pareça
ter seu oposto, uma coisa não o tem: a totalidade. A totalidade do
espírito não tem oposto porque ela abarca tudo que existe. Para
escolher o segundo caminho, você precisa estar disposto a desistir
de lutar contra o mal. Este é o caminho do mago.
137
Will (arbítrio) por uma razão — é nosso^-ee will (livre-arbítrio) que
nos permite escapar do ciclo do bem e do mal. Esta é a promessa
contida nesta lição. O caminho do mago é compassivo, porque
resolve o problema do sofrimento à medida que a luz do espírito se
aproxima.
138
19- Lição
Os magos jamais condenam o desejo. Foi seguindo seus desejos
que eles se tornaram magos.
Todo desejo é criado por algum desejo passado. A cadeia do
desejo nunca acaba. Ela é apropria vida.
Não considere nenhum desejo inútil ou errado — um dia cada um
deles será realizado.
Os desejos são sementes que esperam o momento propício
para germinar.
A partir de uma única semente de desejo,
florestas inteiras se desenvolvem.
Acalente cada desejo do seu coração, por mais trivial
que ele possa parecer.
Um dia esses desejos triviais o conduzirão a Deus.
Artur arrancou a espada da pedra num milagroso Dia de Natal. Da
enorme multidão que presenciou o feito, ninguém ficou mais
surpreso do que o próprio jovem Artur. Onde está Merlim? pensou
ele, certo de que o mago realizara a façanha por meio da magia. Mas
Merlim não apareceu.
Tarde da noite, muito tempo depois de todos terem ido dormir,
Artur ainda estava acordado, perguntando a si mesmo se seu destino
era realmente ser rei.
— Preciso de você, Mestre — suplicou ele.
De repente, ele viu uma luz debaixo da porta. Artur deu um pulo e
abriu a porta, mas não era o mago. Era Kay, seu irmão adotivo.
139
—Como você está? — perguntou Kay. Artur não sabia o que dizer,
mas quando se voltou para dentro do quarto, sua respiração ficou
mais forte.
—Levante mais a vela — disse ele. Kay fez o que ele pediu e a luz
caiu sobre três objetos que haviam surgido na cama de Artur — uma
boneca de palha, uma atiradeira quebrada e um espelho rachado.
—Você está vendo estas coisas? — perguntou Artur com uma voz
estranha. Kay mostrou-se confuso.
—Eu as vejo, mas elas não significam nada para mim — disse ele.
—Pedi a aj uda de Merlim, e agora estes objetos apareceram. Este
foi meu primeiro brinquedo — disse Artur, pegando a boneca. — Eu
devia ter dois anos quando Merlim a fez para mim. Eu mesmo fiz esta
atiradeira com pele de veado e vime quando tinha oito anos. Aos
doze eu encontrei na floresta este espelho rachado. Você sabe o que
eles têm em comum? — Kay sacudiu negativamente a cabeça. — Eles
foram as coisas mais importantes que eu já possuí, cada um na sua
época, e agora olhe para eles.
—Lixo inútil — resmungou Kay.
—E no entanto estou felicíssimo por revê-los, pois agora tenho a
certeza de que Merlim me guiou o tempo todo. Veja, Kay, aos dois
anos eu só queria brinquedos; aos oito eu só queria caçar pardais e
esquilos; e aos doze eu só queria olhar no espelho para ver se as
meninas me achariam feio ou bonito. Deixei todas essas coisas para
trás e, no entanto, cada uma foi um degrau que me trouxe a este
momento. Um dia porei de lado a coroa, embora hoje ela seja meu
único desejo e meu destino.
Kay era uma alma simples e resoluta que venerava a monarquia.
Ele estava chocado.
—Por que alguém jogaria fora a coroa? — perguntou ele
desconcertado.
—Porque chegará o dia em que ela se tornará trivial como uma
boneca, inútil como uma atiradeira quebrada e fútil como um
espelho. Acho que é isso que Merlim queria que eu percebesse.
140
COMPREENDENDO A LIÇÃO
O desejo ocupa um lugar peculiar no nosso coração, porque embora
cada um de nós passe pela vida desejando uma coisa após a outra,
nossos antigos desejos são jogados fora como se nunca tivessem tido
importância. Os desejos nunca acabam, não importa quantos se
tornem realidade, e, ao mesmo tempo, nenhum desejo dura tempo
bastante que nos permita deixar o desejo totalmente para trás.
— Você é apenas humano, e faz parte da sua natureza querer
cada vez mais — disse Merlim. — É o desejo que o conduz
através da vida até o momento em que você passa a desejar uma
vida superior. Não se envergonhe, portanto, de querer tanto, mas
não se engane pensando que o que você quer hoje será suficiente
amanhã.
É óbvio que os desejos nunca acabam, e no entanto isso nunca
impediu as pessoas, amiúde pessoas extremamente espirituais, de
tentar renunciar ao desejo. No ocidente, os cristãos condenam a
fraqueza da carne por causa de seus desejos inferiores; no oriente, o
budismo culpa o desejo por estar na base do ciclo interminável de
prazer e dor. Mas aos olhos do mago, não existe motivo para que o
desejo seja condenado.
—Quando você sair da floresta e entrar no mundo — disse Merlim
ao menino Artur —, você vai alcançar um prémio que todos os
homens desejam. Isso fará com que milhares de pessoas se voltem
contra você e o conduzirá a anos de luta pela conquista da sua coroa.
—Nesse caso, não vou ficar com a coroa — disse Artur, bastante
perturbado.
—Não, não é esse o caminho — replicou Merlim. — O desejo lança
os mortais em todos os tipos de confusão, mas faz parte do plano de
Deus que vocês tenham desejos.
—Mas o desejo cega as pessoas e as torna egoístas. Ele instiga a
violência, como você mesmo profetizou. Ele cria a ignorância e faz
com que as pessoas lutem umas contra as outras.
—Tudo isso são usos do desejo — salientou Merlim. — Existe um
mistério aqui, como sempre, que somente o buscador
141
solucionará. O desejo é bom, mau ou nenhuma das duas coisas? Vou
lhe dar uma pista. Para descobrir a verdadeira natureza do desejo,
você precisa começar sem julgar nada. Honre cada desejo que você
tiver. Acalente os desejos do seu coração. Nãct se esforce para
conseguir o que você quer; tenha confiançajjg que o espírito superior
colocou o desejo dentro de você, e deixe a cargo do espírito fazer
com que seus desejos se tornem realidade/Você poderá descobrir
que o mal existentg no desejo não é realmente o desejo em si, e sim
o esforço que o ser humano faz para alcançá-lo.
O mago não se esforça para conseguir o que quer, para agarrar,
conquistar ou possuir, porque ele vê o desejo num padrão mais
amplo estabelecido pelo espírito.
—Quando visto pelo que realmente é, o desejo expressa sua
necessidade suprema de se reunir à perfeição. Desde o momento em
que você nasceu, nunca houve a esperança de que você se sentisse
realizado através de conquistas, posses ou status. Nada externo
jamais iria funcionar.
—Então por que Deus criou tantos objetos de desejo? — indagou
Artur.
—Por que não? O que há de errado em querer mais deste mundo
se vale a pena querer tudo? — replicou Merlim. — Considere o
desejo como a disposição de receber o que Deus quer dar. Este
mundo é uma dádiva; o Criador não foi coagido a criá-lo. A
capacidade de Deus de dar só é limitada pela capacidade que você
tem de receber.
—Talvez isso seja verdade, mas por que Deus simplesmente não
providenciou um caminho que levasse diretamente a Ele? —
perguntou Artur.
—Mas Ele fez isso. O desejo é o caminho direto, pois não existe
um caminho mais rápido para Deus do que seus desejos e
necessidades. Por que Deus lhe daria algo antes de você desejá-lo?
Quando você examina seus desejos e emite um julgamento negativo
com relação a eles, você alguma vezjá se perguntou por que faz
isso? Julgar o desejo significa criticar a origem dele, que é você
mesmo; temer o desejo significa que você tem medo de si mesmo. O
problema não diz respeito ao desejo e sim ao que
142
acontece quando seus desejos são bloqueados ou frustrados. É aí que
começam a luta e as críticas.
"Se você pudesse descobrir uma maneira de satisfazer todos os
seus desejos, que é o que Deus sempre teve em mente para você,
perceberia que sem o desejo você não poderia crescer. Imagine-se
como uma criança que não quisesse ir além de brincar com os
brinquedos; se novos desejos não surgissem constantemente dentro
de você, você ficaria preso a uma perpétua imaturidade."
VIVENDO COM A LIÇÃO
O discurso de Merlim sobre o desejo mexe conosco, porque vivemos
numa sociedade na qual as pessoas são capazes de ter um número
cada vez maior de bens materiais. O resultado final, porém, não foi
nos tornar perfeitamente felizes. Com frequência encontramos um
vazio espiritual atrás da abundância. Isso não significa que desejar
ter uma casa, um carro e uma conta bancária é errado ou
vergonhoso. O vazio espiritual não foi criado por desejarmos coisas
materiais. Ele foi criado ao nos voltarmos para as coisas externas
esperando que elas fizessem o que não são capazes de fazer. As
coisas externas não podem satisfazer as necessidades espirituais. O
ditado que diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma
agulha do que um rico entrar no reino dos céus não condena a
riqueza. Ele simplesmente salienta que o dinheiro não tem valor
espiritual. O dinheiro não é a porta de entrada para o paraíso.
Os magos sempre ensinaram que o desejo precisa ser visto como
um caminho. No início, os desejos giram em torno de coisas como o
prazer, a sobrevivência ou o poder. Mas com o tempo, o caminho do
desejo nos leva além dessas gratificações. Eles não são desejos
inferiores e sim desejos iniciais. Assim como numa certa idade a
criança deixa de se interessar pelos brinquedos, o desejo de
conseguir cada vez mais acabará por conduzir a pessoa a uma fase
natural na qual o desejo de alcançar Deus assume uma suprema
importância.
143
— Não se preocupe em se tornar um buscador de Deus — disse
Merlim. — Você tem sido um buscador desde que nasceu, só que no
início o Deus que você buscava eram os brinquedos, depois a
aprovação, e depois o sexo, o dinheiro ou o poder.
"Você venerou todos eles e os desejou com grande paixão. Regozijese
neles quando forem o desejo do momento, mas esteja preparado
para quando eles desaparecerem. O grande problema que você
enfrentará não será o desejo, e sim o apego, a vontade de agarrar-se a
alguma coisa quando o fluxo da vida quer que você desista dela."
O exercício desta lição é uma pura experiência de pensamento.
Sente-se e imagine aquilo que você deseja mais apaixonadamente neste
momento. Talvez seja um carro, uma vida de riquezas ou algum tipo de
sucesso num relacionamento. Procure escolher algo que você ainda está
querendo alcançar para poder sentir como a perseguição do desejo é
realmente poderosa.
Recue agora a um desejo que você teve no passado, um desejo que j
á tenha se tornado realidade. Pode ter sido seu último carro novo, um
projeto bem-sucedido ou uma grande quantidade de dinheiro.
Comparado com seu desejo atual, esse desejo antigo parecerá diferente.
Você não sentirá com tanta intensidade a sede de perseguir o antigo
desejo porque você já provou sua realização. Nesse contraste, você
está vivenciando a maneira como a vida o empurra para a frente. O
desejo de ontem teve seu impulso particular de realização, que agora se
deslocou para o desejo de hoje. Esse movimento para a frente não é
aleatório. Ele o conduziu dos desejos do bebé aos desejos da criança,
aos desejos do adolescente e, finalmente, aos desejos do adulto.
O caminho do desejo é incrivelmente poderoso e nunca termina;
somente os objetos do desejo mudam e se modificam. O mago percebe
que, em seu nível mais profundo, nossos desejos contêm o impulso
evolucionário da própria vida. Querer viver não é um mero instinto de
sobrevivência, é um caminho que desabrocha. A vida não gosta de ser
bloqueada, e é por isso que Merlim disse que os problemas com
relação ao desejo só surgem quando um obstáculo é colocado em seu
caminho. Um bebé saudável aprende que qualquer coisa que ele queira
é boa quando sua mãe fica contente em satisfazer suas necessidades.
144
Se um modelo positivo de desejo for estabelecido desde cedo, o
bebé crescerá com desejos naturais que se adequarão às suas
verdadeiras necessidades. Uma pessoa psicologicamente saudável,
na verdade, pode ser definida como alguém cujos desejos realmente
produzem felicidade. Mas se a noção oposta for gravada na memória
do bebé, ou seja, que seus desejos são vergonhosos e apenas
relutantemente satisfeitos, o desejo não se desenvolverá de uma
maneira saudável. Em anos posteriores, o adulto continuará a tentar
se realizar nas coisas externas, a precisar cada vez mais de poder,
dinheiro ou sexo para preencher um vazio que foi criado no seu
senso do eu quando bebé; o próprio senso de ser da pessoa é julgado
como errado.
Em casos extremos, o desejo se torna tão distorcido que sua
necessidade se transforma na necessidade de matar, roubar,
cometer violência, e assim por diante. Esses desejos podem causar
um dano incalculável, tanto sob o aspecto pessoal quanto social.
Entretanto, ninguém é capaz de dizer, ao ver um assassino ou um
ladrão, em que ponto seus valores se extraviaram. Para o mago,
todos os desejos começam no mesmo lugar, naquele ponto em que a
vida simplesmente quer se expressar; é a obstrução ou condenação
do desejo que cria o problema. As expressões pouco saudáveis de
desejo simplesmente refletem a doença numa psique que precisa
desesperadamente conhecer a si mesma, como todos nós
precisamos, mas que falhou, pelo menos por enquanto.
Por conseguinte, é de vital importância que você se harmonize
com a natureza do seu desejo, que compreenda que no plano divino
todos seus desejos estão destinados a se tornarem realidade. Deus
não o está impedindo de ter uma coisa ou tudo que você queira. E
você que bem no fundo acredita não merecer uma coisa ou tudo.
Esse autojulgamento cria bloqueios no fluxo natural da vida, mas tão
logo esses impedimentos são removidos, o caminho do desejo
transforma-se em alegria, por ser o trajeto mais curto e natural em
direção a Deus. Nenhum desejo é trivial, porque cada desejo encerra
um significado espiritual. Cada um deles é um pequeno passo em
direção ao dia em que você desejará a suprema realização, que é
conhecer sua natureza divina.
145
20- Lição
O maior bem que você pode fazer ao mundo é tornar-se um
mago.
Era o último dia que iam passar juntos. Artur postou-se à beira da
estrada que o levaria para além da floresta. Olhando por cima do
ombro, procurou o atalho de Merlim, mas eleja não estava mais ali.
Um denso trecho de floresta crescera da noite para o dia, engolindo
o atalho e com ele a clareira que dava para a gruta de cristal. Artur
sentiu uma dor aguda, sabendo que essa perda seria sentida por
todos os mortais, não apenas por ele.
— Eu não vou voltar, não é mesmo? — perguntou ele.
Merlim, que estava a seu lado, sacudiu a cabeça.
— Não há necessidade. Seu trabalho comigo está terminado.
Duvido que algum dia meu trabalho com você esteja terminado,
pensou Artur. Parecia que após todos esses anos de treinamento, ele
tinha mais a perguntar a seu mestre do que no dia em que haviam
começado. Lendo a mente de seu discípulo, o mago disse:
— Eu queria lhe dar um presente de despedida, e não pude
pensar em nada melhor do que isto.
Ele apontou para a estrada que se estendia aos pés deles, que
também surgira da noite para o dia.
—As estradas são o sinal do mago. Você já sabia disso?
—Não.
—Lembre-se então do que eu digo. O mago é aquele que ensina
indo embora, e quando você também conseguir partir, você será um
mago. Embora você possa imaginar que possui uma parte da terra,
na verdade você só caminha sobre ela. Em espírito, você é apoeira
da estrada, a inquietude do vento. Vocês,
146
mortais, constroem casas para se proteger do mundo. Para o mago, o
lar é o momento presente, e os momentos estão sempre se
deslocando...
—Pela estrada do tempo — disse Artur, terminando a frase para
ele. Ele conhecia de cor grande parte do que Merlim tinha para
ensinar.
—É verdade — concordou Merlim. Ambos ficaram em silêncio. O
rapaz espiou com o canto dos olhos para ver se Merlim estava triste,
ou pelo menos confuso, com a separação. Ele não estava nem uma
coisa nem outra.
—Vejo que você realmente não acredita em mim — disse Merlim.
— Mas deixar que você vá embora é de fato o melhor presente que eu
posso lhe dar.
E com essas palavras os pés relutantes do rapaz começaram a se
mover. Havia uma curva na estrada a cem metros dali, e cada passo que
Artur dava adiante parecia modificá-lo um pouco. Os anos que passara
com Merlim começaram a se dissolver num sonho, enquanto sua
curiosidade com relação ao mundo aumentava.
Quando atingiu a curva na estrada, eleja não podia esperar para
ver o que havia em volta. Toda a ação e o desejo de um mundo que
nunca conhecera tornaram-se algo do qual ele tinha que participar;
seus pés agora estavam voando, ansiosos para sair da floresta. A
própria imagem de Merlim começou a desaparecer da sua mente, até
que restou apenas uma voz que dizia: "Eu o conduzi aos locais
secretos da sua alma, e agora você precisa redescobri-los, só que
desta vez sozinho." Num instante, essa voz também desapareceu. O
rapaz transpôs a curva, chutou um monte de poeira, e sorriu. De
repente ele soube que sempre que visse uma estrada se lembraria de
Merlim.
COMPREENDENDO A LIÇÃO
Caminhar por uma estrada é um sinal de desapego, e os magos
ensinam que no desapego repousa a verdadeira liberdade. À
semelhança do mago, a pessoa livre vive no espírito, e é capaz
147
de fazer um bem muito maior do que aquele que pode ser feito fora do
espírito. Este ponto de vista ainda não é aceitável para a sociedade,
porque você, eu e todos que conhecemos fomos condicionados a
acreditar que as coisas funcionam de outra maneira. Nós nos
apegamos a tudo e acreditamos que é o apego que faz nossa vida
funcionar.
Nosso senso de apego começa com nosso relacionamento com a
terra. Os mortais, dizem os magos, têm a ilusão de que são donos do
mundo ou controlam seu destino. Na visão dos magos, o mundo tem um
espírito que supervisiona nosso bem-estar; vivemos abrigados no
espírito dele e nos é permitido moldar nosso destino. Mas é impossível
possuir ou controlar o espírito.
—Você quer ter o mundo todo, não é verdade? — perguntou Merlim a
Artur.
—Não, creio que não — retrucou o menino.
—Oh, você quer, acredite-me. Vocês, mortais, são como uma
centelha que um dia vai incendiar um campo inteiro. A centelha parece
minúscula, mas ela se propaga a perder de vista.
—Você está querendo dizer que vamos destruir o mundo? —
indagou Artur.
—Depende. O espírito não pode ser destruído, e se você vier a se ver
como espírito, você se unirá ao espírito desta terra. A alternativa é não
tomar conhecimento do espírito, e se você fizer essa opção, não terá
respeito pela terra. A dor dela parecerá remota para você.
Merlim apontou para uma grande pedra.
—Dê um chute nela — disse ele. Artur fez o que o mestre mandou.
—Ai — gritou Artur, recuando.
—Curioso — comentou Merlim. — A pedra levou um chute, mas foi
você que gritou.
—O que há de curioso nisso? — resmungou Artur, desconfiando de
que o mago fizera com que ele chutasse a pedra com mais força do
que pretendera.
—Esta foi uma lição sobre o espírito. Quando você chutou a pedra,
você feriu a si mesmo. A pedra não protestou, porque a terra nunca
reclama. Ela confia no seu espírito. Essa confiança no espírito é o que a
terra tem para ensinar a vocês, mortais. Mas
148
se você ficar com raiva por causa do seu ferimento, que a pedra
meramente devolveu a você, você se sentirá tentado a desprezar o
espírito. Você terá vontade de esmagar a pedra, destruí-la, e usá-la de
alguma maneira, tudo porque aterra é suficientemente dócil para não
gritar quando você dá um chute nela.
Faz parte da natureza do espírito não protestar. Você não pode
realmente fazer mal ao espírito, e embora os seres humanos tenham
infligido um terrível dano à terra, o resultado final é sempre fazermos
mal a nós mesmos. Não respeitamos nosso próprio espírito. Olhamos
para nós mesmos com medo e raiva.
— Vocês perderam a fé na fé — disse Merlim. — Vocês não
mais parecem confiar na confiança.
Isso quer dizer que as qualidades do espírito, que incluem o amor, a
fé e a confiança, precisam ser conhecidas e experimentadas antes de
poderem ser benéficas.
Quase todas as pessoas lutam contra sua vontade; elas recorrem
ao medo e à raiva por sentirem que esses caminhos lhes foram
impostos. A disposição de viver em paz depende de não nos deixarmos
dirigir por essas energias negativas, e isso só pode acontecer se
adorarmos o caminho do mago.
— Se você quiser fazer bem ao mundo, seja completamente
altruísta e torne-se um mago — disse Merlim. — Se você quiser
fazer bem a si mesmo, seja completamente egoísta mas mesmo
assim torne-se um mago.
Isso pode parecer um paradoxo, mas em última análise, todo espírito
é espírito. Você caminha sobre a terra como um indivíduo, mas
também caminha sobre ela como parte da terra. Por conseguinte, à
medida que você recupera a si mesmo, você recupera o mundo.
VIVENDO COM A LIÇÃO
Os magos não nos desestimulam a fazer o bem. Desapego não é
sinónimo de indiferença.
— Quando você deparar com o sofrimento, procure aliviá-lo — disse
Merlim —, mas certifique-se de que, ao ir embora, o sofrimento não
estará grudado em você.
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Este conselho está diretamente dirigido à essência da compaixão. A
raiz da palavra compaixão é "sofrer com", e é assim que quase todos
nós a interpretamos. Presumimos que uma pessoa compassiva
incorporou o sofrimento de outra, mas se isso fosse verdade, a
compaixão dobraria o sofrimento do mundo em vez de aliviá-lo.
A verdadeira compaixão não é negativa. A pessoa é capaz de sentir
a dor de outra mas permanece confiante no espírito. A terra se
comporta assim conosco. Embora o drama das questões humanas seja
representado na palco da terra, e derramemos nosso sangue em seus
campos e construamos a riqueza em suas praias, ela permanece
desapegada. As florestas, os campos, as praias e as montanhas não
aparecem e desaparecem por nossa causa.
Se você não aceitar que a terra tem um espírito, esse desapego
transforma-se em indiferença. Em nome da indiferença, a terra está
sendo saqueada. Só é possível sentir compaixão pela terra quando
unimos nosso espírito ao dela.
O que é preciso para nos unirmos ao espírito da terra? Este livro é
uma tentativa de oferecer uma resposta. O caminho do mago começou
no mito, na profunda memória da humanidade, quando ainda éramos
embalados nas florestas primordiais. Merlim representou então um
espírito da natureza de grande magia e poder. Hoje em dia não
existem espíritos da natureza porque os mortais decidiram se separar
da natureza. O antigo impulso de viver dentro da natureza cedeu espaço
ao seu oposto, o impulso de conquistá-la.
Esse impulso se esgotou quase ao ponto do desastre. O retorno à
natureza está sendo desesperadamente buscado em toda parte, talvez
no último instante. Os magos nunca se separaram da natureza, de
modo que eles não têm ao que retornar. Eles esperam para nos acolher
com alegria quando retornarmos ao espírito. Seus segredos revelam
que, se você quiser se reunir à natureza, o caminho é recuperar sua
própria natureza, que é a consciência pura. Não existe nada "lá fora"
exceto um espelho do que existe "aqui dentro". Se você quiser ir
novamente para casa, compreenda que seu lar é o momento presente.
150
Através de um processo bastante semelhante, a mente consciente
não pode compreender como o universo faz os desejos se tornarem
realidade. E exatamente como a pessoa que se esforça para recordar
um nome mas não consegue nada, as pessoas se debatem
violentamente para satisfazer seus desejos, sem nunca perceber que
o esforço é o problema, não a solução. Esses pontos já foram
abordados neste livro, mas eu gostaria de reapresentá-los num nível
mais profundo. Neste exato momento, você é um mago. Você é
perfeito em espírito; você nunca se separou de Deus ou da natureza.
Tudo que aconteceu é que, na sua luta para não sentir dor, você
começou a bloquear o momento presente. A memória e o desejo
encobrem o espírito. Eles o fazem porque há muito tempo você
começou a temer pela sua segurança aqui na terra. A insegurança é
o motivo pelo qual atacamos a terra, porque se tivéssemos confiança
que seríamos alimentados e defendidos, nenhum de nós se mostraria
tão histérico com relação à sobrevivência.
— Confie na confiança, tenha fé na fé — disse Merlim. — Essa é a
única solução quando você perde a confiança e a fé.
Na nossa essência, cada um de nós é apenas confiança. O ser e o
amor também são partes inatas de nós mesmos, mas é a confiança
que nos permite respirar com facilidade, aceitar o espírito da terra
como sendo nosso. E a técnica que nos permite lembrar disso é tão
simples quanto a técnica que usamos para nos lembrar de qualquer
outra coisa. Permita-se parar de acreditar que a resposta está no
esforço. Aprecie em silêncio a vida que vem ao seu encontro a cada
momento. Uma tremenda energia que está oculta no presente
acompanha essa silenciosa aceitação, e essa energia encerra
abundância, paz, inteligência e criatividade. Essas são as dádivas do
silêncio envoltas no espírito da terra.
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T E R C E I R A P A R T E
AS SETE ETAPAS DA ALQUIMIA
152
Na época do rei Artur, nenhuma aventura despertava maior paixão do
que a procura do Santo Graal. Cada um dos cavaleiros de Artur sonhava
em conquistar esse impalpável troféu, que traria a proteção e a bênção
de Deus para seu rei. Era comum verse cavaleiros cumprindo penitência
para receber uma visão do Graal, e os pintores competiam uns com os
outros para tornar cada quadro da Ultima Ceia mais esplêndido do que
o anterior.
— É praticamente impossível convencer os mortais de que
as buscas nunca são de coisas externas, por mais sagradas que
sejam — dissera Merlim certa vez a Artur. Ele se lembrava
dessas palavras sempre que a febre do Graal chegava ao auge, o
que normalmente acontecia nos longos e sombrios meses do
inverno, quando os cavaleiros ficavam entediados e inquietos.
Os mais jovens, em particular, estavam eternamente querendo
partir em direção à Terra Santa, ao castelo de Monsalvat ou a
qualquer lugar, mítico ou real, onde o Graal pudesse estar
guardado.
O rei se mantinha à parte desse fervor.
—Se você quiser ir... — dizia ele, a voz diminuindo de intensidade.
—O quê? Você não acredita no Graal? — perguntou impetuosamente
Sir Kay. Por ter sido certa vez considerado irmão do rei, antes de Artur
ter arrancado a espada da pedra, Kay tomava certas liberdades que
ninguém mais ousava tomar.
—Acreditar? Suponho que você teria que dizer que acredito —
replicou calmamente Artur —, mas não da maneira como você pensa, e
tampouco da maneira que você acredita.
153
Essa resposta foi por demais sutil para Kay, que mordeu o lábio
para não fazer uma pergunta ainda mais insolente.
—O Graal é real, meu senhor? — indagou Galaad num tom bem
mais suave.
—Você pergunta como se achasse que eu já o vi — disse Artur.
—Eu mesmo não sei se devo acreditar — replicou Galaad
hesitante — mas correm histórias por aí.
—Que tipo de histórias?
—A respeito de Merlim. Dizem que ele trouxe pessoalmente o
cálice da Terra Santa, onde ficara guardado em segredo durante
muitos séculos.
Artur ponderou por um momento essa observação.
— Como todas as histórias, ela encerra uma parcela de
verdade.
A corte se agitou, pois esta era a primeira vez em que o rei
admitia ter alguma ligação com o tesouro com o qual todos
sonhavam. Mas Artur não tinha mais nada a dizer.
Certa noite, no início da primavera, quando os campos degelavam
e junquilhos, não mais compridos do que uma unha, floresciam entre
as rosas de Natal que murchavam, uma fogueira podia ser vista a
uma grande distância fora dos muros do castelo. Ao redor dela
sentavam-se Sir Percival e Sir Galaad, que haviam prometido fazer
juntos um retiro santo. Era cedo demais para que esse retiro tivesse
lugar no seio da floresta, onde a última neve do inverno ainda se
acumulava em montes sujos debaixo da sombra das árvores, de modo
que os dois cavaleiros rezavam e jejuavam numa pequena tenda,
visível dos aposentos do rei.
—Certa vez confundi meu sonho de conquistar o Graal com uma
fantasia fútil — começou Percival. — Todo cavaleiro quer ser o
primeiro entre os paladinos, mas durante anos voltei as costas para
meu desejo, considerando-o um joguete do meu orgulho. Mas eu lhe
digo, Galaad, minha alma arde por essa coisa.
—O rei afirma que o Graal não é uma coisa — lembrou o
cavaleiro mais jovem.
—Ele também diz que Merlim o trouxe para a Inglaterra. Você
mesmo o ouviu dizer isso, não ouviu?
A voz de Percival soou com uma sugestão de desafio, e Galaad
simplesmente fez que sim com a cabeça. Algumas vezes
154
a prece e a penitência acendiam mais chamas do que apagavam, pensou
ele. Certamente Galaad tinha que admitir que compartilhava o
crescente desejo de Percival.
— Se alguém está destinado a conquistar o Graal, sem
dúvida tem que ser um de nós — disse ele, atirando no fogo
alguns galhos secos de aveleira e observando-os flamejar. —
Somos o único grupo de cavaleiros que realmente vivem para
defender a paz e não apenas para fazer ataques de surpresa nos
campos e disseminar o terror. Não sei se meu coração é sufici
entemente puro para alcançar o Graal, não sou tão vaidoso ou
tolo a ponto de acreditar que ele deva cair nas minhas mãos, mas
meu coração sofrerá enquanto eu não tentar.
Naquele momento os dois homens ouviram o ruído de passos
rachando a fina camada de gelo que ainda cobria o solo perto deles.
Ficaram tensos, esperando que o estranho se identificasse, quando
uma voz levemente zombeteira disse:
— Não se assustem, e por favor concedam-me partir em
segurança. Preciso de lume, se vocês puderem compartilhar o
seu comigo.
Percival olhou para Galaad, e depois disse na escuridão:
— Vá saindo e acenda seu fogo. Isto é um retiro de dois
cavaleiros que durante algum tempo não devem ter contato com
as impurezas do mundo.
Eles receberam como resposta um riso zombeteiro.
— Acender meu fogo, vocês disseram? E o que farei então.
Antes que essas palavras acabassem de ser ditas, Percival
pôs-se de pé assustado, pois o chão debaixo dele se inflamara. Galaad
olhou assombrado em volta ao notar que um círculo de fogo agora os
rodeava, subindo da terra congelada. Antes que ele pudesse gritar, uma
figura alta, macilenta como um velho abeto, atravessou as chamas
aproximando-se deles.
—Merlim — disse Galaad, controlando suas emoções. — O que o traz
aqui após tanto tempo?
—Sem dúvida não seu amigo insolente — retrucou Merlim, fitando
Percival, que tentava manter um mínimo de dignidade possível para um
homem que está com o traseiro em chamas. — Sente-se, sente-se —
acenou o mago.
Percival sentiu a dor embaraçosa desaparecer, e sentou-se ao lado
de Galaad, tendo Merlim à sua frente. Nenhum dos dois
155
o vira antes, mas a descrição de Artur fora precisa, inclusive a de
seus chinelos pretos surrados, de pele de toupeira, bordados com
fios de lã.
—Não fique olhando para mim — disse Merlim. — Estou
pensando.
—Em quê? — perguntou Percival.
—E não me interrompa — foi tudo que o mago teve a dizer em
resposta.
Depois de um instante, sua expressão um tanto dura suavi-zou-se.
— Sim, acredito que você esteja dizendo a verdade. O único
problema agora é o que fazer a respeito.
— A verdade sobre o Graal? — perguntou Galaad. —
Certamente queremos empreender essa busca.
Merlim examinou-o com um olhar de aprovação.
— Você reconheceu quem eu era sem apresentações tolas, e
agora você quase consegue ler minha mente. Bastante promete
dor — disse Merlim.
Com sua modéstia natural, Galaad baixou o olhar para o chão,
esperando que Percival não ficasse com inveja desse elogio que ele
não procurara.
— Seu rei falou acertadamente, você sabe — disse Merlim.
— O Graal não é uma coisa que se possa perseguir a cavalo como
uma raposa. Ele não é feito de ouro ou pedras preciosas, e, por
conseguinte, não traz nenhum benefício a quem o guarde em
segredo. E possuí-lo não confere à pessoa a bênção de Deus, o
mesmo ocorrendo se a pessoa não possuí-lo.
Percival, que estava ficando cada vez mais agitado, finalmente
interrompeu:
— Como você pode dizer isso? O Graal deve conferir a
bênção de Deus.
Merlim interrompeu-o com um olhar contundente.
—Meu caro palerma, se o mundo todo foi criado por Deus, como
poderia qualquer parte dele, por mais remota ou insignificante, ser
menos abençoada do que outra?
—Mas existe um Graal, não existe? — perguntou Galaad. — O rei
nos disse que você o protege.
Merlim fez que sim com a cabeça.
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— Protejo o que não precisa de proteção, oriento a busca que
você não pode empreender a lugar nenhum, e no final estarei
presente quando você encontrar o Graal, embora você não vá ver
nem a mim nem a ele.
Merlim parecia muito feliz com esse enigma e calmamente soltou
uma baforada de fumaça pela boca, como se o tabaco já tivesse sido
descoberto.
Percival levantou-se de repente.
— Bem, se eu sou o palerma aqui, vou me retirar.
O comportamento de Merlim suavizou-se um pouco.
— Você é o que você é, o que parece muito bom aos olhos
de Deus e bastante raro neste mundo sem esperanças — murmu
rou ele. — Tome seu lugar, por favor.
Percival, ainda um tanto zangado, aquiesceu a esse pedido
delicado.
— Não me aproximei de vocês por acaso. Estou aqui para
conduzi-los ao Graal — declarou Merlim. — Existe uma regra
que não pode ser desobedecida: quando o discípulo está pronto,
o mestre aparece. O que vocês desejam saber, eu posso ensinar.
Meus primeiros comentários não foram rudes nem místicos.
Quero apenas eliminar das suas cabeças quaisquer sonhos erró
neos que possam ter com relação ao objeto da sua busca.
Com um movimento da mão, Merlim fez com que o anel de fogo se
reduzisse a uma incandescência opaca, e seus traços mal ficaram
visíveis à luz das brasas. Os dois cavaleiros o viam basicamente como
uma longa sombra coroada de cabelos brancos iluminados pela lua
que subia no céu.
—A busca que traz o Graal como prémio não é uma jornada do tipo
que os cavaleiros ignorantes anseiam por empreender. Ela é uma
jornada interior, uma busca da transformação. Vocês já ouviram falar
numa coisa chamada alquimia? — Percival e Galaad inclinaram
afirmativamente a cabeça, figuras indistintas esboçadas pela escuridão
mais profunda. — A alquimia é a arte da transformação — prosseguiu
Merlim — e quando suas sete etapas forem concluídas, somente então,
vocês serão capazes de reclamar o Graal.
—Sete etapas? — perguntou Percival. — Então afinal o Graal é
feito de ouro, pois eu sei que os alquimistas...
— Sofismas e tolices. Vocês conhecem muito pouco, ou
nada, a respeito dessa arte, e no entanto a vêm praticando
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diariamente desde o dia em que nasceram — replicou Merlim. —
Todo bebé nasce um alquimista, depois deixa escapar a arte,
apenas para recuperá-la mais tarde.
Percival compreendeu que o mago iria continuar a recorrer a
enigmas se ele insistisse em duvidar dele; por conseguinte, o cavaleiro
sabiamente acomodou-se e ficou escutando.
—O maior desperdício da existência — disse Merlim — é o
desperdício do espírito. Cada um de vocês, mortais, veio ao mundo
para procurar o Graal. Ninguém nasce com mais privilégios do que
outro; o mago percebe que todo mundo é criado para alcançar a
liberdade e a realização.
—Eu já não sou livre? — indagou Percival.
—No sentido mais simples é, uma vez que você não está sendo
mantido prisioneiro de ninguém, mas estou me referindo à liberdade
num sentido mais profundo: a habilidade de fazer qualquer coisa que
você queira quando bem entender — replicou Merlim. — E existem
níveis ainda mais profundos. Como você deve admitir, você é o tempo
todo prisioneiro do seu passado, suas lembranças criam o
condicionamento que literalmente dirige sua vida. Se você estivesse
livre do passado, você poderia ingressar em infinitas possibilidades,
rompendo a barreira do conhecido a cada momento. O Graal é apenas
uma promessa visível de que essa perfeição existe. Vocês
compreendem?
Agora que se entusiasmara pelo assunto, o mago não esperou pelo
assentimento deles.
— Eu disse que o caminho em direção à liberdade e à
realização encerra sete etapas de alquimia. A primeira etapa
começa no nascimento, as seguintes seguem-se na infância, e as
restantes são deixadas para vocês. Vocês são sempre protegidos
no plano divino, mas à medida que crescem é permitido que sua
vontade e seu desejo aumentem. Quando bebés, vocês eram
puros bastante para alcançar o Graal, mas muito ignorantes para
saber da existência dele. Quando adultos, vocês conhecem a
meta, mas já fecharam o caminho que leva até ela. Foi a
introdução do livre-arbítrio que fez com que vocês deixassem
158
escapar o Graal, mas no entanto ele também é o meio pelo qual irão
recuperá-lo no final.
Temendo que Percival pudesse começar a apresentar obje-ções,
Galaad rapidamente aparteou:
— Você pode nos mostrar as sete etapas?
Merlim deixou que um leve sorriso de entendimento passasse pelos
seus lábios antes de inclinar a cabeça em sinal de assentimento.
PRIMEIRA ETAPA - A INOCÊNCIA
— Vocês nasceram num estado de inocência. De todos os ingredientes
utilizados pelo alquimista, este é o mais importante. O bebé recémnascido
não questiona sua existência; ele vive na & 39;auto-aceitação, na
confiança e no amor. A voz insistente da dúvida ainda não é ouvida.
"Quando você olha nos olhos de um bebé, você enxerga muito
pouca individualidade. A pergunta Quem sou eu? é inexpressiva para
um bebé. Em vez disso, o que brilha através dele é a própria
consciência, a fonte de toda sabedoria. O bebé vem ao mundo a partir
da fonte da vida, e se desliga gradualmente dessa fonte. Durante algum
tempo o bebé permanece banhado pelo intemporal. Ele não tem
nenhum conceito de passado ou futuro, somente de um presente que
se desenrola. É esse o significado de viver na eternidade, pois o que é
o eterno senão o momento presente que está sempre se renovando? A
própria promessa do Graal, a vida imortal, já é desfrutada pelo bebé,
visto que viver no intemporal é o segredo da imortalidade."
— Se isso é verdade — comentou Galaad gravemente —, então por
que não somos todos imortais desde que nascemos?
— Sementes e tendências — respondeu Merlim. — Todo bebé tem a
tendência de se deslocar do mundo intemporal para o mundo das
horas, dias e anos; do silêncio do mundo interior para a atividade do
mundo exterior; do envolvimento consigo mesmo para o envolvimento
com todas as coisas fascinantes que o cercam. Observe um bebé em suas
primeiras semanas de vida.
159
Você pode ver a atenção dele ser atraída para esse surpreendente
mundo novo no qual ele se encontra. E assim começa a alquimia, a
constante transformação que sustentará cada alento dele em todos os
anos seguintes.
"O bebé não é um anjo, sua pureza tem vida curta. O bebé sente
dentro de si as primeiras pontadas de medo, desconfiança e dúvida.
Quando o bebé deixa seu estado de inocência, ele emerge num mundo
mais duro de pancadas e machucados. Começam a surgir desejos que
não são imediatamente satisfeitos; pela primeira vez, a dor é
vivenciada.
"Vocês, mortais, chamam isso de descer do estado de graça, mas
vocês estão errados. A graça opera em cada passo da existência
humana, embora a limitada percepção de vocês possa impedi-los de vêla."
— Por que essa história triste é semelhante à alquimia? — indagou
Percival, ainda sentindo-se cético.
— Porque existe uma magia oculta em funcionamento — respondeu
Merlim. — Quando o bebé cresce, sua inocência original não se perde
realmente. O que acontece é ainda mais misterioso. A inocência
permanece intacta num estado de pureza e totalidade que você
simplesmente esquece. Você agora vive em fragmentos. Para você, o
mundo é limitado; seu senso do eu está completamente envolvido com
as experiências e memórias individuais que você acumulou.
"Ao esquecer a totalidade você pareceu deixar escapar quem você
era, mas isso é uma ilusão. Você não sente nem age como um recémnascido,
mas sua essência permanece. Na realidade, a totalidade não
pode ser fragmentada; a verdade não pode ser prejudicada pela
inverdade. Sua perda de inocência foi um evento real que ao mesmo
tempo não encerra nenhuma realidade. As forças da alquimia estão em
ação além do que você consegue ver, ouvir ou tocar."
— Como posso ter certeza de que essa inocência está realmente
presente? — perguntou Galaad.
— Se você quiser entrar em contato com a inocência que existe
dentro de você, procure pelas características do bebé: vivacidade,
curiosidade, uma sensação de assombro, a certeza de que você é
querido na terra, o sentimento de viver na paz perfeita do intemporal.
Todos os bebés sentem essas coisas.
160
SEGUNDA ETAPA - O NASCIMENTO DO EGO
— A etapa seguinte — continuou Merlim — anuncia a entrada em
cena do ego, o senso do "eu". Para ter o "eu", você também
precisa ter o "você" ou o "ele". O nascimento do ego é o
nascimento da dualidade. Ele marca o início dos opostos e, por
conseguinte, o início da oposição. Cada nova etapa na alquimia
derruba a anterior, virando seu velho mundo de cabeça para
baixo, mas esta revolução é talvez a mais chocante. Você não é
mais um Deus!
"Imagine um ser que se sente onipotente neste mundo. Em todos os
lugares para onde olha, ele só vê um reflexo de si mesmo. De repente,
as pessoas e as coisas começam a ser vistas como criações separadas.
Nenhum de vocês se recorda desse evento dilacerador porque ele
aconteceu quando vocês ainda eram bem pequenos. No entanto foi uma
mudança fundamental, que importou num novo nascimento. Vocês
eram felizes como deuses, e agora vocês nascem na mortalidade."
— Foi também um nascimento para a dor — disse Percival.
— Esta etapa era absolutamente necessária?
— Oh, sem dúvida. Sementes e tendências, eu lhes disse.
Quando a curiosidade do bebé atrai sua atenção para fora de si,
o que ele vê? Primeiro o rosto da mãe. No plano da natureza, o
bebé reagirá automaticamente à mãe como uma fonte de amor
e carinho. Mas é uma fonte externa ao bebé em si. Aí está a
armadilha, pois por mais perfeito que seja o amor materno, ele
não é o amor por si mesmo, e durante muitos anos vocês irão
suspirar a perda do amor perfeito, para um dia compreender que
estão com saudades do seu próprio eu antes de qualquer outra
pessoa entrar em cena.
"No início não havia separação. Quando o bebé tocava o seio da
mãe, o berço ou a parede, todas essas coisas pareciam fazer parte de
uma única sensação fluente, indivisa. Logo, contudo, todo bebé passa a
perceber que existe outra coisa além dele mesmo, o mundo exterior. O
ego diz: Isso sou eu, aquilo não
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sou eu. Depois, aos poucos, certas coisas passam a se identificar com
o "eu": minha mamãe, meus brinquedos, minha fome, minha dor,
minha cama. Assim que surgem as preferências, passa a existir todo
um mundo que não sou eu, nem minha mamãe, nem meus
brinquedos, e assim por diante."
—Não consigo me lembrar desse nascimento, como você o chama
— disse Percival. — Mas se o que você diz é correto, então deve ser
aqui que a busca do Graal começou. Onde mais ela poderia começar
a não ser na separação?
—É verdade. Enquanto você se sentia divino, não havia
necessidade de uma busca para recuperar a bênção de Deus —
Merlim concordou. — Na separação, você começou a procurar a si
mesmo nos objetos e eventos. Você perdeu a habilidade de ver a si
mesmo como a verdadeira fonte de tudo que existe, porque o bebé
não estava errado ao se ver como a verdadeira fonte da vida. Quando
você começou a explorar o mundo exterior e seus objetos se
tornaram fascinantes, você ligou sua felicidade a eles. Isso se chama
referência do objeto, que veio substituir a referência a si mesmo do
bebé.
—E essa etapa também não foi perdida quando a criança
continuou a seguir em frente? — indagou Galaad.
—Nada jamais é perdido. O nascimento do ego deu origem a
aspectos que você ainda pode sentir em si mesmo: o medo do
abandono, a necessidade de aprovação, a possessividade, a
ansiedade da separação, a preocupação consigo mesmo, a
autocomiseração. Você se viciou no mundo, e continua viciado até
hoje, porque você deixou de ser satisfeito da maneira simples como o
bebé o é. Mas não se desespere, porque uma força mais profunda
estava em funcionamento debaixo dessas mudanças.
TERCEIRA ETAPA - O NASCIMENTO DO EMPREENDEDOR
— Quando surge o ego — prosseguiu Merlim — você passa a ter um
mundo "lá fora", e uma nova tendência emerge, o anseio de sair pelo
mundo e fazer realizações. Os primeiros indícios dessa
162
mudança são primitivos. O bebé quer agarrar as coisas e segurá-las;
ele quer fazer sozinho suas explorações, sempre certifican-do-se de
que a mãe está por perto. Logo ele quer andar e protesta se sua mãe
não permite que ele o faça. Esse desejo de escapar e perambular é
tímido no início. Mas com o tempo, o mesmo bebé que ansiava para
que o segurassem e o protegessem grita para que o soltem. Trata-se
de um instinto saudável, pois o ego sabe que o desconhecido é a
fonte do medo. Se o bebé não saísse para conquistar o mundo, ele
passaria a temê-lo cada vez mais. "Estamos agora nos afastando
cada vez mais da sensação de paz, unidade e confiança com a qual
vocês nasceram. O ego começa a dominar o espírito. Quando o bebé
se volta para dentro de si para sentir o que existe ali, ele já não mais
encontra a consciência pura; em vez disso, encontra um turbilhão de
memória. As experiências se tornam pessoais, e nunca serão de novo
completamente compartilhadas."
—Outra história triste — lamentou-se Percival.
—Se ela parasse aqui, sem dúvida — disse Merlim. — Mas o
nascimento do empreendedor lhe conferiu confiança e a sensação de
que você é único. Este mundo de objetos e eventos diz respeito a
uma única coisa: a individualização. O ego é necessário para que isso
aconteça, pelo menos no caminho que vocês, mortais, escolheram.
—Nem todo mundo é um empreendedor. Essa etapa é realmente
necessária? — perguntou Galaad.
—Nem todas as pessoas valorizam o sucesso acima de tudo ou se
identificam com o dinheiro, o trabalho e o status — disse Merlim. —
Mas o anseio do empreendedor é mais simples, mais básico do que
isso. É a marca do ego em ação, provando a si mesmo que a
separação é suportável. De fato, o nascimento do empreendedor
torna este mundo onde estamos um lugar alegre, cheio de coisas
para fazer e aprender. Em algumas pessoas o empreendedor perdura
um tempo extremamente longo. A sede da fama e da fortuna
sobrepuja o verdadeiro objetivo da busca. Mas Deus permite o total
livre-arbítrio, e se a pessoa chega à conclusão que o mundo "lá fora"
é mais importante do que ela, o anseio pela fama e pela fortuna
segue-se necessariamente.
"O ego, na visão do mago, não oferece nenhuma possibilidade de
realização. Ele é controlador e indiferente.& 39;Escute-me& 39;,
163
diz ele, & 39;e agarre tudo que você puder para você mesmo. Isso é que é
felicidade.& 39; Todos vocês, mortais, seguem esse conselho durante
algum tempo. Tampouco existe nele qualquer prejuízo do ponto de
vista de Deus, porque a confiança Dele no livre-arbítrio vem a ser o
caminho mais sábio.
"Dificilmente preciso lhes dizer que essa terceira etapa permanece
com vocês, porque enquanto o ego estiver presente, o empreendedor
também estará. O empreendedor nunca satisfaz seus apetites. Afinal de
contas, não existem limites para as experiências que vocês podem
acumular; o mundo é infinito em sua diversidade. Mas à medida que se
desenvolve, o ego abafa o espírito com diferentes camadas, de
riqueza, poder, auto-imagem, até que uma voz começa a perguntar
baixinho: & 39;Onde está o amor? Onde está o ser?& 39; A quarta etapa, outro
nascimento, vem a seguir."
QUARTA ETAPA - O NASCIMENTO DO DOADOR
— Com o tempo o ego descobre uma nova noção — acrescentou Merlim
—, ou seja, que a felicidade não repousa apenas em dar mas também
em receber. Esta é uma descoberta importantíssima, pois liberta o ego
de muitos tipos de medo. Existe o medo do isolamento, ao qual o
completo egoísmo necessariamente conduz. Existe o medo da perda,
que surge porque vocês não podem se agarrar a tudo para sempre.
Existe o medo dos inimigos, aqueles que querem tomar de você.
"Ao tornar-se um doador, o ego não precisa conviver com esses
medos, pelo menos não tanto quanto antes. Um problema insistente foi
resolvido. Mas também existe algo mais profundo em funcionamento. O
ato de dar une duas pessoas, a que dá e a que recebe. Esta união dá
origem a uma nova sensação de pertencer; não o pertencer passivo do
bebé que automaticamente pertence à mãe, mas o pertencer ativo de
alguém que aprendeu a criar a felicidade.
"Dar é criativo, e também vira a perspectiva do ego de cabeça
para baixo. Antes de o doador nascer, a proteção contra
164
a perda era extremamente importante. Isso significava a perda de
dinheiro e posses mas também a perda da auto-imagem, a perda da
importância. Agora a pessoa abre livremente mão de alguma coisa,
mas não sente que perdeu alguma coisa. Em vez disso, o ego sente
prazer. Isso é impressionante, porque o prazer de tomar nunca foi
assim." Galaad parecia pensativo.
—O amor entrou no coração. Essa é a diferença.
—É verdade — disse Merlim. — Enquanto o ego persegue o
interesse pessoal, ele não sente amor. Ele pode sentir um intenso
prazer, auto-satisfação ou apego. Esses sentimentos são às vezes
chamados de amor, mas na natureza o amor é altruísta, e é preciso
um ato altruísta para suscitar o amor. Dar não está limitado a dar
dinheiro ou coisas para uma outra pessoa. Existe também o serviço,
o dar de si mesmo, e a devoção, a mais pura forma de dar amor.
"Por todos esses motivos, o nascimento do doador transmite uma
sensação nova e liberadora. Embora o ego ainda esteja no comando,
ele começou a olhar para fora de si mesmo. Quase todas as pessoas
aprendem o prazer de dar quando bem pequenas; a maioria dos pais
ensina os filhos a dividir as coisas com outras crianças. No entanto, o
verdadeiro nascimento do doador pode acontecer somente muito
mais tarde. Enquanto você estiver dando porque lhe disseram para
fazê-lo, ou porque você acha que dar é a coisa correta a ser feita,
você não sentirá o profundo prazer de dar. Dar precisa ser
espontâneo, nascer do sentimento & 39;É isso que eu quero fazer& 39;, e não
& 39;E isso que eu devo fazer& 39;."
— Quando a pessoa começa a dar, isso é um indício de que
o ego está morrendo? — perguntou Percival.
Merlim franziu as sobrancelhas.
— Na alquimia não existe a morte. Nada precisa perecer para
alcançar o Graal. Essa antiga noção da morte do ego pressupõe
que existam coisas a respeito de vocês que Deus condena.
—Mas você acabou de dizer que o ego é controlador e indiferente
— objetou Percival. — Isso faz parte do plano de Deus para nós?
—O plano de Deus é que vocês encontrem a si mesmos — disse
Merlim. — Vocês não estão simplesmente destinados a
165
atingir uma meta predeterminada. Se vocês quiserem explorar como
é ser egoísta, ignorante, homicida ou totalmente destituído de fé,
Deus permite todas essas experiências. Por que não deveria Ele
permitir? Como vocês não são julgados, nenhuma das suas ações é
boa ou má aos olhos de Deus.
— Mas isso é chocante — declarou Galaad. — Você está querendo
dizer que um assassino e um santo são iguais?
— Eles são iguais se o pecador e o santo forem apenas máscaras
que você veste — retrucou Merlim. — O santo nesta vida pode ser o
pecador em outra, e o pecador de hoje pode estar aprendendo a ser o
santo de amanhã. Todos esses papéis são ilusões aos olhos de Deus.
Não estou dizendo que vocês precisam se obrigar a adotar essa
perspectiva. Mas vocês me pediram orientação, e preciso lhes
mostrar o que está adiante no caminho.
QUINTA ETAPA - O NASCIMENTO DO BUSCADOR
— Durante um longo tempo, o ego teve tudo à sua maneira —
continuou Merlim. — A pergunta O que é bom para mim? dominou
todas as considerações; o ponto de vista limitado do indivíduo foi o
único que pareceu real. Isso é apenas natural. Como eu disse, este
mundo relativo tem um objetivo, ensiná-los a se tornarem indivíduos.
Mas a individualidade acaba por se abrir e ampliar seus horizontes.
Vocês poderiam prever que em virtude do livre-arbítrio, os seres
humanos se tornariam cada vez mais egoístas. Se o ego indiferente e
controlador tivesse a última palavra, talvez esse fosse seu destino,
mas a alquimia trabalha de forma invisível, nas passagens estreitas
da alma.
"No devido tempo, o doador dá o passo seguinte e avança em
direção ao buscador. Nesta fase, os interesses antigos e familiares
do ego são postos de lado. O senso do & 39;eu& 39; começa a se expandir.
Agora a pessoa começa a ansiar por experiências espirituais,
sentindo uma fonte de amor e realização que mesmo o mais intenso
amor de outra pessoa não é capaz de proporcionar. Uma vez mais,
essa reviravolta acontece como um choque.
166
Em sua melhor expressão, o doador é um filantropo. Ele começou
dando apenas para a família e para os amigos, depois para obras de
caridade ou para a comunidade, mas no final o espírito de dar só
consegue se satisfazer quando todos os seres humanos são
beneficiados.
"Mas é realmente possível vocês se darem para todas as outras
pessoas do mundo? Esta pergunta os leva ao limite da
individualidade; é a pergunta que só um santo pode responder. É
natural, portanto, que o estágio de dar levante questões que ele não
pode responder, preparando assim o caminho para um novo
nascimento. O doador que queria abraçar o mundo agora descobre
que o mundo não é mais uma fonte de realização. As coisas que
antes lhe proporcionavam prazer começam a parecer monótonas; em
particular, a necessidade de aprovação e importância pessoal do ego
não mais conferem satisfação. Surge a sede de ver o rosto de Deus,
de viver na luz, de explorar o silêncio da consciência pura: o impulso
do buscador pode assumir muitas formas.
"E contudo, todos os buscadores compartilham o sentimento de
que o mundo material não parece ser o lugar no qual seus desejos
podem ser realizados. Por quê? Deus não está em toda parte, o
espírito não se encontra no mais minúsculo grão de areia? Sim e
não. Deus pode estar em toda parte, mas este fato não lhes traz
nenhum benefício se vocês não puderem ver onde Ele está. O
buscador procura para poder ver."
—Eu acho que é nesse estágio que a busca do Graal começa —
declarou Galaad.
—Para alguns mortais, de fato, é então que o Graal se torna um
símbolo para uma profunda necessidade interior — replicou Merlim
— mas cada estágio foi uma busca, até mesmo a perda da inocência.
Vocês, mortais, são obcecados por dividir a realidade em bem e mal,
santo e pecador, sublime e não sublime, quando na verdade a vida é
um fluxo divino. Um único impulso, o impulso de possuir o completo
conhecimento e a completa realização, é que o que faz a vida seguir
adiante.
"E, contudo, sob um certo aspecto você está certo. Com o
nascimento do buscador, podemos, pela primeira vez, nomear um
desejo que até agora não tinha nome. Não importa que o nome seja
Deus, o Graal, o Ser divino ou espírito. Todos
167
apontam em direção a uma vida universal. O mundo parece ser
limitado pelo tempo e espaço, mas isso é apenas uma aparência."
— Por que temos que ser enganados pelas aparências? —
perguntou Percival.
— O universo não está escondendo nada de nós — respondeu
Merlim. — Você não está sendo iludido. A aparência de limitações
surge porque este mundo é uma escola, ou campo de treinamento. E
a regra básica que existe nele é que você verá o mundo como vê a si
mesmo. Se você se vê como carente ou indigno, é esse julgamento
que manterá Deus afastado de você. Você poderá dizer que quer
Deus, mas ao mesmo tempo deseja conservar dentro de si todas
essas críticas que você faz a si mesmo.
— Então Deus permanece afastado — lamentou-se Galaad. — E a
busca do Graal torna-se eterna.
Merlim lançou-lhe um olhar complacente.
— O espírito não poderia ficar afastado de você mesmo que
ele quisesse, porque tudo é espírito. Não existem lugares secre
tos onde ele não viva. Deus, na verdade, não vê nada errado em
você.
"Quero falar mais a respeito do buscador, pois este é o estágio da
alquimia que atrai o mago para vocês, e também é o estágio para o
qual os mortais estão menos preparados. Desde que eram bebés,
vocês sempre desejaram cada vez mais. O buscador é simplesmente
aquele cujos desejos se expandiram tanto que só serão satisfeitos se
encontrarem Deus frente a frente. Esse não é um desejo & 39;mais
elevado& 39; do que querer brinquedos, dinheiro, fama ou amor. Os
brinquedos, o dinheiro, a fama e o amor eram a face de Deus quando
eram as coisas mais « importantes para vocês. Qualquer coisa que
vocês acreditem que irá lhes conferir a paz e realização finais é sua
versão de Deus. A medida que avançam de uma fase para outra,
contudo, vocês se aproximam da verdadeira meta; sua imagem de
Deus torna-se mais verdadeira, mais próxima da natureza Dele como
espírito puro. No entanto, cada etapa é divina."
— Você está dizendo que alguém que queira roubar ou
cometer um assassinato está seguindo um impulso divino?
Afinal de contas, esses também são desejos — disse Percival.
168
—O amor é universal, e, por conseguinte, não toma partido —
replicou Merlim. — O ego pode não gostar desse fato. Ele pode dizer:
"Eu mereço o amor de Deus mas aquela pessoa não merece". Esta
não é a perspectiva de Deus. O ladrão inflige a perda da
propriedade; o assassino, a perda da vida. Enquanto essas perdas
forem reais para você, é claro que você condenará a pessoa que as
causou. Mas o tempo também não irá roubar sua propriedade e, no
final, sua vida? O tempo também é um criminoso? Existe uma
perspectiva que encara o pecado como uma ilusão. Nada que você
chame de pecado pode macular, mesmo que infimamente, o amor de
Deus.
—Os buscadores alcançam automaticamente as visões e
experiências que desejam? — indagou Galaad.
—Todo mundo obtém a versão do divino que concebe na mente.
Alguns vêem Deus em visões, outros numa flor. Existem muitos tipos
de buscadores. Alguns exigem atos de intervenção e redenção
milagrosos, outros seguem uma força invisível que se manifesta nas
mais mundanas ocorrências. O buscador é simplesmente motivado
pela sede de uma realidade superior. Isso não significa que o estágio
anterior de dar desapareça. Mas o dar agora é realizado sem uma
motivação egoísta, ele é feito com compaixão.
"Pela primeira vez a exigência do ego de ser onisciente e todopoderoso
é questionada. Por conseguinte, o nascimento do buscador
pode ser extremamente turbulento. Imagine-se como uma carruagem
conduzida por uma estrada por uma parelha de cavalos. Durante um
longo período de tempo, não existe um cocheiro, e os cavalos vieram
a acreditar que são os donos da carruagem. Então, um dia, uma voz
suave, vinda de dentro da carruagem, sussurra: & 39;Parem& 39;. No início, os
cavalos não escutam a voz, mas ela repete: & 39;Parem& 39;. Incapazes de
acreditar no que estão ouvindo, os cavalos avançam ainda mais
impetuosamente, apenas para provar que não têm um amo. A voz
interior não emprega a força; ela não protesta. Apenas continua a
repetir: & 39;Parem& 39;.
"É isso que acontece dentro de vocês. A carruagem é seu eu total,
os cavalos o ego, a voz dentro da carruagem o espírito. Quando este
último proclama sua entrada em cena, o ego
169
inicialmente não escuta, porque está certo de que seu poder é
absoluto. Mas o espírito não utiliza o tipo de poder ao qual o ego está
acostumado. O ego está habituado a rejeitar as coisas; está
acostumado a julgar, separar e tomar o que ele acha que lhe
pertence. O espírito é simplesmente a voz mais tranquila do Ser,
asseverando o que é. Com o nascimento do buscador, essa é a voz
que vocês começam a ouvir, mas vocês precisam estar preparados
para uma violenta reação do ego, que, afinal de contas, não vai
entregar o poder sem lutar."
—Como essa luta chega ao fim se o espírito não tem poder? —
perguntou Percival.
—Eu disse que o espírito não utiliza o poder da maneira como o
ego está habituado. Com o tempo, vocês aprenderão que o espírito é
apenas poder, um poder de alcance infinito. Ele é um poder
organizador que mantém cada átomo no universo em perfeito
equilíbrio. Comparado com ele, o poder do ego é absurdamente
limitado e insignificante. Não obstante, vocês só compreenderão isso
depois de terem renunciado à necessidade do ego de controlar,
predizer e defender. O poder do ego se limita a essas três coisas. Se
o ego pudesse renunciar às três ao mesmo tempo, não haveria
necessidade de outras etapas de crescimento; o nascimento do
buscador seria suficiente.
"Entretanto, este não é o caso. A voz do espírito anuncia que
existe uma realidade mais elevada. Ascender a essa realidade é
outra questão."
—Isso me faz pensar que os buscadores devem ser raros,
considerando-se como é árdua a luta — declarou Galaad. — Muitos
devem fracassar e perder a esperança. É por isso que tão poucos
nascem para alcançar o Graal?
—Todos nascem para alcançar o Graal — lembrou-lhe Merlim. —
O motivo pelo qual os buscadores parecem raros é basicamente uma
questão de aparências sociais. A busca é uma experiência
completamente interior. E impossível dizer, a partir de indícios
externos, quem está buscando e quem não está. A sociedade não
oferece distinções ou recompensas especiais para o buscador, que
poderá inclusive se retirar ao total isolamento, deixando a sociedade
para trás, ou, por outro lado, continuar a viver a vida numa posição
elevada.
170
—Como a pessoa saberá que é um buscador? — indagou Percival.
—As marcas internas do buscador são as seguintes: o dar passa a
ser motivado pelo amor altruísta e pela compaixão, sem desejar nada
em troca, nem mesmo gratidão; a intuição torna-se um guia
fidedigno para a ação, substituindo a rígida racionalidade; a pessoa
vislumbra lampejos de um mundo invisível como a realidade
superior; surgem sugestões de Deus e da imortalidade. Esses
indícios se farão acompanhar de um crescente gosto pela solidão, da
autoconfiança em vez da necessidade de aprovação social, da
atividade do Ser e de uma disposição para confiar. Os padrões de
hábito começarão a desaparecer. A meditação e a prece tornam-se
parte da vida cotidiana. E no entanto, ao mesmo tempo em que todas
essas manifestações espirituais os afastam do mundo material, vocês
sentirão, paradoxalmente, uma maior ligação com a natureza, mais
conforto no corpo e uma maior aceitação das outras pessoas. Isso
acontece porque o espírito não é o oposto da matéria. O espírito é
tudo, e o surgimento dele na sua vida tornará as coisas melhores, até
mesmo coisas que parecem ser opostas.
SEXTA ETAPA - O NASCIMENTO DO OBSERVADOR
— Eu lhes disse — prosseguiu Merlim — que a motivação do
buscador era ser capaz de ver, e isso logo emerge. A sexta etapa, o
nascimento do observador, está logo abaixo da superfície de
qualquer buscador. A busca por si só não encerra nenhuma
realização; a vida seria seca e frustrante se vocês buscassem e nada
encontrassem. Afortunadamente, no plano divino, todas as perguntas
trazem consigo suas respostas, todas as metas vêm a ser
encontradas na origem. Tão logo você verdadeiramente pergunte
Onde está Deus? você verá a resposta.
"Não quero iludi-los aqui. O nascimento do observador é tão
revolucionário quanto qualquer um dos anteriores. Ele significa a
extinção do ego, a extinção de toda identificação externa.
171
Imaginem que sua vida é um filme projetado sobre uma tela em branco.
Enquanto estiverem dominados pelo ego, vocês se concentrarão nas
imagens que se movem e as considerarão reais. Quando o observador
entra em cena, vocês começam a perceber a irrealidade delas. Mas com
o nascimento do observador, vocês se voltam e olham para a luz. A autoimagem
agora é vista pelo que ela é, uma insignificante projeção
transformada em realidade pela necessidade desesperada do ego de
atribuir importância à mente e ao corpo restringidos pelo tempo.
"O observador enxerga através dessa motivação e não mais se deixa
influenciar por ela. Em vez de verem a si mesmos como carne e osso
abrigando um espírito, um fantasma dentro de uma máquina, vocês
compreendem que tudo é espírito. O corpo é espírito amalgamado
numa forma que os sentidos podem sentir, ver e cheirar; a mente é o
espírito numa forma que pode ser ouvida e compreendida. O espírito,
em sua forma pura, não é nenhuma dessas coisas e só pode ser
percebido pela intuição refinada. Certamente vocês já ouviram a frase:
& 39;Aqueles que O conhecem não falam Dele; aqueles que falam Dele não
O conhecem.& 39; Esse é o mistério do espírito."
—Mas você não está falando Dele neste exato momento? —
perguntou Galaad, parecendo confuso.
—Não da maneira que você possa pensar. Quando falo sobre uma
rocha, você pode vê-la e tocá-la. Quando falo do espírito, estou
apontando em direção a um mundo invisível. Setas de luz voam desse
mundo em direção a nós para inflamar nossas almas, mas não podemos
mandar de volta setas de pensamento.
—Isso parece muito misterioso — murmurou Percival.
—A rosa seria misteriosa se você só pudesse pensar nela e nunca
experimentá-la. O espírito é uma experiência direta, mas ele
transcende este mundo. Ele é o silêncio puro combinando-se ao
potencial infinito. Quando você obtém o conhecimento de qualquer
outra coisa, você obtém o conhecimento de alguma coisa; quando
você obtém o conhecimento do espírito, você se torna o próprio
conhecimento. Todas as perguntas cessam porque você dá consigo no
útero da realidade, onde tudo simplesmente é. Quando o olhar do
observador cai sobre alguma coisa, esta é simplesmente aceita pelo
que ela é, sem ser julgada.
172
Não existe uma necessidade do ego de tomar, possuir ou destruir. Na
ausência do medo, essas motivações não se manifestam, porque a
necessidade de possuir nasce da falta. Quando você não tem nenhuma
carência a preencher, simplesmente estar aqui neste mundo, em seu
corpo, é a mais elevada meta espiritual que você possivelmente
poderia alcançar.
Percival e Galaad ficaram muito impressionados com essa parte do
discurso de Merlim. Eles haviam seguido as primeiras etapas com
atenção, mas o ego, o empreendedor e o doador já lhes eram
familiares. Quando o mago falou sobre o buscador, os dois cavaleiros
viram a si mesmos como eram naquele momento. O observador,
contudo, encheu-os de admiração, como se fossem exploradores
chegando ao topo de uma montanha e examinando um novo e vasto
horizonte há muito esperado porém ainda não experimentado.
— Eu quero ser esse observador do qual você fala — declarou
ardentemente Galaad.
Merlim concordou com a cabeça.
— O que significa que você está pronto para isso. Para o
mago só existem três tipos de pessoas: aquelas que ainda não
vivenciaram o Ser puro, aquelas que o experimentaram, e
aquelas que o exploraram completamente. Você o experimentou
e agora deseja explorá-lo. Para você este mundo começará a
desaparecer como uma coisa sólida e a retroceder na luz esma
gadora do Ser. Numa terra distante chamada índia, as pessoas
dizem que a vida comum se torna pálida diante de Deus, como
a vela que parecia brilhar num quarto escuro mas se torna
invisível quando trazida para o sol do meio-dia. — Ele se voltou
para Percival. — E eu o estou incluindo também neste estágio,
não importa como você possa imaginar que eu o julguei.
Percival ficou vermelho e depois gaguejou:
— Como será essa nova vida?
— Como sempre, ela parecerá um novo nascimento. O
observador difere do buscador por não mais ter que selecionar e
escolher. O buscador ainda está envolvido numa ilusão quando
sai por aí dizendo: "Deus está aqui, Deus não está aqui". O
observador, por outro lado, vê Deus na própria vida. A longa
guerra interior finalmente terminou, e o descanso chega para o
173
guerreiro. Em lugar da luta, você vivência todos seus desejos se
tornarem realidade naturalmente e sem esforço. Não existem sinais
externos que definam quem são os observadores entre nós, mas
interiormente eles se sentem abertos e satisfeitos, eles permitem
que os outros sejam quem querem ser, que é a forma mais elevada
de amor, não colocam empecilhos às outras pessoas e aos
acontecimentos, e abandonaram totalmente o senso egoísta do "eu".
SÉTIMA ETAPA - O ESPÍRITO
— E difícil imaginar que pudesse haver um estágio mais elevado na
vida — comentou Galaad após um momento, profundamente tocado
pela descrição do observador.
—Tenha cuidado com a expressão mais elevado — advertiu
Merlim. — E o ego que deve se preocupar com o superior e o
inferior. A meta da sua vida é a liberdade e a realização. A realização
só é alcançada quando você passa a conhecer Deus tão
completamente quanto Ele conhece a Ele mesmo. Vocês, mortais,
estão sempre ansiosos por milagres, e eu lhes digo que o maior
milagre são vocês mesmos, pois Deus lhes concedeu essa habilidade
única de se identificarem com a natureza Dele. Uma rosa perfeita
não sente que é uma rosa; um ser humano realizado sabe o que
significa ser divino.
—Esse estado pode ser descrito? — indagou Percival.
—Ele é a sétima e última etapa da alquimia, o espírito puro.
Quando ele surge, o observador descobre que o que parece ser a
alegria e realização totais ainda podem se expandir. Veja bem,
chegar à presença de Deus não é o final da sua busca e sim o início.
Você começou na inocência, e nela você irá terminar. Mas dessa vez
a inocência é diferente, porque você obteve o conhecimento
completo, ao passo que o bebé só tem sentimento.
"Quando vocês forem capazes de se verem como espírito, sua
identificação com o corpo e a mente deixará de existir. Ao mesmo
tempo, o conceito de nascimento e morte também cessará. Vocês
serão uma célula no corpo do universo, e esse
174
corpo cósmico será tão íntimo de vocês quanto seu corpo o é para
vocês agora. Isso é o mais próximo que eu consigo chegar de como
um mago sente, pois mago é apenas uma outra palavra para o sétimo
estágio.
"Entendam o seguinte: para o mago, o nascimento é meramente a
ideia de que & 39;eu tenho este corpo& 39;, e a morte é apenas a ideia de que
& 39;eu não tenho mais este corpo& 39;. Como os magos não estão sujeitos à
ilusão do nascimento, qualquer corpo que eles assumam é visto
apenas como um padrão de energia, qualquer mente como um
padrão de informação. Esses padrões estão em eterna
transformação; eles vêm e vão. Mas o mago está além da mudança. A
mente e o corpo são como quartos nos quais a pessoa escolhe viver,
mas não o tempo todo.
"Nenhuma quantidade de pensamento ou sentimento pode
aproximar ou trazer a vocês esse estado. O espírito nasce do silêncio
puro. O diálogo interno da mente precisa terminar e nunca mais
recomeçar, porque aquilo que deu origem ao diálogo interior, a
fragmentação do eu, não está mais presente. Seu eu será unificado, e
à semelhança do bebé que foi seu início, vocês não sentirão nenhuma
dúvida, vergonha ou culpa. A necessidade de dualidade do ego gerou
um mundo de bem e mal, certo e errado, luz e sombra. Agora vocês
verão que esses opostos se mesclam. Essa é a perspectiva de Deus,
porque onde quer que Ele olhe, tudo que Ele vê é Ele mesmo.
"Se vocês sentirem que esta meta é excessivamente grandiosa ou
distante, eis um segredo. Embora vocês tenham a impressão de que
passam pelas sete etapas da alquimia, cada uma delas esteve
presente desde o início. Na inocência estava a totalidade de Deus,
como ela está no ego, na realização, na doação ou na busca. Tudo
que realmente mudou foi o foco da sua atenção. Em seu ser
encontra-se cada aspecto do universo, tão completo e eterno quanto
o próprio universo. Mas mesmo assim o nascimento no espírito é um
acontecimento tremendo. A medida que a unidade for
amadurecendo, vocês se tornarão cada vez mais familiarizados com o
divino, até que finalmente vivenciarão Deus como um ser infinito que
se desloca a uma velocidade infinita através de dimensões infinitas.
Quando essa impressionante experiência tiver lugar, ela parecerá tão
simples e natural
175
quanto se sentar aqui debaixo das estrelas, só que cada estrela
dançante será vocês mesmos."
Como frequentemente acontece quando os magos falam, os dois
cavaleiros se sentiram transportados para o estado que ele estava
descrevendo. Galaad ergueu a vista para o céu noturno e teve de
repente a impressão de que podia tocar nas estrelas. Uma sensação
de verdadeiramente pertencer ao mundo inundou seu coração.
—Estamos em casa — Percival sussurrou para si mesmo.
—Não se impressionem demais — murmurou Merlim. — Esses
sentimentos possuem essa intensidade porque são novos para vocês.
Na verdade, este é o estado natural de vocês. Estarem unidos ao
cosmo, serem íntimos de todas as formas de vida, e finalmente
alcançarem a união com seu próprio Ser, este é seu destino, o final
da sua busca.
—No final voltaremos ao início — murmurou Galaad.
—Sim — disse Merlim. — Cada um de vocês começa com amor,
passa pela luta, paixão e sofrimento, terminando novamente no
amor.
A voz de Merlim ficou mais suave enquanto o círculo de luz ao
redor deles praticamente se extinguia.
— Vocês, mortais, anseiam por milagres, digo eu, e na
qualidade de filhos privilegiados do universo, nada lhes será
negado. O espírito é o estado do milagroso, que se desenrolará
em três estágios:
& 39;& 39;& 39;Primeiro, vocês vivenciarão milagres no estado chamado
consciência cósmica. Cada evento material terá uma causa
espiritual. Cada acontecimento local também estará acontecendo no
palco do universo. Seu menor desejo fará com que as forças
cósmicas o tornem realidade. Por mais maravilhoso que isso possa
parecer, esse não é um estado muito adiantado, porque muito antes
de alcançarem a consciência cósmica, vocês estarão acostumados a
ver seus desejos espontaneamente se tornarem realidade.
"Segundo, vocês realizarão milagres no estado denominado
consciência cósmica. Este é o estado de criatividade pura, no qual
vocês se mesclam com o poder de Deus, por meio do qual Ele cria os
mundos e tudo que acontece nesses mundos. Esse
176
poder não tem origem em nada que Deus faz, ele é apenas Sua luz
de consciência. Como um brilho rico e dourado, vocês verão a
consciência divina reluzindo através de tudo que seus olhos
contemplam. O mundo ilumina-se a partir do interior, e não existe
nenhuma dúvida de que a matéria é simplesmente o espírito
manifestado. Na consciência divina, vocês se verão como aquele que
cria, não o que é criado, o que dá a vida, não o que recebe.
"Terceiro, vocês se tornarão o milagre, no estado conhecido como
consciência de unidade. Agora, qualquer distinção entre o que cria e
o que é criado desapareceu. O espírito dentro de vocês se incorpora
ao espírito de tudo o mais. O retorno de vocês à inocência é todoabrangente,
porque, à semelhança do bebé que toca a parede ou o
berço e só sente a si mesmo, vocês verão cada ação como o espírito
derramando-se sobre o espírito. Vocês viverão num completo
conhecimento e confiança. E embora ainda pareçam morar num
corpo, ele será apenas um grão de Ser nas praias do oceano infinito
de Ser que são vocês mesmos."
Os dois cavaleiros não tinham ideia do tempo que Merlim levara
fazendo essa exposição. Eles tinham a impressão de terem sido
erguidos num espaço no qual esferas de Ser se abriam uma depois
da outra como as pétalas de uma flor. E quando a última se abriu,
um diamante quase transparente, que mal podia ser visto, girava no
centro. "O que é isso?" Galaad teve vontade de perguntar, mas não
ousou fazê-lo.
— Contemplem o Graal — sussurrou Merlim. — O desabro
char da sua busca conduziu a uma visão da meta, o ponto de pura
luz, a essência do diamante que arde dentro da sua alma.
Os dois cavaleiros se ajoelharam no chão frio e rezaram em seus
corações pedindo para merecer a visão.
—Vivam em devoção a este momento — disse Merlim. — Eu os
trouxe aqui por causa do seu mais íntimo desejo, mas agora vocês
mesmos precisam conquistar o verdadeiro Graal, e não apenas a
visão dele.
—O verdadeiro Graal? — murmurou Percival. — O que devemos
procurar, esta mesma imagem?
—Não esperem nem antevejam — advertiu Merlim enquanto a
visão do Graal começava a desaparecer. O homem vai em
177
busca de símbolos, e os símbolos mudam a cada época. Mas o que
lhes mostrei não foi um símbolo, e sim a verdade. O Graal é a
partícula de cristal do Ser no coração de vocês. Ela reflete
sutilmente a luz em suas facetas, e desses reflexos sutis surgem
todas as faculdades da mente e do corpo que vocês percebem com
seus sentidos. Como reflexos, eles são reais, mas muito mais real é
esse diamante transparente de puro Ser.
Inesperadamente, Merlim bocejou, inclinando a cabeça para trás
como se esse fosse o ato mais agradável do mundo. Ele estendeu os
braços bem abertos e se levantou. Estava agora quase escuro como
breu, o fogo havia se apagado completamente, mas Percival e Galaad
podiam sentir o olhar de Merlim fixo sobre eles. Ele disse:
— Um dia vocês olharão para trás, para esta noite, e pergun
tarão: "Quem é você, Merlim?" Além da esfera do tempo, assim
responderei: Sou aquele que não precisa de milagres. Sou um
mago, e o fato de eu estar aqui é um milagre suficiente. O que
poderia ser mais milagroso do que a própria vida?
Com a luz que se extinguia, o velho desapareceu. Percival e
Galaad permaneceram imóveis, sem emitir um som. O fascínio da
fala de Merlim ainda tomava conta deles, e quando ele começou a
diminuir, ambos tremeram, lamentando terem que voltar à terra. Ao
amanhecer, iniciaram o retorno ao castelo. A luz dourada do sol,
Percival avistou o rei Artur de pé, na janela de seus aposentos reais;
ele estava olhando diretamente para eles.
— Você acha que devemos falar com ele sobre o que
aconteceu? — perguntou Percival, fazendo um gesto em direção
ao castelo.
Galaad sacudiu negativamente a cabeça.
— Estou certo de que o rei sabe o que aconteceu; deve ter
acontecido a ele, ou por que outro motivo ele estaria tão relutante
em falar sobre o Graal? Mas quero lhe dizer uma coisa, Irmão
Cavaleiro. Eu gostaria que Artur compreendesse que estamos
com ele e Merlim nessa busca. Vamos chamar esta noite de noite
da gruta de cristal. O rei saberá ao que estamos nos referindo.
E embora eles não tivessem estado numa gruta e sim debaixo do
dossel de um céu estrelado, Percival concordou instantaneamente
com a sugestão de Galaad.
ANDRESSA
Quando puder ver agradeço.
1-Meu namoro com Luiz Fernando vai dar certo?
2- Serei novamente promovida em meu trabalho?
3- Vou conseguir finalmente ingressar na faculdade?
4- Está td certo com minha saúde espiritual e fisica?
1) Quero começar a fazer um curso de cinema digital e tenho procurado emprego, porém nunca trabalhei antes, então as oportunidades que surgem acabo perdendo por falta de experiencia, meu pai disse que se a aposentadoria dele sair logo ele pagaria, mas ele esta a anos esperando e até agora nada, final do ano a advogada disse que ligaria dando um parecer sobre a audiencia que foi feita mas tbm nao ligou, queria saber se pra conseguir fazer este curso conseguirei arrumar um emprego, ou se sai a aposentadoria do meu pai e ele paga ?E se ainda demora? (Jose O.16/03/62)
04/08/07= Mostra que sim, os caminhos estão abertos pra vc conhece-la e para essa viagem tbm, mostra tbm que poderá acontecer algum envolvimento entre vcs. Conhecer ela irá mudar muita coisa em sua vida, não somente a possibilidade desta viagem, mas mostra que conhecer ela trará muitas outras transformações na sua vida. Muita coisa boa relacionado a ela.
2) Atraves deste curso quero tentar conhecer uma pessoa a qual eu admiro muito o
trabalho, nome dele é Ian, gostaria de saber se atraves deste curso
terei mesmo a oportunidade de conhecer Ian pessoalmente e trabalhar com
ele algum dia? ( Ian S. 8/12/1978 )
3) Meu objetivo atravez deste curso tambem, é ir trabalhar nos EUA, apesar do Brasil estar tento bastante reconhecimento na area de cinema, mas acho que por la terei mais oportunidades de trabalho.Sera que dará certo de eu ter uma carreira internacional? (Nem que eu comece por aqui e só depois de um tempo vá pra lá)
4) E se esse curso de cinema digital me trata retorno financeiro e realização profissional?
Evelyn Oliveira dos Santos 14/3/85
MAGIA DOS GESTOS
POÉTICOS
Rubem Alves
“Não terei medo de ninguém sobre a terra.
Temerei apenas a Deus.
Não terei má vontade para com ninguém.
Não aceitarei injustiças de ninguém.
Vencerei a mentira pela verdade,
e na minha resistência à mentira
aceitarei qualquer tipo de sofrimento”
Gandhi
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Todos os direitos de edição reservados à
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MATRIZ Rua Rui Barbosa 156 (Bela Vista) São Paulo
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara
Brasileira do Livro, SP, Brasil) Alves, Rubem, 1933
Gandhi: política dos gestos poéticos / Rubem Alves. 2ª. ed. - São
Paulo: FTD, 1994. -(Coleção prazer em conhecer)
ISBN 85-322-0172-5
1. Gandhi, Mahatma, 1869-1948 2. Pacifismo l. Título. II. Série.
94-0580 CDD-923.254
Índices para catálogo sistemático:
1. Índia: Estadistas : Biografia 923.254
2. Índia: Políticos : Biografia 923.254
Publicação original Coleção Encanto Radical Editora Brasiliense
Editor: Jorge Cláudio Ribeiro
Coordenador de revisão: Adolfo José Facchini
Editor de arte: Cláudio Cuellar
Capa: Chromo Digital - Design Gráfico
Ilustrador: Rogério Borges
Produtor: Edilson Felix Monteiro
Diagramador: Ricardo Hamassak
O autor
Eu nasci em Boa Esperança, Minas Gerais. Poucos foram lá,
mas muitos ouviram a “Serra da Boa Esperança”, do Lamartine Babo.
Em 1933. Depois, pinguei por várias cidades pequenas, até uma
juventude no Rio de Janeiro.
Estudei música, teologia e quis ser médico, por amor a Albert
Schweitzer. Fui pastor numa igreja do interior de Minas, Lavras,
cidade de ipês e de escolas. Convivi com o povo, e de 1958 a 1964
deixei os livros, sem remorsos, para viver dores e alegrias de outros.
Assim vivem pastores e, imagino, sacerdotes católicos.
Passei algumas vezes pelos Estados Unidos. Lá fiz meu
doutoramento. Princeton, New Jersey.
Livros
A Theology of Human Hope, três edições em inglês.
Traduzido para o italiano, o francês e o espanhol. Tomorrow’s child,
um livro sobre a imaginação e a magia, a esperança e a utopia. E
sobre plantar árvores em cuja sombra nunca nos assentaremos. O
enigma da Religião (Vozes). Protestantismo e repressão (Ática).
Filosofia da Ciência e O que é religião (Brasiliense).
Concordo com Octávio Paz quando ele diz que a tarefa do
intelectual é fazer rir pelos seus pensamentos e fazer pensar pelos
seus chistes...
RUBEM
Índice
Capítulo 1 - Gestos poéticos
Capítulo 2 - Origens
Capítulo 3 - Humilhações
Capítulo 4 - Saíyagraha
Capítulo 5 - Um colar
Capítulo 6 - Os saquinhos de anil
Capítulo 7 - A caminhada para o mar
Capítulo 8 - A reverência pela vida
Capítulo 9 - A tristeza final
Capítulo 10 - Como escrevi esta estória
Capítulo 1
Gestos poéticos
Escute só... Cessaram os ruídos comuns e as vozes que aqui
havia quando cada dia era como o outro. Tudo parou para ver, para
dizer adeus... Não é silêncio. É um mistério que está no ar,
misturado com este perfume de sândalo que sai da madeira que se
contorce e chia nas chamas. É o cheiro de incenso que diz que o
momento é sagrado. A morte foi sempre misteriosa, e é por isso que
os homens se aproximam dela com o nome de Deus nas suas bocas.
Nome que se pronuncia para exorcizar o medo: Râmi Râm
Ouve-se o crepitar do fogo, luminoso e quente, esplendor da
divindade. Ao lado do fogo corre o rio Jumna. Penso que suas
águas, nascidas nas distâncias do Himalaia, devem estar se
preparando para receber as minhas cinzas. Dizem as estórias
contadas de geração em geração que este rio é mulher, irmã gêmea
de lama, deus da morte.
Poderia haver lugar mais belo para uma pira funerária, entre o
fogo divino e as águas que carregam em si os segredos do além, mãe
que acolhe no colo um filho que retorna? Como é bom saber que,
no retorno, há uma mãe à espera... com suas águas irei indo
lentamente, até o Ganges. Isto me conforta porque todas as vezes
que vi o rio sagrado, e sempre que dele me lembrei, tive
pensamentos de harmonia e de tranqüilidade. Há também o discreto
murmurar das palavras que se dizem ao ouvido, e o choro da
separação.
O nome de Deus, o rio da morte, colo materno que acolhe, as
vozes do amor... Tudo isto junto fia e tece um tapete que convida a
alma...
Olho, ouço, e isto me faz bem. Meu coração se aquece porque
amei intensamente este povo comum e pobre da Índia, minha mãe...
É bom saber que me amaram. Eu não queria deixá-los ainda,
muito embora os acontecimentos me estivessem dizendo que já
bastava, que era hora de partir. Mas o meu tempo interior dizia
outras coisas. Queria continuar a viver para continuar a lutar com
um espírito equânime e tranqüilo. Não existe coisa alguma mais
doce que isto.
E foi por isto que disciplinei o meu corpo, para ter vida longa,
e cheguei a sonhar que chegaria a viver 125 anos...
Cada pessoa tem uma estória para contar. Elas trocam entre si
pequenos fragmentos de memória para que os outros saibam que, a
despeito da distância, vivemos juntos momentos de verdade,
respiramos o mesmo ar, conspiramos. As agonias compartilhadas
desjejuns, a solidariedade das prisões, a coragem da resistência
mansa e tenaz, a percepção da voz interior, surgida do fundo da
alma, as alegrias das vitórias: tudo isto selou nossa fraternidade. A
ternura com que falam a meu respeito me leva para muitos anos
atrás, naquela terra de humilhação para os indianos pobres e
indefesos, a África do Sul. Foi lá que começaram a me chamar de
bhai, irmão. Como era doce este nome na boca dos que o
pronunciavam. Hoje sinto coisa parecida. Pena que eles não possam
ver minhas mãos unidas e o meu sorriso, abençoando-os.
Como se cada um desejasse afirmar sua presença, em amor, na
pira incendiada.
- Eu também o vi...
- Sim, me lembro muito bem...
Pensam que estão falando a meu respeito. Mas se enganam.
Não percebem que, quando se fala com amor, cada palavra que se
diz é uma revelação daquele que fala. Confissões.
Se eles se lembram é porque este corpo, que o fogo vai
transformando, de alguma forma conseguiu despertar neles algo de
bom que ali se encontrava esquecido. Falam sobre eles mesmos ao
dizer o meu nome. Sentiram-se mais dignos e mais livres. O que fiz?
Quase nada. Só uns poucos gestos mansos e obstinados. E as coisas
boas adormecidas acordaram, como que por “magia...”
Lembro-me de uma longa viagem de trem, naqueles anos que
vivi na África do Sul. Seriam vinte e quatro horas. Eu tinha um
amigo íntimo a quem confidenciava tudo o que me ia na alma.
Acompanhou-me até a estação e, na despedida, deu-me um livro de
presente. Garantiu-me que a leitura seria do meu agrado, talvez para
certificar-se de que eu não o deixaria fechado, absorvido por minhas
preocupações de ordem prática. Ele sabia muito bem da vida que eu
levava, ação o tempo todo, o que não me deixava sobras para o
estudo. Comecei a lê-lo. Coisa estranha me aconteceu. Sentia como
se o autor estivesse simplesmente dando nomes a sentimentos que já
existiam dentro de mim. Não, não eram palavras que enunciavam
verdades acerca das coisas de fora, e que nos deixam convencidos e
impassíveis. Eram palavras encantadas, que invocavam partes do
meu próprio ser que eu já sentia, mas ainda não conhecia. Nunca
mais pude me esquecer. O autor, irmão desconhecido, era John
Ruskin, e o nome do livro era Até o último. Não pude dormir a
noite toda, fascinado pela leitura. Resolvi mudar de vida. Quando o
dia amanheceu eu era um homem diferente. Havia me decidido a
andar na direção indicada pelas vozes do meu íntimo. Aquela era a
minha verdade que precisava ser obedecida, para que eu estivesse
em paz comigo mesmo e sentisse a alegria de viver. Maravilhei-me
com este estranho poder das palavras. E entendi então o segredo do
poeta. O poeta é um ser que é capaz de despertar o bem que dorme
no fundo do coração humano. De fora ele pouco sabe. Contenta-se
em ser um espelho para que contemplemos as profundezas de
dentro.
Naquele momento compreendi o que desejava ser. E nunca
mais desejei ser outra coisa. Ser poeta de palavras era coisa além das
minhas possibilidades. Tal dom não me havia sido dado pela
providência divina. Mas eu poderia ser um poeta dos gestos, gestos
que trouxessem de novo à vida coisas que pareciam mortas, gestos
de encantamento e sedução. Compreendi que era destes gestos que
nasciam as grandes metamorfoses: dos indivíduos, das comunidades,
de povos inteiros. A razão? É que eles atingem o coração. Não
existe nenhum outro caminho que nos possa levar à transformação
do mundo. E nada há que se lhes compare em poder. Digam-me,
por favor: qual é a barreira que o sentimento proveniente do
coração não pode romper? Anos depois eu me encontrei com
Tagore, poeta que cantou o coração da Índia. Senti que éramos
companheiros. Ele fazia com as palavras aquilo que eu tentava fazer
com os meus gestos. As multidões, entretanto, o desorientavam.
Ele precisava ouvir as vozes que só se dizem no silêncio. E as
transformava em poemas. E eu sentia que era isto que cada alma,
perdida na multidão, desejava: a palavra que lhe dissesse a sua
verdade. Milhões de sofredores, pedindo um poema. Não, eles não
vivem só de comida. Os poemas fazem o corpo sorrir e lutar:
alimento revigorante.
Sei que os políticos não entendem isto. Acostumaram-se a
movimentar o poder dos raios. Ignoram o poder da semente. Até
mesmo Nehru, meu filho espiritual. Sensível, inteligente, apaixonado
pela Índia, respirávamos a mesma verdade, o mesmo amor pelo
povo. Mas ele era político. Escapava-lhe a significação dos gestos
poéticos.
Foi necessário que ele visse com os seus próprios olhos. O
mais fraco de todos os gestos, o jejum, o poeta dos gestos optando
pelo silêncio, indo até aqueles limites além dos quais o silêncio é sem
volta. Além do mais, eu era um prisioneiro, à mercê do Império
Britânico. Mas o gesto que ninguém viu, porque feito do lugar da
mais total impotência, virou palavra, andou de boca em boca, os
corações reverberaram, milhares, e o milagre aconteceu. Naquele
instante ele percebeu aquilo que iria escrever muito depois: “Que
grande mágico, este pequeno homem sentado na prisão de leravda!” Ele só se
enganou em um ponto: - pensou que o que fiz era coisa
extraordinária. Mas estou convencido, como o estive durante toda a
minha vida, de que tudo que me foi possível o é também para uma
criança. A palavra é muito boa: magia. É isto que sempre quis fazer:
modificar as coisas pelo poder do amor. E de todas as magias a mais
bela é aquela dos pobres amedrontados que, de repente, se
esquecem da intimidação das fardas e das armas, livram-se do medo,
e passam a obedecer somente à voz interior da sua verdade que um
gesto de amor fez acordar.
Foi isto que vi acontecer no rosto dos mais humilhados e mais
pobres de todos os indianos, aqueles camponeses que plantavam
índigo, para os seus dominadores, na região do Champaran.
Parece tão difícil acreditar no poder da vida. Tudo conspira
contra ela. Há os governos poderosos, a força das organizações
econômicas, o mal presente nas maiorias cruéis e nas minorias
militantes, e o átomo que agora pode destruir todas as coisas...
Como é possível que os homens mantenham a sua paz interior e se
sintam exteriormente tranqüilos, como podem eles conservar-se
honestos, livres, verdadeiros para consigo mesmos, em face de
todos os golpes que são desferidos contra eles? Muitos se agacham e
se submetem. A vida se encolhe cada vez mais. E é isto que abre as
portas ao totalitarismo. Se o indivíduo não estiver disposto a
defender-se contra os abusos do poder, a liberdade está condenada.
Alguns se enganam e pensam que o problema é exterior,
apenas: abertas as portas das gaiolas, os pássaros voarão. Ignoram
que os pássaros também constroem gaiolas para si mesmos, por
medo das alturas. A liberdade dá calafrios... Somos nossos próprios
carcereiros. Foi Tagore quem disse isto da forma mais dolorosa:
- Prisioneiro, dize-me, quem foi que fez esta inquebrável
corrente que te prende?
- Fui eu - disse o prisioneiro - quem forjou, com cuidado, esta
corrente...
Minha luta não era só para expulsar a morte. Queria trazer a
vida de volta...
Vejo que o fogo está mais forte. Vai-se o meu corpo. Vão ficar
as estórias que dele se contarão. Fantasias, memórias que o amor
preservou... Houve um tempo em que eu mesmo me dediquei a
escrever minhas memórias. Logo percebi as limitações desta
empresa, sob um ponto de vista histórico. Não é possível registrar
todas as lembranças.
Quem poderá decidir acerca do que deve ser dito e do que
pode ser esquecido, no interesse da verdade? Um espírito
esmiuçador que viesse a submeter-se a um interrogatório bem que
poderia terminar por gabar-se de haver revelado o vazio de boa
parte das minhas pretensões. Mas eu não coloquei minhas memórias
no papel por amor à ciência histórica. O que eu desejava era
simplesmente relatar minhas experiências com a verdade, a fim de
proporcionar aos meus companheiros de lutas um meio de
reconforto e um alimento para as suas meditações. Por oposição aos
ocidentais, que tendem somente a respeitar a face externa da vida,
que todos podem comprovar, e a que dão o nome de ciência, eu me
interessava por relatar aquilo que vivi, no domínio espiritual: sou o
único a saber destas coisas e é nelas que reside a medida da
influência de que disponho na política. É a isto que dou o nome de
verdade: algo que cresce de dentro, que não se pode ensinar, mas
apenas sugerir e invocar, por meio de gestos de amor... Ao escrever,
eu me via como alguém que oferece uma fruta ao faminto, um
pouco de água ao que caminha.
Lembro-me de coisas de minha infância. Não gostava muito
de ler. Se estudava era porque este era o meu dever e porque temia a
vergonha da repreensão dos professores.
Um dia, nem sei direito como isto aconteceu, vi, entre as
coisas de meu pai, o livro Shravana PitribhaktiNâtaka, uma peça de
teatro que contava a lealdade de Shravana para com os seus pais. O
triste choro dos pais diante do filho morto nunca me deixou. Está
vivo em mim. Coisa semelhante aconteceu com outra peça,
Harischandra, a que meu pai me permitiu assistir. Ela ganhou o meu
coração e voltei ao espetáculo, vez após outra. E eu me perguntava:
“Por que é que todo o mundo não é também leal e fiel como Harischandra?”
Procurar a verdade e sofrer tudo por ela, isto foi desejo que a peça
despertou dentro de mim. Naquele tempo acreditava piamente em
tais estórias, ao pé da letra. Hoje sei que eram poemas, construções
do amor. Mas isto em nada diminuiu o seu fascínio e o seu poder.
Continuam a ser realidades vivas que despertam emoções que nunca
se acabam e sempre se repetem. Agora eu me pergunto se não é
justamente aqui que se encontra a sua verdade, apesar de nunca
terem acontecido: elas exprimem a verdade interior que não é só
minha, mas que vive, de uma forma ou de outra, em todas as
pessoas. E foi pensando um pouco nisto que me pus a escrever
minhas memórias, com a intenção de tirar delas aquelas coisas que
me deram coragem e me fizeram sorrir, para partilhar com os
outros, que caminham juntos...
Mas ninguém é só bondade. A luz deixa sempre certos lugares
de sombra. Nem todas as coisas são ditas. Há silêncios. Penso na
minha mulher e nos meus filhos. Talvez eu tenha querido ser o pai
de todos e por isto não pude ser o pai que meus filhos desejariam
que eu fosse, nem ser o esposo para o qual Casturbai foi preparada.
Quem deseja se casar com uma causa e ser pai de multidões,
não deveria casar-se com uma mulher e gerar filhos. Mas a escolha
não foi minha. Fui casado, criança, sem nada saber, tinha apenas
treze anos de idade. Era assim que diziam as tradições da nossa
gente. Muitas vezes senti a tristeza no rosto da minha mulher e a
perplexidade no olhar dos meus filhos. Por que é que eles tinham de
ser diferentes? Por que é que tinham de se submeter a uma vida que
não fora escolha sua? Mas eu era prisioneiro de uma voz interior que
me impelia numa direção diferente. Parece-me que existe algo
semelhante nos textos sagrados dos cristãos, algo mais ou menos
assim: que quem quiser seguir a verdade deve abandonar todas as
coisas - pai, mãe, mulher, filhos, segurança, bens materiais...
Quero dizer para os outros a minha verdade, na medida em
que eu a repito para mim mesmo. Muitos falaram sobre mim, como
se eu fosse um político astuto, político ingênuo, político equivocado.
Mas eu nunca quis entender de política. Só quis entender da
bondade e dos seus caminhos. A política foi uma conseqüência e
não a inspiração, da mesma forma que o calor é uma simples
conseqüência do fogo e não a sua origem. Eu teria feito as mesmas
coisas, ainda que não houvesse conseqüência alguma. Pelo menos é
isto que me diz a minha voz interior.
Foi assim que fui ficando cada vez mais longe do Ocidente, até
ser quase motivo de riso. Um dos seus líderes políticos mais
extraordinários, Churchill, me chamava de “faquir seminu”. Ele não
podia ver o mundo com os meus olhos. Parece que os ocidentais
não acreditam que os homens sejam naturalmente bons e belos,
lugares onde a vida cresce. É por isso que se tornaram especialistas
em meios de coerção e sabem usar o dinheiro e os fuzis como
ninguém mais... É por isso que estão sempre tentando melhorar os
homens por meio de adições: a comida em excesso, a roupa
desnecessária, a velocidade da máquina, a complicação da vida...
Tentei seguir o caminho inverso: despojar-me de tudo para
que a verdade apareça. É somente assim que se vê Deus, porque
Deus é verdade, esta voz que vive dentro de cada um. Cultivei,
acima de tudo, meus momentos de oração e meditação: às 4h30 da
manhã, e entre 5 e 6 da tarde. Para mim não havia nada mais
importante que isto.
Antes que o gesto seja feito é necessário ouvir o que a
verdade está dizendo.
Sempre acreditei que no fundo dos homens existe algo de
bom. Como poderia eu odiar qualquer pessoa, mesmo os que me
tinham por inimigo? Dirão que não é assim. Há a crueldade, o ódio,
a morte... Será que algumas gotas de água suja serão capazes de
poluir o oceano inteiro? Que força do mal poderá apagar o divino
que mora em nós? Somos jardins habitados por feras, fontes de água
em meio ao deserto, sorrisos amigos escondidos em rostos
envilecidos pelo medo. A única coisa que desejei era cultivar este
jardim, beber desta água, contemplar estes sorrisos... Não queria
acrescentar coisa alguma. Precisa-se de muito pouca coisa para se ter
paz e harmonia: a alegria vem quando as pessoas bebem de suas
próprias fontes frescas a verdade que nelas mora. Esta verdade, o
segredo da vida, é uma enorme e obstinada mansidão, que não recua
nunca, e corre sempre, irresistível, sem revidar, como o rio...
Ah! Quase que me esquecia: os mortos não podem falar. É
alguém que fala em meu lugar, que tentou ouvir e procurou colher
as coisas que eu mesmo colheria, se pudesse.
É preciso que a imaginação voe no cheiro de sândalo e no
brilho do fogo. Antes que tudo se acabe...
Capítulo 2
Origens
Nasci muito longe do mundo. Porbandar, cidade pequena que
me parecia enorme, à beira do mar da Arábia. Diziam-me que aquilo
era a Índia, mas eu não entendia. Quem mora a vida inteira nas
montanhas não sabe o que são montanhas. Só irá aprender quando
estiver nas planícies e vier então aquela imensa saudade... Assim era
aquele pequeno nosso mundo, fora do mundo. Distantes de todas as
rotas do comércio, das notícias, dos jornais, das viagens, vivíamos a
nossa própria vida e pensávamos que o mundo inteiro deveria ser
mais ou menos daquele jeito. Por que desejar algo melhor?
Nasci no dia 2 de outubro de 1869. Meu pai, Kaba Gandhi,
casou-se quatro vezes, e três vezes a morte o deixou sozinho. Minha
mãe, Putlibaa, teve uma filha e três filhos. Eu fui o último filho da
última esposa. Parece que os pais olham o filho depois do qual não
haverá outro com um carinho especial. Ali está sua última semente...
Deram-me o nome de Mohandas Karamchand Gandhi. Meu
último nome continha um destino, os limites entre os quais a
tradição me obrigava a viver até a minha morte, Índia, mundo em
que os homens são separados em prateleiras, castas, que correm
paralelas, umas às outras, como se fossem trilhos de trem, sem
nunca se encontrarem. Gandhi, nome que pertence à casta Baniia.
Em sua origem trabalhavam com especiarias. Depois meus
antepassados se destacaram nas coisas públicas e subiram na
política, sendo, muitos deles, governadores de províncias da
península onde vivíamos, Catiavar.
Meu pai não soube ficar rico. Sua morte iria nos deixar pobres.
Nada sabia dos livros. Ignorava completamente a história e a
geografia. Dele não saíam estórias de outros mundos e outras
terras... Mas era sábio ao lidar com as pessoas. Mais tarde nos
mudamos para uma outra cidadezinha próxima, Rajcot. Foi ali que
aprendi a tolerância para com todos os ramos do hinduísmo e
religiões irmãs. Meus pais iam, com absoluta tranqüilidade, não só
aos templos vichnuítas a que estavam ligados, como também aos
templos de Shiva e de Rama. Nossa casa era também lugar de
hospedagem obrigatória para os monges jainistas, religião tão antiga
quanto o budismo.
Não há ninguém que se assemelhe a eles no respeito e amor a
todas as coisas vivas. Quem se importaria com a vida de um
mosquito? Eles se importam. E até usam cobrir suas bocas com
gazes, para que não venham a engolir e a matar um pobre e quase
invisível bichinho voador... Meu pai tinha também amigos
muçulmanos e parses, que lhe falavam de sua religião. E eu me
lembro muito bem de seu interesse e do seu respeito. Ouvia e
perguntava. Desejava aprender. O que se sentia era que todos nós,
de religiões diferentes, estávamos em busca de uma mesma verdade.
Olhando-se uma mesma flor, um nota o perfume, outro a cor, um
outro o delicado formato das pétalas...
As diferenças se uniam como expressões de um mesmo
amor... Somente os cristãos me causavam antipatia. Lembro-me dos
missionários, nas esquinas, pregando a verdade que só eles tinham, e
desavergonhadamente nos acusando a todos de estarmos no erro.
Parecia-me que, para ser cristão, era necessário ter vergonha da
Índia: destruir a vida, matar para comer, vestir roupas que nos eram
estranhas. E eles bebiam bebidas alcoólicas...
De meu pai tenho uma experiência que preciso relatar, pois
me acompanhou pelo resto da vida. Quando eu tinha 12 ou 13 anos
um tio fumante me ensinou a fumar. A princípio, dava umas
baforadas com os tocos de cigarros que catava. Depois fiquei mais
exigente. Acontece que eu não tinha dinheiro. Passei a furtar
dinheiro dos bolsos dos empregados da casa para comprar cigarros.
Depois, já mais velho, roubei de novo. Eu tinha uma dívida a pagar,
não tinha dinheiro, e um amigo meu tinha um bracelete de ouro do
qual era fácil arrancar uma peça. Foi o que fiz. Paguei a dívida. Mas
passei a sofrer atrozmente pelo meu ato. Não podia dormir. Não
tinha um momento de paz. Resolvi confessar tudo ao meu pai. Mas
eu não tinha coragem para falar. Escrevi tudo num papel que lhe
entreguei pessoalmente. Minha mão tremia. Meu pai estava doente,
de cama, que era uma simples prancha de madeira. Leu o papel sem
perder uma linha, e as lágrimas brilharam, deslizando sobre as suas
faces e molhando a folha. Fechou os olhos, um instante, para
refletir. Depois rasgou o pedaço de papel. Ele havia se sentado para
ler. Deitou-se de novo. Eu também chorava. Podia ver que ele sofria
muito. Essas lágrimas de dor e de amor purificaram o meu coração.
Nunca me esqueci: quando se ama, o sofrimento tem um poder
mágico para espantar os sentimentos maus e para acordar os
sentimentos bons. Depois, vida afora, sempre que eu jejuava, era
como se meu pai estivesse ao meu lado, olhando-me com um
sorriso. Agora era eu que tentava ser pai de um povo, oferecendolhes
o meu sofrimento para que eles se purificassem e sorrissem...
Minha mãe era de uma alegria tranqüila e constante. Ela
exalava santidade. Orava antes das refeições. Ia diariamente ao
haveli, templo vichnuíta. E tinha um grande prazer no cumprimento
dos votos que fazia. Certa vez fez o voto de não se alimentar
durante todo o tempo em que o sol estivesse ausente. Era a estação
das chuvas.
O sol aparecia raramente, no meio das nuvens, e logo
desaparecia. Quando o víamos aparecer, corríamos para contar à
nossa mãe. Ela saía, para se certificar. Mas o sol já se fora. “Não
importa” - dizia alegremente
- “Deus não quer que eu coma hoje.” E voltava aos seus afazeres.
Aprendi com ela a beleza desta virtude da equanimidade, os
sentimentos tranqüilos, não perturbados por aquilo que acontece...
E aprendi mais: que a vida pode sorrir mesmo em meio às
abstenções. Só que, para isto, é necessário que haja uma fonte
interior, onde a pessoa se abebera...
Fui um estudante medíocre. Tinha muito medo dos outros
meninos. Por isso fugia deles e me escondia nos livros e nas lições.
Chegava à aula na hora exata e voltava correndo para casa, logo que
ela terminava. Corria para fugir... Não podia pensar que outra pessoa
pudesse querer falar comigo. E tinha medo de que zombassem de
mim. Eu era a morada de muitas emoções estranhas. Sentia-me
fraco e feio. Estes sentimentos me assombravam sob a forma de
medo de fantasmas e espíritos. Quem veio em meu auxílio foi a ama
que cuidava de mim, velha e fiel criada. Sua afeição nunca me
abandonou, até hoje. E ela me contou um segredo: maus espíritos se
expulsam com uma palavra que seja mais forte que eles. E que
palavra mais forte pode existir que o nome de Deus? Ensinou-me
então a repetir o Ram-nam... Meu amor por ela me fez crer na
eficácia do nome divino.
Coisa misteriosa esta, que sejam os outros, a quem amamos,
que nos transmitem e ensinam a eficácia de Deus. Foi graças a ela
que o Ram-nam se tornou, pelo resto de minha vida, um remédio
infalível. Quando a tranqüilidade interior começa a tremer, digo o
nome divino e recupero o acesso às fontes interiores da verdade.
Depois, aquela experiência grotesca. Já disse que eu era fraco e
tinha medo. Aí arranjei um amigo, mais forte e maior que eu, que
me disse que o meu problema era o problema da Índia inteira.
Todos éramos fracos. Todos tínhamos medo. De quem? Dos
dominadores ingleses, intrusos que mandavam em nossa casa. Como
explicar que os ingleses, sendo poucos, podiam cavalgar os indianos,
que eram muitos? É que eles comiam carne. Carne dá coragem para
a alma e força para o corpo. Em parte por causa do meu medo e da
minha timidez, e em parte por sentimentos patrióticos, tomei a
decisão de romper com tudo o que havia aprendido da minha
família: era ali que se encontrava a razão da fraqueza.
Fomos, secretamente como ladrões, para um recanto
escondido, à beira do rio. Foi lá que vi carne pela primeira vez. Tive
nojo. A carne de cabra era dura. Mastiguei e masquei. Mas o passado
já era dono do meu corpo. Não pude engoli-la. À noite sonhei que
uma cabra viva gemia dentro de mim, e eu acordava cheio de
remorsos...
Mas não eram só os sentimentos em relação à cabra. Era a
vergonha de estar mentindo aos meus pais, de estar renunciando às
coisas mais caras que faziam parte da sua vida. Como se eu estivesse
dizendo adeus a eles e ao seu mundo. E foi isto que me fez
abandonar esta experiência grotesca...
Da minha infância e adolescência é preciso contar mais duas
coisas.
Na Índia há um estranho costume: o de fazer com que as
pessoas se casem quando elas ainda são crianças. Creio que
semelhante coisa não se encontra em nenhuma outra parte do
mundo. E eu não consegui nunca entender as razões. Perguntei pela
sabedoria deste ato, mas ninguém pôde me responder. Só
respondiam que era assim que se fazia. E foi desta forma, sem que
eu soubesse ou quisesse, sem que a menina soubesse ou quisesse -
que é que crianças podem saber ou desejar? - que se celebraram os
festejos do nosso casamento.
Seu nome era Casturbai e ela sorria tímida, sem nada saber da
vida que a aguardava. Demo-nos inocentemente as mãos, ante todos
os convivas, e celebramos o ritual dos sete passos, um a um, com
suas palavras e promessas, até que nossos pés fizessem o
movimento final e irrevogável, o sétimo passo, que nos ligou pelo
resto de nossas vidas. Mal sabíamos...
Ela fora criada para ser uma esposa hindu. Como todas as
demais, desejava um lar, filhos, um marido que a protegesse (ela lhe
daria amor, obediência e respeito em troca), uma casa... Mas eu
andei por outros caminhos. E por amor àquilo que me parecia ser a
verdade causei muitos sofrimentos àqueles a quem os costumes me
haviam ligado para sempre.
O outro fato, tristeza que não me abandona, me cobre de
vergonha. Meu pai se encontrava muito doente. Todos os recursos
médicos se haviam esgotado. Sabíamos que a hora fatal se
aproximava. Naquele dia, meu tio, seu irmão, chegara
apressadamente. Os dois se gostavam muito. Eram dez ou onze
horas da noite. Eu me preparava para fazer as massagens que
sempre fazia no meu pai. Mas o meu pensamento se encontrava
longe. Pensava na minha esposa, e o meu corpo queria o prazer.
Quando o meu tio me disse que fosse dormir e que ele cuidaria de
meu pai, não me fiz de rogado. Cheguei ao meu quarto. Casturbai
dormia profundamente. Eu a acordei. Mas ao cabo de uns poucos
minutos o criado nos interrompeu.
- Venha depressa que seu pai está muito mal. Pulei da cama e
saí.
- Que houve? - perguntei.
- Seu pai não existe mais...
Tudo estava acabado. Meus últimos gestos eram irremediáveis.
E ele já não estava vivo, para ouvir o meu pedido de perdão. Se a
paixão bestial não me tivesse cegado, a morte o teria encontrado em
meus braços. E a memória dos seus últimos momentos seria doce
para mim. Aprendi então algo de que nunca mais me esqueci: coisa
estranha, o corpo. Tão belo quando dominado pelo amor, tão
vergonhoso quando possuído por suas próprias paixões...
Ao fim da minha adolescência, os mais experientes, dentre
nossos parentes e amigos, sugeriram que seria muito bom se eu
fosse para a Inglaterra estudar Direito.
Minha mãe não gostou da idéia. Medo de que o filho caçula
não voltasse, medo de que ele se perdesse moralmente, medo de que
ela não mais estivesse viva, para recebê-lo de volta... Não sei. Mas o
peso dos argumentos contrários era muito grande.
E eu desejava ir. Finalmente ela concordou, sob uma
condição: eu deveria fazer um tríplice voto, que haveria de me
proteger. Assim, tive de prometer que não tocaria em vinho, não
tocaria em mulher e não tocaria em carne. Cercado pelas precauções
e pelas esperanças dos que me amavam, parti finalmente. Meu navio
deixou o porto no dia 4 de setembro de 1888. Aquele que sempre
morara nas montanhas sem as conhecer, preparava-se para entrar
nas planícies para então conhecer, de longe, aquilo que os olhos não
mais podiam ver.
Meus sentimentos eram confusos. Eu era um mocinho, nunca
havia deixado a minha terra. Mas o fascínio era grande. Ia morar no
mundo dos dominadores fortes, comedores de carne, que eu
invejava e respeitava. Seus costumes deveriam ser superiores aos
nossos. Se assim não fosse, como explicar que eles nos tivessem
subjugado? Claro, eu deveria me formar em Direito. Mas lá no
fundo desejava tornar-me como um deles. Pretendia voltar como
um gentleman...
Mas logo aquele menino desajeitado apareceu. Comecei a me
sentir ridículo e a temer que os outros rissem de mim. Meu inglês
era muito ruim e não chegava para manter uma conversa. Resolvi
evitar as pessoas, temeroso de que elas falassem comigo. No
refeitório não sabia o que fazer com o garfo, a faca e a colher, pois
nosso costume era comer com os dedos. E, quando vinha o
cardápio, eu não tinha coragem de perguntar sobre os pratos que
levavam carne. Solucionei o problema trancando-me na cabina e
passando a comer os doces e as frutas que levava comigo. Durante a
viagem só usei um terno preto. Guardei o que me parecia mais
elegante para o solene momento do desembarque. E foi trajando o
meu terno de flanela branca que pisei o solo britânico. Mas logo me
ruborizei de vergonha ao perceber que eu era o único vestido
daquela maneira. No hotel em que me hospedei fui logo visitado
pelo dr. Mehta, para quem trouxera uma carta de recomendação. Ele
me recebeu calorosamente. Entusiasmei-me e, no meio da conversa,
comecei distraidamente a brincar com o seu chapéu. Ele me dirigiu
um olhar sério que me fez deter. Mas compreendeu a minha
situação: eu nada sabia do mundo estranho onde acabara de chegar.
E foi então que recebi dele a primeira lição de maneiras européias:
- Não toque em nada que pertença a outro. Não faça
perguntas às pessoas com quem se encontra pela primeira vez. Fale
em voz baixa. Não diga “sim, senhor!” a toda hora e a todo mundo.
Só os subordinados falam dessa maneira...
À medida que ele falava, comecei a sentir vergonha de mim
mesmo e fui-me convencendo de que precisava tornar-me como um
deles. Os ingleses haveriam de respeitar os indianos quando estes
fossem capazes de falar e pensar e vestir e agir como eles...
Iniciou-se então a metamorfose: o indiano ridículo deveria
transformar-se num inglês elegante. Gastei dez libras num terno
comprado numa loja da rua mais elegante de Londres. Pensei que
um chapéu alto e forrado me daria um ar de dignidade e adquiri um.
Escrevi ao meu irmão pedindo que me enviasse uma corrente de
ouro, para o meu relógio. Aprendi a fazer os nós de gravata. E como
os meus cabelos fossem uma ofensa aos cabelos britânicos, lutava
com eles todas as manhãs, durante cerca de dez minutos, com uma
escova, a fim de obrigá-los a assentar. Além disso, para aprimorar
meus modos de gentleman, tomei aulas de dança. O que foi
totalmente inútil, porque meu corpo nunca conseguiu seguir o
ritmo. Mas não desisti. Pensei que a apreciação da música ocidental
seria de importância fundamental em minha nova condição, e que o
caminho para isto seria a aprendizagem de um instrumento.
Comprei um violino. E tomei lições de francês e de dicção.
Mas estes esforços não combinavam com sentimentos que
cresciam dentro de mim. Queria transformar-me num gentleman
para não ser um ridículo e desajeitado indiano.
Logo percebi que não pode existir nada mais ridículo que um
indiano de chapéu alto e tomando lições de dança. Havia uma voz
que falava mais alto: a voz da saudade.
Ela me dizia que o meu corpo podia estar na Inglaterra, mas as
coisas que eu realmente amava estavam muito longe. Meu coração
continuava na Índia. À noite, com freqüência, lembrando-me das
cenas da vida familiar, não conseguia conter as lágrimas. E não havia
ninguém com quem pudesse compartilhar a minha tristeza. A
saudade é algo mágico.
Ela tem o poder de transformar coisas que antes eram banais e
comuns em memórias de encanto: as pequenas vilas, o povo, o
cheiro da terra molhada, os momentos das refeições, das preces, os
rostos dos amigos. Tudo ficou belo e triste. Especialmente a minha
mãe. As coisas feias foram esquecidas. E a Índia se tornou, de
repente, o nome para tudo aquilo que me era caro. De longe
descobri, pela primeira vez, o quanto a amava, o quanto a minha
alma e o meu corpo estavam ligados a tudo aquilo de que me
lembrava, com saudades...
Deixei de lado as coisas tolas a que me havia entregado. Passei
a fazer coisas que tivessem um sentido novo, coisas que me
repetissem que meu lugar não era ali.
Descobri o gosto pelo diferente, pelo efêmero, pelo simples,
pelo marginal... Como se agora eu encontrasse um certo prazer
naquilo que poderia parecer ridículo.
Fiquei sabendo que havia, em Londres, estudantes que viviam
com grande simplicidade, um deles num quarteirão de casebres.
Resolvi abandonar o apartamento em que vivia e me mudei para um
quarto. Comprei um fogareiro e passei a fazer o meu desjejum e o
meu jantar: aveia e chocolate. O almoço, tomava-o num restaurante
vegetariano.
Caminhava de dez a quinze quilômetros por dia, hábito que
conservei pelo resto de minha vida. Filiei-me à sociedade vegetariana
e comecei a fazer pesquisas sobre a dieta ideal para uma vida longa,
saudável e tranqüila. Compreendi que é necessário comer para viver
e não comer para ter prazer. Há prazeres que são doces na língua
mas amargos no corpo.
Além disso, recebi a minha primeira lição de humor, que me
foi de valor inestimável. Foi uma bondosa senhora que me ensinou.
Ela me havia recebido em sua casa, várias vezes, mas eu não tive
coragem suficiente para dizer que eu era casado. E uma jovem que
vivia com ela evidentemente pensava que eu fosse solteiro. Isto foime
fazendo mal, como se eu estivesse dizendo uma mentira.
Resolvi, portanto, escrever-lhe uma carta contando tudo. Ela me
respondeu de maneira generosa e amiga:
“Tenho em mãos a sua carta. Causou-nos alegria e rimos muito ao lê-la.
Nós o esperamos sem falta no próximo domingo, na certeza de que nos fará a
narração completa do seu casamento de criança e de que teremos prazer de rir à
sua custa”.
Aprendi então que a melhor maneira de afugentar o ridículo é
ser o primeiro a rir.
E, por estranho que pareça, foi durante estes anos de saudade
que vim a conhecer o Bhagavad-Gita, poema religioso sânscrito que
eu nunca havia lido nem em sânscrito nem em gujrati, minha própria
língua. Estas palavras do segundo capítulo entraram fundo dentro
de mim:
“Se o homem põe a sua atenção nos objetos dos sentidos,
sente-se por eles atraído.
Da atração nasce o desejo;
do desejo a perturbação dos sentimentos;
da perturbação dos sentimentos o erro;
do erro a confusão do pensamento e a ruína da razão;
e da ruína da razão nasce a morte”.
Que livro precioso, início do aprendizado da verdade. Nas
horas de abatimento, vida afora, foi sempre dele que me veio o
auxílio...
Finalmente passei meus exames. Chegaram ao fim os anos de
exílio. A saudade iria reencontrar as coisas com que sonhara. Meu
navio partiu no dia 12 de junho de 1891.
Em breve veria de novo a Índia. E reencontraria a minha mãe.
Cronologia
1869 - Dia 2 de outubro. Nasce em Porbandar, pequena
cidade à beira-mar na Índia.
1883 - Casa-se, aos 13 anos de idade, com Casturbai.
1885 - Morre o seu pai, Karamchand Gandhi.
1888 - Dia 4 de setembro. Embarca para a Inglaterra.
1891 - Regressa à Índia, após diplomar-se em Direito. Sua mãe
morrera durante sua ausência.
1893 - Vai para a África do Sul, onde permanecerá até 1915.
1896 - Regressa à Índia para buscar esposa e filhos. Ao
retornar à África do Sul sofre atentado de linchamento.
1898 - Participa, como enfermeiro, da guerra contra os bóeres.
1907 - Recusa ao registro compulsório. É preso.
1908 - Queima dos certificados de registro.
1909-10 - Correspondência com Tolstoi.
1909 - Viagem à Inglaterra.
1909 - Organiza a comunidade rural “Tolstoi”.
1913 - Marcha para a fazenda “Tolstoi”. Prisão.
1914 - Acordo com o governo da África do Sul.
1915 - Regressa à Índia.
1917 - Vive com os camponeses plantadores de indigueiros.
1919 - Lei Rawlatt, anti-subversão. Atos de violência do
governo.
1919 - Organiza um hartal (greve nacional).
1919 - 13 de abril. Massacre de Amristar.
1920 - Devolve ao governo medalhas anteriormente recebidas.
1921-22 - Mais de 10 mil indianos encarcerados por motivos
políticos.
1921 - Condenado a seis anos de prisão.
1924 - Jejum, em prol da amizade hindu-muçulmana.
1925-29 - Anos de estagnação política.
1930 - Marcha do sal. Início: dia 12 de março. Término: dia 6
de abril.
1930 - 4 de maio. É preso.
1931 - Visita à Inglaterra. É recebido pelo rei.
1931 - É preso, após sua volta.
1932 - Jejum contra o estabelecimento de um eleitorado
separado para os intocáveis.
1934-39 - Dedica-se à fiação, educação básica, difusão de
línguas nativas, estudo sobre dietética, cura natural, luta pelos
intocáveis.
1942 - Campanha de desobediência civil a favor da autonomia
política da Índia. É preso. A violência explode. O governo culpa
Gandhi. Este, profundamente ferido, jejua por três semanas.
1944 - Dia 22 de fevereiro. Morre Casturbai.
1945 - Fim da 2ª Guerra.
1946 - Início das conversações para a emancipação da Índia.
Violências entre hindus e muçulmanos. Viagem de pacificação.
1947 - Dia 15 de junho. O congresso aprova a divisão da Índia
em 2 países, Índia (hindu) e Paquistão (muçulmano).
1947 - Dia 15 de agosto. Independência.
1947 - Distúrbios e violência.
1947 - Dia 31 de agosto. Gandhi é quase agredido por hindus.
Jejum pela amizade hindu-muçulmana.
1948 - Dia 13 de janeiro. Inicia seu último jejum, até o dia 18.
1948 - Dia 30 de janeiro. É assassinado.
Capítulo 3
Humilhações
Quando o navio atracou, eu não tinha idéia das tristezas
que me esperavam. Primeiro foi a minha mãe.Ela já não estava viva .
Havia morrido. Meu irmão escondera a notícia para poupar-me um
sofrimento solitário, distante e desnecessário. É mais leve sofrer na
companhia dos que nos são queridos. A sua morte foi experiência
muito dura porque eu morria de desejo de vê-la de novo. Sofri
muito mais que por ocasião da morte do meu pai. Quase todas as
minhas esperanças mais queridas estavam liquidadas. De repente a
Índia se transformou no lugar de uma ausência... Nunca mais...
Depois, o meu fracasso como advogado. Meu irmão me
aguardava com grande ansiedade. Chegou mesmo a arranjar a casa,
para que tivesse um ar inglês... Eu havia significado um pesado
investimento e agora ele tinha idéias de riqueza, de renome, de
celebridade. Já me imaginava como advogado, tendo uma numerosa
clientela ao meu redor...
Mas minha primeira experiência foi um desastre. Na hora de
contra-interrogar a testemunha, minha cabeça ficou oca e minha
impressão era a de que a sala toda estava rodando. Não fui capaz de
fazer uma única pergunta. Assentei-me e pedi que um outro
advogado que ali se encontrava assumisse o caso. Ele o fez e
embolsou meus honorários.
Saí do tribunal, coberto de vergonha. Parecia que o mundo
inteiro estava se rindo de mim. E quem seria louco, dali para frente,
de entregar uma causa a um advogado que não conseguia falar?
Depois, a sofrida descoberta de que a Índia com que eu
sonhara era, realmente, um sonho... Quando a saudade é muita, a
imaginação, para consolar-se, escolhe os fragmentos alegres e
risonhos do passado. Tudo fica transfigurado, luminoso, puro. Foi
isto que aconteceu comigo. Por três anos me alimentara de
lembranças que a imaginação escolhera e em que eu, ingenuamente,
acreditara. Pensava que a Índia era daquele jeito. Chegara finalmente
o momento da verdade. A tristeza. Agora, olhando para trás,
percebo que a minha vida inteira foi um esforço para reencontrar a
Índia com que sonhei, como se ela estivesse adormecida no meio
daqueles cacos-fragmentos, sob o feitiço de algum espírito mau, e eu
pudesse, com meus gestos poéticos, acordá-la do seu torpor.
Naquele tempo eu não percebia ainda, e muitas humilhações seriam
necessárias para que compreendesse.
Eu sempre tivera o maior respeito pelo Império Britânico,
nosso dominador. Tanto que desejei ser um gentleman... Mas nunca,
na Índia, havia me encontrado face a face com um dos seus agentes.
Acontece que meu irmão viu-se diante de um sério problema. Foi
acusado de conduta irresponsável quando ocupava um cargo
público. Ele estava com medo e sabia que a questão, mais cedo ou
mais tarde, iria parar nas mãos do tal agente do império. Por
acidente eu o conhecera pessoalmente, durante meus anos de
estudos na Inglaterra. Meu irmão pensou que tais relações poderiam
ajudar. Eu não entendia a sua lógica. Se meu irmão era inocente,
assim eu pensava, bastava que ele explicasse tudo. Se fosse culpado,
de que valeria a minha intervenção? Ele abanou a cabeça, incrédulo
de que alguém pudesse ser tão inocente:
- Você não conhece esta terra. Aqui só valem as relações...
Muito a contragosto fui fazer o que ele me pediu. O agente do
império me recebeu, e eu comecei a expor o caso, não sem antes lhe
haver lembrado nossas relações cordiais, em outros tempos. Ele
fechou a cara e ficou frio. Insisti.
Ele acabou por perder a paciência e me disse:
- Seu irmão é um intrigante. Não tenho tempo. Se ele deseja
algo, que faça um requerimento. É só. Passe bem.
Permaneci e continuei. Ele ficou furioso.
- Por favor, peço-lhe que me ouça até o final - eu lhe disse.
Ele ficou ainda mais furioso, chamou seu guarda-costas e
determinou que ele me acompanhasse até a porta. Hesitei por um
momento.
Mas o homem não hesitou. Agarrou-me pelos ombros e me
empurrou para fora da sala.
Parti confuso, humilhado, espumando de raiva. E pensei logo
em me vingar da violência sofrida. Processaria o tal agente do
império. Mas um amigo mais experiente me mandou dizer:
- Você chegou da Inglaterra com o sangue quente. Não
conhece os funcionários britânicos. Se deseja sobreviver, engula o
insulto.
Achei o conselho amargo como veneno. Engoli o insulto. E
aprendi. Não, não aprendi a engolir insultos. Aprendi muito sobre
mim mesmo, sobre a Índia, sobre os seus dominadores. As ilusões
ruíam, uma a uma. Eu estava infeliz e confuso, triste e sem
esperanças...
Imagino que foram sentimentos semelhantes que fizeram com
que meus irmãos indianos tivessem começado a deixar a sua terra,
em busca de coisas melhores. Desde 1860, levas de trabalhadores
viajavam para a África do Sul, a fim de ganhar a vida. Os
dominadores eram os mesmos, tudo era parte do Império Britânico.
E havia demanda de mão-de-obra nas plantações de cana-de-açúcar,
café e chá, lugares que os nativos negros africanos detestavam. Por
modestos que fossem os salários, era melhor que nada. E havia
sempre os comerciantes bem-sucedidos que prosperavam e se
enriqueciam.
Foi uma destas firmas bem-sucedidas que me convidou para
trabalhar em seus escritórios. Eles não necessitavam de um
advogado, mas simplesmente de um funcionário que falasse bem o
inglês e fosse um entendido em questões legais. A minha
insatisfação me empurrava na direção da aventura. Já não tinha
medo do desconhecido. E minha mãe estava morta. Só sentia por
minha mulher e meus dois filhos, que deveriam ficar...
Parti. Abril de 1893. Cheguei ao meu destino, Porto Natal,
também chamado Durban, pelos fins do mês de maio. Do navio
mesmo começou uma descoberta que cada vez mais me
horrorizaria: nós, indianos, estávamos em busca de nossas
esperanças. Mas os dominadores nos tratavam como se fôssemos
animais.
Enquanto o navio atracava e eu olhava as pessoas subirem a
bordo para receber os amigos, observei que não tinham muita
consideração para com os indianos. Até mesmo meu patrão,
comerciante rico, era tratado com desprezo. Tive a impressão de que
ele estava acostumado a isto. No segundo dia após a minha chegada
ele me levou ao tribunal. O juiz olhou-me atentamente e pediu-me
que tirasse o turbante. Recusei-me a fazê-lo e saí do tribunal. Notei
depois que todos nós éramos tratados por um apelido pejorativo,
nome que continha em si uma humilhação, um mau cheiro, uma
sujeira. Éramos chamados daquela forma - coolie - para que
soubéssemos que éramos inferiores e dominados. Era por isso que
não tirar o turbante se tornou questão tão importante para mim:
questão de sobrevivência da dignidade e do respeito próprio.
Debaixo do turbante, um corpo que não se curva... Mas minhas
experiências iriam logo se tornar mais dolorosas. Foi numa viagem
de trem de Durban para Pretória, para tratar de negócios da firma.
Compraram-me um bilhete de primeira classe. Logo depois das
nove horas da noite apareceu um passageiro que me examinou de
alto a baixo. Percebeu que eu era um “homem de cor”. Ele não
escondeu sua repugnância. Saiu e voltou com um funcionário.
- Seu lugar é na segunda classe. Siga-me.
- Mas eu tenho bilhete de primeira classe.
- Pouco importa. Já lhe disse que seu lugar é na segunda.
- Em Durban me deixaram entrar neste compartimento.
Ninguém me fará sair daqui - afirmei.
- Pois eu lhe digo o que vou fazer. Chamarei a polícia, que o
tirará à força.
- Então chame a polícia - eu disse. - Não sairei
voluntariamente.
Veio um policial. Segurou o meu braço e expulsou-me. Eu e
minhas bagagens fomos jogados na plataforma. Recusei-me a entrar
no vagão de segunda. O trem partiu sem mim. Passei a noite na
estação, tiritando de frio, ruminando a humilhação e pensando em
todos os outros que, a fim de ganhar a vida, tinham de engolir
afrontas semelhantes.
Teria eu de fazer o mesmo? Lembrei-me do agente britânico,
na Índia. Fiquei a pensar que o poder deveria deformar as pessoas.
Como se a força as tornasse insensíveis à dignidade dos outros,
especialmente a dos fracos. Os fracos, que poderiam fazer? Destruir
os fortes? Neste caso eles passariam a ocupar o seu lugar, tornandose
igualmente arrogantes e insensíveis. Poderiam os fracos afirmar a
sua dignidade sem se perder, em meio à sua própria luta?
Depois, foi numa viagem de diligência de Charlestown para
Standerton. Os passageiros se acomodaram nos seus lugares. O
branco responsável pelo veículo, julgando-me um coolie, estrangeiro
de cor determinou que eu não me misturasse com os europeus.
Colocou-me num assento fora da diligência. Engoli a injustiça
sem nada dizer.
Três horas depois o tal branco, a quem os outros tratavam por
“chefe” tevê vontade de fumar. Saiu de dentro da diligência, onde
viajava, determinou que eu me sentasse no estribo, para que ele
pudesse sentar-se onde eu me encontrava. A afronta ultrapassara
todos os limites. Tremendo de medo e de cólera, eu lhe disse que
não sairia, a não ser que fosse para me sentar dentro da diligência, o
que era meu direito. Transtornado de ódio, ele pulou sobre mim e
deu-me várias bofetadas com toda a violência. Aí tentou arrancarme
do meu lugar. Mas eu me agarrei com todas as forças, decidido a
não me deixar arrastar, ainda que minhas mãos se quebrassem. Ele
só parou porque os passageiros tiveram pena de mim e interferiram.
Meu coração batia furiosamente e eu me perguntava se chegaria vivo
ao meu destino.
A cada humilhação crescia a minha teimosia. Eu aprendera que
a vida de até mesmo um simples inseto é sagrada e digna de
respeito. Nada me demoveria desta reverência pela vida.
Aquilo que me faltara na Índia surgia agora: uma causa por que
viver. Há gestos simbólicos que fazem brotar sorrisos. Há outros
que provocam a teimosia, a tenacidade, o desejo de lutar até as
últimas conseqüências, ainda que seja a morte. O que estava em jogo
não era eu apenas. Eram meus irmãos indianos. Era a própria Índia,
humilhada.
E, sobretudo, a voz íntima da verdade...
Mas outras humilhações me aguardavam. Logo a seguir
aprendi que eu, um coolie de cor, não tinha o direito de hospedarme
num hotel. Depois, a proibição, imposta a todos como eu, de
não andar nas calçadas ao lado dos brancos. Como se fôssemos
portadores de alguma doença contagiosa e malcheirosa... Os outros
nos olhavam com asco e com cólera. E ainda o fato de não termos
permissão de andar pelas ruas ou mesmo de sair de casa, após as
nove horas da noite, sem uma autorização especial, que só a polícia
poderia dar, a seu bel-prazer. Estávamos nas mãos da polícia, que
tinha todo o poder para dizer “sim” ou “não”.
Depois, aquele homem. Não me esqueci do seu nome:
Balasundaram. Mas antes de contar a estória é preciso explicar um
pouco mais. O tempo havia passado. Eu me havia envolvido no
sofrimento dos indianos e, de alguma forma, coisas que fiz e
palavras que disse contribuíram para que eles se dessem conta da
humilhação em que viviam e compreendessem que a sua vida -
como toda a vida - é sagrada, e se levantassem, com esperança. Por
todos os lados havia uma agitação expressão de que muita coisa que
dormia dentro das pessoas havia acordado. Chegamos mesmo a
fundar uma organização pública de caráter permanente, que teria a
função de exprimir nossos anseios e organizar nossa ação. Foi assim
que o meu nome começou a correr de boca em boca e meus
conhecimentos de Direito começaram a me valer. Nem é necessário
dizer que a antiga timidez evaporara: o sofrimento e o amor são
capazes de abrir a boca dos mudos... Os humilhados vinham a mim
contar as injustiças que lhes faziam. Foi assim que Balasundaram
apareceu no meu escritório.
Esfarrapado, chapéu na mão, dois dentes da frente quebrados,
a boca em sangue, trêmulo, chorando. Agredido brutalmente pelo
patrão. Eu não entendia a sua língua, pois há muitas, na Índia. Ele
falava tâmul, e foi necessário que o meu empregado o interpretasse.
Balasundaram trabalhava sob contrato para um europeu muito
conhecido.
O patrão, num ataque de cólera, espancara-o violentamente, a
ponto de lhe quebrar os dentes.
Como já disse, ele entrara no meu escritório de chapéu na
mão. Este é um detalhe aparentemente insignificante. Mas já lhes
contei do incidente com o turbante. Já se havia imposto a todos os
trabalhadores contratados e a todos os estrangeiros de origem
indiana o hábito de tirar o chapéu na presença de um europeu -
fosse gorro, turbante ou faixa enrolada na cabeça. Nenhum outro
sinal de respeito era suficiente. Assim, o detalhe insignificante era
prova da humilhação que já havia entrado dentro do corpo daquele
homem. Balasundaram pensara que deveria obedecer ao costume,
mesmo diante de mim, filho da mesma Índia. Este gesto me
humilhou. Pedi que ele tornasse a enrolar a sua faixa. Depois de
certa hesitação, ele o fez. E a sua fisionomia iluminou-se de alegria.
Compreendem agora ó que eu queria dizer ao me referir ao poder
dos gestos?
Eu nunca pude entender como é que alguém pode sentir-se
honrado vendo o seu irmão humilhar-se diante dele. Alguma coisa
terrível deve ter acontecido com os seus sentimentos, enterrando a
bondade em buracos muito fundos, dos quais é difícil sair. Talvez
seja isto que a riqueza e o poder fazem com as pessoas. E é por isso
que o meu coração se inclinou para os pobres. Dava-me alegria
misturar-me com eles. Participando da sua humilhação, pude ver
melhor. E não será verdade que é sempre assim? O sofrimento
prepara a alma para a visão de coisas novas. Sofrendo, os olhos
ficam diferentes. E, coisa interessante: quanto mais próximo da
humilhação dos pobres eu me encontrava, tanto mais perto de Deus
eu me sentia. Como se fosse ali, onde a vida aparece desarmada e
indefesa, nada tendo em suas mãos além do desejo de viver, que ela
viceja mais bela... Já a morte cresce ao lado da riqueza e das armas...
Por três anos eu lutei. Os brancos tinham medo. Do medo
nasciam seus preconceitos. E dos preconceitos vinha a violência. Os
indianos tinham medo também. Só que seu medo os tornava
covardes. Todos tiravam o turbante, desciam da calçada, sentavamse
no estribo, viajavam de terceira. Tentei reacender o seu senso de
dignidade.
E quando começaram a caminhar de pé, mais atemorizados
ficaram os europeus... Resolvi que era tempo de voltar à Índia. Já
fazia muito que estava longe de Casturbai e dos meus filhos Harilal e
Manilal. Que pai é este que fica tanto tempo longe? Regressei à
minha Índia em 1896. E lá, o que fiz foi contar das humilhações e
das lutas dos indianos na África do Sul. Na minha volta a natureza
lançou um sinal de advertência. Enfrentamos uma tempestade tão
violenta e tão longa, que todos pensaram que o navio afundaria.
Todos faziam suas preces, esqueciam suas diferenças, e oravam a
um único Deus - muçulmanos, hindus, cristãos... Diante da morte
todos se tornam irmãos... Até mesmo o capitão. Mas a verdadeira
tempestade chegou quando o navio atracou. A população branca
estava enfurecida. Eu já lhes havia causado bastantes problemas no
passado. Depois, a imprensa se havia encarregado de deturpar aquilo
que eu havia dito, na Índia, sobre a África do Sul. E eles pensavam
que eu voltava como um verdadeiro invasor, trazendo comigo
centenas de indianos para continuar a luta. Tudo indicava que eles
estavam decididos a me matar. Um alto funcionário do governo
mandou dizer-me que eu só deveria desembarcar durante a noite, no
escuro. Mas isto era muito vergonhoso e humilhante. Entrar como
um ladrão... Resolvi tomar o risco, com um amigo. Minha mulher e
filhos foram num carro separado, para sua proteção. Eu e Mr.
Laughton fomos a pé. Mal pusemos o pé no cais, alguns jovens me
reconheceram e se puseram a gritar: “Gandhi! Gandhi!” Continuamos
a avançar enquanto a multidão crescia. Até que ficamos
impossibilitados de dar um passo. Os homens ignoraram o meu
amigo e se concentraram em mim. Aí jogaram-me pedras, pedaços
de tijolo, ovos podres. Alguém me arrancou o turbante. Outros
começaram a me dar murros e pontapés. Agarrei-me à grade de
ferro de uma casa, para tomar fôlego. Mas não adiantou. Caíram
sobre mim. Choviam golpes e bofetadas. Foi o acaso que me salvou.
A esposa do chefe de polícia, minha conhecida, passou ali. Ela
avançou, abriu a sua sombrinha como se fosse um escudo, e
colocou-se entre mim e a multidão enlouquecida. Isto tirou-lhes a
coragem. Afinal, sua educação lhes dizia que, se era justo linchar um
coolie, era falta de cavalheirismo ferir uma mulher. Isto, é claro,
aliado ao seu medo da vingança policial...
Teria sido muito mais seguro aceitar as humilhações em
silêncio. Haveria vergonha, mas o corpo correria menos riscos. Mas
eu nunca acreditei que a sobrevivência fosse um valor último. A
vida, para ser bela, deve estar cercada de verdade, de bondade, de
liberdade. Estas são coisas pelas quais vale a pena morrer. Era
porque eu amava a vida, e a amava com muita intensidade, que eu
me arriscava a andar bem próximo da morte... E assim fui vivendo,
próximo da morte, porque gostava de viver.
Capítulo 4
Satyagraha
Escrevi uma prece muito simples que sempre fiz pela manhã,
durante minhas orações. Eu a repetia como um voto, promessa que
eu me obrigava a cumprir. É assim:
“Não terei medo de ninguém sobre a terra.
Temerei apenas a Deus.
Não terei má vontade para com ninguém.
Não aceitarei injustiças de ninguém.
Vencerei a mentira pela verdade,
e na minha resistência à mentira
aceitarei qualquer tipo de sofrimento”.
Aí está o meu caminho, resultado de uma longa busca, em
meio às humilhações. Ah! Como o corpo clama por vingança,
depois da afronta. Senti o seu fascínio, quando a cólera brotava
dentro de mim. Mas era nestas horas que eu ouvia as palavras do
Bhagavad-Gita:
“Da perturbação dos sentimentos vem o erro;
do erro a ruína da razão;
da ruína da razão nasce a morte”.
Você se lembra?
A vingança é doce por um momento, mas o seu fim é amargo.
Acontece que eu desejava a vida.
Quanto tempo se leva para se cortar uma árvore? Uns poucos
minutos e tudo está terminado. Mas, para se sentar à sombra da
árvore que se está plantando, muito tempo terá de passar. Terá de
haver uma longa espera, e paciência. É sempre assim. Os caminhos
da morte são mais rápidos. Por eles andam os que têm pressa. Já os
caminhos da vida são vagarosos. É preciso caminhar na esperança...
Matar o inimigo é muito fácil. Mas transformá-lo num amigo é coisa
difícil e incerta, que requer muita coragem. Posso, pela intimidação,
obrigar que os outros me deixem andar na mesma calçada, viajar no
mesmo trem, hospedar-me no mesmo hotel. Mas ela nada pode
fazer com os olhos. Lá ficam eles, duros e maus, cheios de ódio, à
espreita, na emboscada, aguardando o momento da vingança. Eu
não queria vitórias como esta, que mistura o ódio ao ar que se
respira. Daí a minha prece.
Procurei muito. Desejava encontrar o caminho da verdade. Fui
em busca de outros que tivessem tido luta que se parecesse com a
minha. Escutei, para ver se ouviria vozes que confirmassem aquilo
que ouvia dentro de mim. Não me esquecia nunca de Raichan. Era
um poeta a quem aprendi a amar. Sua pureza, sua transparência, seu
desejo de ver Deus face a face me vinham sempre à memória. Quase
o chamei de guru, meu guia. Como gostaria de me parecer com ele!
Depois Tolstoi e Ruskin, em quem encontrei eco para meus ideais
de vida simples, próxima da terra, atenta à voz interior, resistente às
intromissões do Estado. E descobri, na leitura do Novo
Testamento, as palavras de Jesus: “Bem-aventurados os mansos”, “Se
alguém te ferir na face direita, oferece-lhe também a outra”, “Não acumuleis
tesouros na terra, porque onde estiver o vosso tesouro, aí também estará o vosso
coração”, “Não resistais ao que é mau”...
Um caminho foi se mostrando.
Não poderíamos fazer uso da violência. Isto trairia nossas
convicções mais profundas. Acreditávamos que toda a vida é
sagrada, porque tudo o que vive participa de Deus. E se até mesmo
o mais insignificante grilo, no seu cricri rítmico, é um pulsar da
divindade, não teríamos nós, com muito mais razão, de ter respeito
igual pelos nossos inimigos?
Teríamos de marchar de mãos vazias, indefesos.
Muitos nos consideravam loucos e fanáticos. Caminhávamos
no sentido contrário de tudo e de todos. E, num mundo de
fugitivos, aqueles que caminham na direção inversa parecem estar
fugindo...
Foi isto que o Ocidente nos ensinou: que a violência é eficaz.
E nos ensinou também que as pessoas são coisas brutas, selvagens,
insensíveis à verdade, feras que só escondem suas garras ante a
ameaça da dor, e que só se aliam umas às outras quando concordam
nos mesmos desejos baixos, como o preconceito e a ganância. Não
é precisamente esta a lição dos cassetetes dos policiais e das armas
dos exércitos? Não crêem que os homens sejam belos e bons. E o
mais triste é que seus gestos de violência acabam por trazer à tona
os sentimentos violentos que se escondem neles e em suas vítimas.
Gestos de morte invocam a morte.
Acontece que eu creio em Deus. Deus é vida, generosa e
mansa, Ahimsa, presente em tudo que vive. Teríamos de andar em
sentido contrário. Confiar, quando todos desconfiavam.
Olhar para os fragmentos de bondade, quando todos olhavam
para as evidências da maldade. Este caminho que buscávamos,
alguns o apelidaram de “resistência passiva”.
Mas nada estava mais longe do nosso espírito que a idéia de
passividade. Será que o rio, por não revidar, é passivo? Coisa
estranha: não dispúnhamos de nem uma só palavra para exprimir
nossa busca. Até que uma nova palavra foi inventada por um de
nós: saíyagraha. Ela é composta de duas outras: saí, que significa
“verdade”, e agraha, que quer dizer “firmeza”. “É isso aí”, todos
dissemos. Só queríamos ser obstinadamente firmes na verdade que a
voz interior nos segredava. E se me pedissem para contar, com uma
só palavra, minha vida na África do Sul, seria isto que eu diria:
Satyagraha.
Sei que estão impacientes. Falei demais. E vocês querem ver
estas coisas sobre que falei. É muito simples. Tudo começa no trato
com os indivíduos. Prometi que não teria má vontade para com
ninguém. É que eu estava convencido de que os indivíduos, mesmo
os que nos agrediam, eram inocentes. Eles eram vítimas igualmente
do medo, dos preconceitos que lhes haviam sido incutidos, da
ansiedade pela riqueza. Você já notou como as pessoas ficam
irracionais, no meio da multidão enraivecida? Viram verdadeiras
feras. Mas, quando estão sozinhas, elas são capazes de sentimentos
ternos e chegam a brincar com os velhos e as crianças. Enganamonos
quando confundimos as pessoas com os seus atos. Ninguém é
idêntico àquilo que faz. É só isso que nos permite odiar o pecado e
amar o pecador. Meu pai, chorando, com a minha confissão nas
mãos. Como ele deve ter odiado as coisas indignas que fiz. Mas ele
me amou como nunca... Ele compreendia que eu não era o roubo
que eu havia cometido... Logo depois que a multidão tentou me
matar, ao desembarcar do navio, o secretário de Estado britânico,
informado do ocorrido, determinou de Londres que as autoridades
de Natal processassem os atacantes. Para isto seria necessário que eu
apresentasse uma queixa formal. E isto me teria sido fácil porque
conhecia muitos deles. Mas eu me recusei a aprovar tal medida.
Poderia triunfar e humilhá-los. Mas este não era o meu desejo.
Queria que eles compreendessem que em nós há sentimentos
generosos. Nada fiz. Nada fiz? Claro que fiz. Um gesto que disse
algo... Disse que eles eram diferentes do seu ato vil.
O clima estava tenso. O governo tinha medo, e também a
população branca. Sua situação era difícil. Precisavam do nosso
trabalho, porque isto os enriquecia. Mas detestavam nossa presença.
Foi por isso que sempre nos tentaram manter a distância,
segregados, agachados de medo...
Quando os indianos começaram a se levantar, o seu medo
aumentou. E pensaram então que o remédio para isso seria
aumentar o terror. Para que nos agachássemos de novo.
Os mais pobres, entre os indianos, eram aqueles que vinham
trabalhar sob contrato, por um período de tempo definido.
Terminado o contrato, teriam de voltar. Acontece que com
freqüência eles deitavam raízes na nova terra. Voltar para a Índia,
para começar tudo de novo, da estaca zero, seria muito penoso. E
iam ficando...
O governo resolveu então acabar com esta presença
incômoda. Decretou que os que ficassem teriam de pagar um
pesado imposto, impossível para os pobres. Incapazes de pagar,
teriam de deixar o país.
Depois foi a lei que exigia que todos os homens, mulheres e
crianças com mais de oito anos de idade, indianos, fossem fichados,
impressões digitais tomadas, para controle oficial. Quem não se
submetesse seria multado, preso ou deportado.
Também não podíamos viajar como os brancos. Ficávamos
confinados às províncias onde vivíamos. Cruzar a fronteira da
província do Transvaal era crime que terminava na prisão.
E, por fim, a humilhação desnecessária, a mais indigna de
todas. Foi decretado que somente seriam válidos os casamentos
cristãos. Casturbai, horrorizada, viu-se reduzida à condição de
concubina. E, com ela, todas as esposas indianas, muçulmanas e
parses.
A mão do opressor nos apertava. Já não agüentávamos tanta
humilhação. Fizemos um comício no Teatro Imperial de
Johannesburg. Éramos cerca de 3 mil, havia um clima de vingança
no ar. Todos concordamos em que seria preferível morrer a permitir
que o governo continuasse a nos aviltar daquela maneira. Diríamos a
nossa verdade.
Não temeríamos ninguém e não aceitaríamos injustiça de
ninguém.
O que fazer? Dizer não à lei que nos humilhava. Todos
desobedeceríamos à lei do registro compulsório. Isto parece
estranho? As leis que exprimem a vontade dos fortes, terão elas, por
acaso, o direito de permanecer? Para que a lei seja legítima, é
necessário que receba a aprovação da voz interior. E em todos nós
havia um “não” unãonime.
Lembro-me de outra ocasião. A peste negra estourara numa
das minas de ouro. Ali quase todos os trabalhadores eram negros.
Dos poucos indianos, 23 voltaram para suas casas, doentes, para
morrer. Não havia isolamento. Se ficassem com suas famílias, a
epidemia se espalharia. Foi então que Madanjit, meu companheiro,
ousou quebrar a lei. Encontrou uma casa vazia, arrebentou a
fechadura, apossou-se dela e a transformou numa enfermaria.
Quando a morte está rondando, os direitos de propriedade perdem
o seu sentido. A lei tinha de ser quebrada. Mas agora não mais
lidávamos com a peste negra. A peste era outra, doença do espírito.
Quebramos a lei. Não tivemos medo de ninguém. Fui preso.
As autoridades pensaram que isso enfraqueceria o nosso ânimo. Ao
contrário. A prisão é bela quando se luta pela verdade. Lembrei-me
das palavras do Novo Testamento: “Bem-aventurados os perseguidos por
causa da justiça...”. Nada se alterou com a minha prisão. O governo
resolveu então mudar de tática. Levaram-me, em roupa de
presidiário, à presença do general Smuts. Ele me prometeu que a lei
que humilhava seria revogada se os indianos se registrassem
voluntariamente, apenas para cumprir uma necessidade
administrativa. Achei que isto seria viável. Livremente, sem coação,
estaríamos prontos a cooperar.
Fui solto. Para mim, adepto da satyagraha, era importante
demonstrar confiança na palavra do adversário. Para que ele
soubesse, por este gesto, que eu acreditava que havia coisas boas na
sua pessoa. Por exemplo, que sua palavra era honrada. Era preciso
que se formasse um clima amigo, laços de intimidade e de clara
honestidade.
E cabia a mim fazer o primeiro gesto... Mas, e se ele não
cumprir a palavra? E se isto for apenas um ardil? Preferi correr o
risco. E comigo muitos irmãos que em nós confiavam. Registramonos.
E fomos enganados. O general não cumpriu a sua palavra. E
assim como eu fizera o gesto de confiança, era agora compelido a
cumprir o que a verdade me determinava. Juntamente com mais 2
mil indianos jogamos os nossos certificados de registro dentro de
um caldeirão de parafina fervente, num ato público de protesto. Era
isto que fazíamos com as leis injustas do governo.
A força da lei injusta está em que ela amedronta.
Amedrontados, os homens se separam, cada um por si, tentando a
sobrevivência. E separados eles são subjugados.
Mas quando os homens, movidos pela voz da verdade e pela
pureza do coração, se dão as mãos, a injustiça perece. Resolvemos,
uma vez mais, colocar os nossos corpos justo ali, onde o opressor
era mais violento. Haviam nos proibido passar a fronteira para o
Transvaal. Praticaríamos o ato interditado. Um após o outro, da
mesma forma como aconteceria mais tarde, nas colinas de Darsana,
fomos para a fronteira. Pacificamente. Sabendo que seríamos presos.
Com eles, o meu filho mais velho, Harilal. E eu. Pela verdade,
aceitaríamos qualquer tipo de sofrimento. Três meses de prisão. Para
que eles soubessem que éramos mansos e não precisavam temernos.
E que éramos duros e teimosos e não nos curvaríamos pelo
medo. Alguns receberam oito sentenças, porque bastava que
terminassem uma pena, para que de novo desafiassem a lei...
O tempo passou. A luta continuou. Juntaram-se as mulheres.
As da nossa província, Natal, foram presas. No Transvaal,
entretanto, fizeram outra coisa. Dirigiram-se para as minas de carvão
e sublevaram os mineiros indianos. Entraram em greve. Quando o
patrão humilha o corpo do seu empregado, é justo que ele se recuse
a cooperar.
Não se trata de violência. Nem um só gesto que ferisse, que
machucasse... Apenas a mansa recusa de emprestar o próprio corpo
para a perpetuação da injustiça. Os patrões contra-atacaram.
Cortaram a água e a luz das casas da companhia, onde moravam os
mineiros. Ali, estavam totalmente vulneráveis. Armamos um
acampamento ao ar livre, cerca de 5 mil indianos. Mas o que fazer
para alimentar tal multidão? Os patrões podiam matar-nos de fome.
Resolvemos todos quebrar mais uma vez a lei que proibia passar a
fronteira. Seríamos todos presos. Teríamos, assim, casa, água e
comida. Estranho que a punição da lei possa, às vezes, ser mais
suave que o ódio dos patrões. O governo, percebendo a manobra,
não prendeu os infratores... Resolvemos então empreender uma
longa caminhada com este “exército de paz”, até a fazenda Tolstoi,
lugar que, desde o início da luta, havíamos preparado como abrigo
para os familiares daqueles que estivessem nas prisões. Seriam 240
quilômetros para percorrer em oito dias: homens, mulheres,
crianças.
Fui preso na primeira noite, e posto em liberdade. Preso na
segunda noite, e libertado de novo. Preso na quarta noite. E fiquei.
Mas a marcha continuou. A meio caminho a polícia cercou os
caminhantes e os embarcou à força em trens já preparados, que os
conduziriam de novo às minas, onde ficaram encerrados em
verdadeiros campos de concentração, cercados de arame farpado e
vigiados por guardas armados. Mas ainda assim eles se recusaram a
cooperar com a injustiça. Não desceram às minas. Eram mais de 50
mil em greve, sem falar nos que estavam presos. Sem saber o que
fazer, consciente de que as ameaças e o medo não mais
funcionavam, o governo me libertou e libertou meus companheiros
de luta, Polak e Kallenbach. Esperavam, talvez, que isto acalmasse
os ânimos. Ao mesmo tempo, a fim de apaziguar a indignação de
Londres, o centro do Império, nomeou-se uma comissão
encarregada de apurar as queixas dos indianos. Só que nenhum de
nós, vítimas, se fazia representar. Pedi que a comissão fosse
aumentada, a fim de que houvesse justiça. Mas antevi um novo e
longo período de lutas. Foi então que o meu coração me compeliu a
um novo gesto. Até então me vestira como respeitável cidadão do
mundo ocidental. Numa reunião que tivemos, uma multidão,
compareci vestido com uma blusa de mulher e um lençol enrolado
em meu corpo. Era preciso que nos separássemos dos opressores
nos mínimos detalhes. Nunca mais usei roupas ocidentais. Que eles
soubessem que éramos nós mesmos e que assim desejávamos
permanecer. E planejamos então uma nova marcha, uma nova
quebra da lei, para que fôssemos de novo jogados na prisão.
Foi aí que aconteceu um acidente, coisa não planejada, que
mudou o rumo de tudo. Com a marcha já organizada, os
empregados brancos de todas as estradas de ferro se declararam em
greve. Qualquer político teria sorrido ante golpe tão feliz da sorte.
Dois exércitos são sempre mais fortes que um. O inimigo seria
quebrado ao meio. Mas a Satyagraha me disse coisas diferentes. Que
não seria justo valer-nos da fraqueza do oponente. Não desejávamos
derrotá-lo e humilha-lo. Queríamos que ele sentisse a justiça da
nossa causa e aprendesse a respeitar-nos como seres humanos.
Cancelei a marcha, para espanto de todos... Mas foi justamente isto
que mudou tudo. Sentiram que havia grandeza e bondade no
coração dos indianos, mesmo para com aqueles que os humilhava. E
foi então que o governo me convidou para uma conferência.
Não conseguimos tudo o que desejávamos. Mas os impostos
que pesavam sobre os trabalhadores indianos que não haviam
regressado à Índia ao final do seu contrato foram revogados. Nossos
casamentos foram reconhecidos, em pé de igualdade com os
cristãos. E, o que é mais importante, já não andávamos agachados e
humilhados. Eles nos viam com novos olhos. Nós nos víamos com
novos olhos.
Poderão dizer que os caminhos que escolhemos são lentos, os
frutos tardam e quando amadurecem são poucos. Dirão que o
mundo não é Satyagraha, que a realidade é outra...
Eu só posso responder: Se assim não for, valerá a pena viver?
Quem poderá ter paz de espírito num mundo em que a violência
tem sempre a última palavra? Creio em Deus. E isto me garante que
não pode existir nenhum desejo do coração que, sendo puro em sua
impaciência, não venha, um dia, a ser atendido. Tenho paciência.
Esperarei por esse dia...
Capítulo 5
Um colar
De repente meus pensamentos ficaram confusos. Lembrei-me
de um sonho que me deu grande ansiedade e me fez acordar com o
coração batendo. Só me tranqüilizei quando ouvi o ressonar de
Casturbai... Sonhei que eu estava voltando de Londres. Era o único
no navio. Alguém anunciou que havíamos chegado à Índia. Olhei e
vi um cais totalmente vazio, se não fosse uma única pessoa: minha
mãe. Ela me acenou com um sorriso muito meigo. Desci os degraus
que iam do navio até o cais. Lembro-me de que eram sete. Fui então
até minha mãe, tomei a corrente de ouro do meu relógio e lhe dei.
Tome - eu disse. - “É um presente, para ser usado como um colar.” Então
perguntei por Casturbai e Harilal. Ela ficou muito séria e respondeu:
- Então, seu irmão não lhe contou? Eles estão viajando...
Despertei nesse ponto, angustiado.
Que eu me lembre, nunca dei colar algum à minha mãe. Ao
contrário, foi ela que me deu um, o colar vichnuíta, feito de tulasi, o
manjericão. Manjericão é planta perfumada e sagrada que se guarda
em casa. Suas folhas são usadas nas oferendas rituais, e com a
madeira do seu caule se fazem colares. Nunca me separei dele,
especialmente depois da sua morte. Lembro-me de que este colar foi
motivo de uma delicada discussão com um cristão, Mr. Coates, que
queria me converter a todo custo. Viu o colar no meu pescoço e
tomou-o logo como sinal de crendice.
- Essa espécie de superstição não lhe fica bem. Vamos! Deixe
que eu o destrua...
- De forma alguma - respondi. - Este colar foi minha mãe que
me deu, e ele é sagrado.
- Mas você acredita nele?
- Não compreendo o seu sentido misterioso. Não acredito
que, se não o usar, alguma desgraça me aconteça. Mas não posso,
sem boas razões, desprezar um colar que me foi posto no pescoço
por minha mãe, como um sinal de ternura e na esperança de que ele
me traria felicidade. Quando ele ficar velho, a linha arrebentar e a
madeira acabar, nada colocarei em seu lugar. Nenhum ornamento
encobrirá a ausência daquilo que minha mãe me deu. Nada o
substituirá. Mas como poderia eu deliberadamente destruí-lo, o colar
que é testemunho dos bons desejos de minha mãe, que me
acompanharam mesmo depois de sua morte?
Colar de tulasi... Lembro-me de outra coisa, memória de
juventude. Meu pai usava um no dia de sua morte. Eu estava no
meu quarto, com Casturbai. Já lhes contei sobre a minha vergonha.
Quando ele percebeu que o fim se aproximava rapidamente, pediu
pena e papel, por meio de um gesto, e escreveu para o meu tio:
“- Esteja preparado para os últimos ritos”.
Depois, arrancou do braço o amuleto e do seu pescoço o colar
de manjericão, jogando-os para longe. Em nossa religião, tudo que
toca um morto fica impuro, e deve ser dado àquele que oficia os
rituais fúnebres, na cerimônia da cremação do corpo. Meu pai queria
que nós herdássemos o seu amuleto e o seu colar. Pensou em nós,
no seu último momento. Mas eu estava pensando em prazer...
Ah! Colar que me faz lembrar o amor de minha mãe para
comigo e a minha ausência, na morte de meu pai. Sinto-me culpado.
Eu nunca mais poderia encarnar a lealdade de Shravana e
Harischandra, que me fizera chorar tantas vezes, quando menino.
Já ia me esquecendo. O sonho fez meus pensamentos voarem
por memórias que me pareciam enterradas. Vou retomar o relato...
Coisa curiosa foi a noite em que tive o sonho. Durante o dia tive
uma penosa experiência com Casturbai.
Era o momento da despedida. Preparávamo-nos para voltar à
Índia. Nossos amigos, que ficavam na África do Sul, resolveram
demonstrar o seu carinho. Encheram-nos de presentes. Entre eles,
havia jóias, peças de prata, ouro e mesmo brilhantes. E um colar de
ouro, especialmente para minha mulher.
Acontece que eu não queria nada daquilo. Achava que aquelas
coisas não combinavam com o estilo de vida pobre e despojado que
eu havia adotado. Eu queria dá-los para a causa por que lutara
durante tanto tempo. Casturbai se entristeceu.
- Sei que você não precisa de jóias - disse ela. - E nossos filhos
também não. Eles já aprenderam a aceitar as suas opiniões.
Compreendo também que você possa ter boas razões para não
querer que eu as use. Mas eu gostaria de, um dia, poder dá-las de
presente às minhas noras. Elas ficariam felizes. E quem sabe o que
nos espera amanhã? Não, eu não quero que você dê estas jóias.
Quero ficar com elas.
Mas eu já me havia decidido. Tivemos então uma longa
discussão em que ela não pôde esconder a sua amargura.
- Tenho sofrido, e dia e noite o tenho servido, como se fosse
uma escrava. Fui forçada a aceitar coisas e pessoas que me eram
desagradáveis. Será que as lágrimas de tristeza que derramei por sua
causa não foram suficientes? Não bastou eu me haver reduzido à
condição de criada de todos?
Casturbai sabia muito bem o que ela estava dizendo. Ela me
recriminava por humilhação antiga que lhe impusera. Mas eu estava
irredutível. Doei todas as jóias para um fundo que deveria ser usado
em benefício da comunidade dos trabalhadores indianos que
ficavam.
Não é curioso isto? Que eu tenha sonhado justamente naquela
noite... De dia neguei um colar de ouro a Casturbai. À noite meus
sonhos me fizeram dar um colar de ouro à minha mãe. E no sonho
minha mulher e meu filho não estavam...
“- Então, seu irmão não lhe contou? Eles estão viajando...”
É verdade que meu irmão deixara de me contar algo. Para me
poupar sofrimentos, não me informara da morte de minha mãe.
Vocês já sabem disso. Mas o sonho invertia tudo, mudava os fatos.
Minha mãe aparecia viva, e o meu irmão, como o fizera antes,
continuava a deixar de me contar algo. Só que não era mais com a
minha mãe. Era sobre a viagem da minha mulher e do meu filho...
Foi então que eu acordei com grande angústia.
Tenho a impressão de que há muitas coisas que não vejo com
clareza. Não compreendo bem os sentimentos de Casturbai e dos
meus filhos, Harilal em particular. Mas é necessário começar das
raízes. O casamento, por exemplo...
Sempre achei um crime aquilo que se faz com crianças em
meu país, casando-as antes que elas saibam o que estão fazendo. Isto
é especialmente penoso para a mulher: ela permanece ignorante, e é
o marido, praticamente, o único a ter uma oportunidade de
educação. Ficam então separados por um abismo, moram em
mundos diferentes.
E o marido transforma-se no mestre da esposa. A mulher não
tem escolhas. Sua religião a obriga a uma obediência total. O
marido, por sua vez, pensa ser o dono da sua esposa, que deve
agradá-lo e adulá-lo o tempo todo.
Quando nos mudamos para a África do Sul, eu tive de pensar
em tudo: a roupa que lhes seria mais adequada em sua nova terra, o
regime alimentar que deveriam seguir, as maneiras que seriam
próprias no novo ambiente. Naquela época eu ainda tinha certos
ideais europeus. Obriguei-os, portanto, a usar sapatos. Foi um
sofrimento.
Os sapatos apertavam, faziam calos e bolhas, as meias ficavam
ensopadas de suor e o resultado era que os dedos ficavam em carne
viva.
Impus sapatos apertados à minha família. Às vezes me
pergunto, em silêncio, se eles não me sentiram como se eu fosse um
sapato apertado... Harilal, por exemplo, nunca me perdoou. Ele me
recriminava e eu o recriminava. Seus traços de caráter me pareciam
deploráveis. E ele me acusava... Achava que, com os meus dons,
poderia ter seguido uma carreira política, sem trair meus ideais de
servir aos pobres. Não fiz isto e, além do mais, arrastei-os por
caminhos que não haviam sido uma escolha sua. Eles nunca tiveram
uma educação normal, como todos os demais meninos. Eu, ao
contrário, havia tido as melhores oportunidades. Vivi e me formei
na Inglaterra.
Por que razão deveriam eles ter-me só a mim como seu
professor, nas horas vagas, as lições sendo dadas durante as minhas
caminhadas? Quando Harilal me acusava, eu tinha a impressão
nítida de ver nos seus olhos os olhos de sua mãe. Como se eles
fossem cúmplices. Mas o sonho me perguntou se eu teria o direito
de me queixar...
Porque lá parece que eu sou cúmplice de minha mãe.
Casturbai nunca traiu o ideal da esposa hindu. Foi uma fiel
companheira, andando nas minhas pegadas. Mas eu percebia no seu
rosto uma queixa silenciosa. Como se ela estivesse dizendo que as
coisas poderiam ser mais fáceis se eu fosse menos teimoso, se
pensasse mais na família...
Eu lhes disse de uma humilhação antiga de que ela não se
esqueceu. Vou lhes contar. Minha casa, na África do Sul, era uma
verdadeira pensão. Lá moravam os empregados do meu escritório.
Entre eles havia um descendente de uma família pária, de intocáveis.
No Ocidente não se entende o que seja isto: ser um intocável.
Eles constituem um grupo de pessoas, na Índia, que a sociedade
tradicionalmente segregou e estigmatizou como seres imundos, mais
repelentes que portadores de moléstias contagiosas. Até a sua
sombra causa nojo e é por isso que devem ficar longe de todos, não
lhes sendo permitido nem mesmo se valer das mesmas fontes de
água que os outros usam. Se eles as usassem, as águas já não se
prestariam para ser bebidas.
Isto sempre me horrorizou. Temos caridade para com um
pequeno mosquito, mas tratamos um irmão desta forma indigna.
Por isso eu havia me decidido a lutar contra esta nódoa. Aquele
intocável que morava em minha casa era, para mim, um irmão como
todos os outros.
Mas Casturbai, pobrezinha, não podia entender isso. Ela fora
educada de outra maneira. Não podia evitar o nojo. Acontece que
não havia privadas em nossa casa. Os quartos eram providos com
penicos que tinham de ser esvaziados e lavados diariamente. Eu não
queria que os empregados fizessem serviço tão humilde. Por isso,
Casturbai e eu nos encarregávamos da tarefa. Ela cuidava de boa
vontade dos penicos de todos, mas aquele que era usado pelo
intocável causava-lhe uma repulsa insuportável.
Achava horrível que eu o fizesse e não concordava, ela mesma,
em fazê-lo. Lembro-me dela ainda hoje, a reprovação nos lábios, os
olhos inflamados de cólera, as faces cobertas de lágrimas, pronta a
descer a escada, com aquilo na mão. Mas tal esforço não me bastava.
Eu queria que ela se desincumbisse dessa missão com alegria.
Levantei a voz:
- Não tolerarei essa espécie de estupidez em minha casa! Ela
respondeu, ferida:
- Guarde essa casa para você, e deixe-me ir!
Perdi o sangue-frio e o amor. Segurei-a pelo pulso, arrastei-a
até a grade do portão, e fiz menção de abri-lo, para pô-la fora. As
lágrimas rolaram em suas faces:
- Então, você não se envergonha? Como pode descontrolar-se
a esse ponto? Para onde quer que eu vá? Não tenho pais nem
parentes aqui para receber-me. Pelo fato de ser sua mulher, pensa
que devo suportar que me faça sofrer desse jeito? Contenha-se, por
amor de Deus, e feche esse portão! Que ninguém nos veja
representando esta cena!
Envergonhei-me. Fechei o portão.
Tudo teria sido evitado se as crianças inocentes não tivessem
sido levadas a dar os sete passos irreversíveis. Sinto que uma pessoa
que deseja dedicar-se exclusivamente aos pobres, como eu, não
deveria nunca ter-se casado. Não é isto que diz o Novo Testamento,
livro dos cristãos? Que é necessário deixar pai, mãe, esposa, filhos?
Eu só compreendi isso com clareza quando era um
enfermeiro, em meio a uma guerra suja, dos ingleses contra os
pobres zulus. Lá, naquela solidão, percebi a incompatibilidade das
duas coisas. Naquele momento a minha lealdade estava com os
feridos. Eles eram a minha família. Depois, minha família ficou
sendo a Índia. Como poderia, nestas condições, ser um marido e um
pai como as esposas e os filhos desejam? Compreendi a tristeza de
Casturbai, aceitei a mágoa dos meus filhos. Eles tinham razão. Da
rebelião dos zulus regressei à minha casa resolvido a fazer o voto de
brahmacarya, castidade: abster-me, para o resto de minha vida, dos
prazeres do corpo. Talvez eu estivesse, desta forma, tentando
remediar o erro dos sete passos. Talvez tivesse sido melhor que eu
tivesse permanecido apenas como um filho sem nunca tornar-me
um marido. E pensei mesmo que este fosse o segredo do meu
sonho. Andei os sete degraus na direção da minha mãe e pus no seu
pescoço aquilo que minha esposa havia pedido. Só que ela,
Casturbai, e Harilal, meu filho, haviam viajado. Estavam distantes,
longe do meu mundo...
Capítulo 6
Os saquinhos de anil
Quero começar uma outra estória porque a África do Sul já
ficou para trás. Voltei... Só que eu gostaria de brincar enquanto falo.
Você compreenderá por quê. Tingir a água com um pedacinho de
anil. Veja como ela vai lentamente ganhando cor, desenhos
fantásticos, sempre diferentes, que lembram árvores, nuvens,
cenários de sonhos, tudo naquele azul lindo. Como ele é belo!
Minhas lembranças atendem ao seu fascínio e voltam... Há nele algo
de misterioso. Talvez por ser a cor do céu e a cor do mar, o que nos
faz pensar em imensidões desconhecidas e profundezas que
amedrontam. Desde menino eu via o anil sendo vendido nas feiras,
em saquinhos de pano. Era bom ver o nome do meu país ligado a
uma cor tão bonita. Você já deve ter ouvido este nome muitas vezes:
azul índigo. Por acaso lhe passou pela mente que índigo vem de
Índico, e que Índico quer dizer nascido na Índia? Azul da minha
terra, bonita como o céu, misteriosa como o mar.
Os saquinhos de azul faziam parte das minhas memórias doces
sobre o meu país, e neles eu encontrava uma mistura de rebuliços de
feiras com o encanto da cor. Dentro deles só havia coisas boas.
Era assim que eu imaginava a minha Índia, com olhos
românticos e encantados. E eu pensava conhecê-la. Mas Gokale,
político amigo meu, sabia que não era assim. Sabia mais, que eu era
teimoso e que as minhas idéias só mudavam com a experiência. Ele
me pediu então um favor. Que por um ano eu fechasse a minha
boca, me abstivesse de emitir opiniões sobre qualquer coisa, e que
viajasse, de olhos bem abertos, a fim de aprender.
- Após um ano por aqui - disse-me ele - os seus olhos ficarão
diferentes.
É, muito antes de um ano o azul começaria a se tingir com
cores escuras e tristes. Mas eu não devo apressar o relato. O que não
é muito fácil. Talvez eu devesse me esforçar para dizer as coisas,
umas depois das outras, tal como aconteceram. Mas isto só pode
fazer quem não amou, não lutou, não viveu. Na alma as coisas não
se ajuntam por haverem ocorrido próximas, seja no espaço, seja no
tempo. É a parecença que vale... Falo de prisões, e lá vêm elas,
memórias de lugares diferentes, tempos distantes, e se juntam, fios
de um mesmo tapete. Falo de humilhações e me lembro do oficial
britânico que me expulsou, da noite de espera fria na estação de
estrada de ferro, das bofetadas na diligência. Minhas estórias seguem
o tempo da poesia, que é o tempo do amor... É assim que eu vou
contar.
Viajar pela Índia. Iria de terceira classe. Queria estar com os
pobres e humilhados. Não poderia, de forma alguma, resistir à mais
gentil das tentações que sempre me dominaram: o desejo de servir.
A viagem seria diferente. Porque não haveria um destino que me
aguardasse. Meu destino seria a proximidade com os humildes. E foi
isto que me dilacerou. Porque encontrei uma Índia esquecida da sua
dignidade, que não necessitava da presença do opressor para se
envilecer: prisioneira que fazia suas próprias cadeias. Compreendi a
tristeza de Tagore, que vira a Índia de joelhos, revolvendo o lixo
para viver. Eu vi mais: uma Índia que se acostumara com o lixo. E
juntei-me a ele, num lamento que durou o resto da minha vida.
Índia, que fizeste contigo?
Sei que os opressores te humilharam. Mas, nas minhas
fantasias, cheguei a pensar que bastaria abrir as portas da gaiola para
que o pássaro voasse. Mal sabia eu que ele havia se acostumado aos
buracos, e que preferiria os cantos malcheirosos dos charcos à
aventura do céu aberto. O povo está desfigurado, esquecido das
coisas boas que nele há...
Veja os vagões de terceira classe. Os pobres, desprezados
pelos funcionários e tratados como animais. E eles nem mesmo se
dão conta disso. Acomodam-se nos carros imundos e fedorentos,
como se isso fosse normal. Fugiu-lhes a imaginação. Não podem
pensar que as coisas poderiam ser diferentes, se eles quisessem.
Talvez nem mesmo o queiram... Jogam no chão todo tipo de
porcaria, fumam sem parar, mascam tabaco, cospem e escarram no
chão, gritam e dizem palavrões. Grosseiros, sujos, egoístas: mas não
percebem. Acham que seus atos são naturais. Aqueles que vivem em
meio ao fedor acabam por considerá-lo como perfume... Esquecemse
de toda gentileza e se comportam como se fossem brutos. A
experiência que mais me entristeceu foi uma viagem que fiz de
Lahore a Delhi. No lugar da baldeação, o trem já se encontrava
totalmente tomado. Os mais fortes começaram a subir pelas janelas,
abrindo caminho à força... Eu, um metro e cinqüenta e três
centímetros, perplexo e impotente. Um carregador me ajudou, à
custa de uma gorjeta. A noite foi dolorosa e humilhante. A falta de
solidariedade me cortou. Fiquei de pé, agarrado a um banco,
enquanto os outros dormiam. Mas minha posição os incomodava. E
eles queriam que eu me sentasse no chão imundo e abafado.
Lembro-me de outra viagem entre os pobres, no convés de
um navio. O banheiro era repugnante. As privadas não passavam de
buracos fétidos de escoamento. Para usá-las era necessário enfiar os
pés num verdadeiro rio de urina e excrementos, ou então transpô-lo
com um salto. Dirão que estas são preocupações pequenas demais
para alguém que desejava dar à luz uma nação. Enganam-se. Eu
estava à procura da matéria-prima, dos homens e mulheres que
fariam a Índia. O que encontrei foram apenas fragmentos de futuro
em meio aos escombros do presente. Não, não bastaria que os
ingleses se fossem. Seria necessário reencontrar uma dignidade
perdida, que transformaria as pessoas... Isto era a tarefa penosa e
comprida que eu me propunha realizar...
As privadas sempre me impressionaram. Eu tinha a impressão
de que, de alguma forma, naqueles lugares escondidos se revelava
alguma coisa sobre as pessoas. Já lhes contei que nunca me furtei
aos trabalhos mais humildes, relativos às funções mais repulsivas do
corpo humano. Eu e Casturbai lavávamos penicos... Porque sempre
achei que a limpeza e o seu cheiro bom nos fazem mais felizes.
Como é possível sentir a harmonia da vida se o mau cheiro e a
sujeira nos rodeiam?
Minha primeira experiência na Índia se deu durante minha
breve visita, quando vim da África do Sul, para buscar minha
família.
A peste estourara em Bombaim. Alistei-me como voluntário.
Sugeri que seria importante inspecionar as instalações sanitárias, rua
por rua. Os pobres não se opuseram.
Sua humildade nos cativou. Mas a arrogância dos ricos só
podia ser comparada à sujeira de suas privadas: sombrias, fétidas,
infestadas de excrementos e vermes. Daí nos encaminhamos para o
quarteirão dos intocáveis.
- Os senhores me permitiriam examinar suas privadas? - disse
eu.
- Nós... as latrinas...! exclamaram estupefatos. - Não temos
latrinas. Fazemos tudo ao ar livre. Latrinas são para gente
importante, como o senhor...
- Neste caso, têm alguma objeção a que visitemos suas casas?
- Sejam bem-vindos, senhores. Podem visitar tudo.
Foi a alegria. Entre os mais humildes, um pequeno fragmento
do futuro. Tudo era tão limpo por dentro quanto por fora. Eu os
amei. Pensei que nos lugares sagrados seria diferente. Fui a Benares,
santuário às margens do Ganges. Depois dos banhos cerimoniais fui
ao templo. Decepção. Tinha-se de passar por uma ruela escura e
escorregadia. A paz havia fugido daquele lugar. Havia nuvens de
mosquitos e o alvoroço dos mercadores e dos peregrinos era
intolerável. Procurei a Fonte do Conhecimento, em busca de Deus.
Em vão. E o povo emporcalhava o caminho e as margens
esplêndidas do Ganges. Não hesitavam em sujar as águas sagradas
do rio. Satisfaziam suas necessidades na via pública e na beirada do
rio... Teria sido tão fácil afastar-se um pouco, por amor à discrição e
à beleza...
Mas o mais triste não era isto. Se os mais humildes cheiravam
a sujeira, os das classes superiores tinham o cheiro dos ingleses. Não
falavam suas línguas nativas e se trajavam como eu outrora me
trajara, roupas importadas, cuidadosos com a elegância, distantes
dos pobres, que eles não conheciam... Claro, eles nunca teriam
coragem de andar em carros de terceira classe. E, por isso mesmo,
nem sabiam das dores e das aspirações do povo, nem o povo
acreditava naquilo que eles diziam. Será que era isto que eles
desejavam? Uma Índia que se parecesse com a Inglaterra? Tinham
vergonha de sua mãe e procuravam novos amores: as maneiras
modernas, rápidas e ricas do Ocidente. Eu, de minha parte, amava
as nossas coisas: tradições, aldeias, religião... Eles se alegrariam com
a notícia da morte da própria mãe. Mas eu queria que ela ficasse
jovem e bela. Nossos corações estavam em lugares diferentes.
Me restaria esperar com paciência...
Sim, Índia, que é que fizeste contigo mesma? Os teus filhos
humildes estão sozinhos e os teus filhos que se dizem líderes se
envergonham de ti. Nem mesmo reconhecem os seus irmãos...
Rebanho desgarrado, para onde irá?
Champaran é terra do rei Janaka. Quem a visitar nos dias de
hoje a encontrará verde com plantações de mangueiras. Em outros
tempos não era assim. Nossos pobres já não eram donos das terras
em que moravam. Pertenciam aos dominadores, os ingleses, que
lhes permitiam nelas viver e trabalhar, com uma condição: quinze
por cento da superfície seria usada para o cultivo dos indigueiros, de
onde sai o azul, e toda a sua produção teria de ser entregue aos
donos estrangeiros. Confesso que eu nada sabia sobre isso. Como já
disse, os saquinhos que eram vendidos nas feiras só continham
coisas boas, na minha imaginação. Não sabia dos sofrimentos de
milhões de pessoas misturados no azul... Antes eu só via as coisas
por fora. Aos poucos comecei a prestar mais atenção ao seu “lá
dentro” escondido, às dores e alegrias que as fizeram.
Foi um agricultor pobre e sofrido que veio a mim, pedindo
ajuda.
- Por favor, não estamos longe de Champaran. Venha comigo.
Um dia apenas bastará.
Mas eu não podia. Já tinha compromissos. Mas ele não me
deixava, seguindo-me por onde eu ia, manso e insistente. Disse-lhe
que se encontrasse comigo em Calcutá, numa data futura, para
acertarmos a visita. E me esqueci. Quando cheguei a Calcutá, na
casa onde ficaria, lá estava ele, Rajkumar Shukla. Fui vencido.
Acompanhei-o.
E vi. O que acontecera fora o seguinte: a plantação de
indigueiros havia se tornado um mau negócio. A indústria química
alemã havia descoberto uma alternativa sintética, muito mais barata.
Os donos ingleses ordenaram, então, o fim das plantações. Mas,
para compensar a sua perda, aumentaram o aluguel das terras. Os
camponeses se recusaram a pagar. Os proprietários fizeram uso de
violência: espancamentos, ameaças, invasão das casas, roubo de
gado. Com medo, os pobres agricultores acabaram por concordar.
E a miséria era muito grande. Eu só me dispus a escutar.
Caminhadas, viagens em lombo de elefante, para ver, para estar
presente. Eles precisavam saber que alguém os ouvia, que não
estavam abandonados. E foi crescendo uma relação de amor e
confiança entre nós. Foi assim por um ano inteiro. Eu sentia que
minha principal tarefa era libertá-los do medo. Disse-lhes,
tranquilamente, que me preparava para a prisão, e que também eles
deveriam acostumar-se com a idéia. Porque a associação dos
plantadores dava sinais de inquietação. Acusaram-me de ser um
intruso, metendo-me em assuntos que não me diziam respeito.
Respondi que não era intruso e que tinha perfeitamente o direito de
investigar a condição dos camponeses, se eles assim o desejassem.
Neste ponto a polícia interveio. Como sempre, ao lado dos ricos.
Havia uma determinação judicial para que eu deixasse
imediatamente o Champaran. Eu declarei que desobedeceria a essa
ordem. Fui então intimado a comparecer perante o juiz. Compareci.
Milhares de camponeses se ajuntaram, ao redor do tribunal. Sentiase
o medo das autoridades, sem saber o que fazer. Até a polícia
descobriu-se impotente. Ofereci-me para ajudar. Pedi aos
camponeses, meus irmãos, que mantivessem a calma. E no tribunal
resolvi colocar à prova a força da fraqueza. Levantei-me e declareime
culpado de haver deliberadamente transgredido a lei. Disse-lhes
que sempre respeitara as leis. Mas que havia um limite para tal: o
meu sentimento de dever para com os camponeses.
Assim, em nome de uma lei maior, a verdade que morava em
mim, eu quebrava voluntária e conscientemente a lei, disposto a
sofrer a sentença. O tribunal ficou perplexo.
Diante da minha confissão eu teria de ser condenado. Mas as
autoridades sentiam o peso daquela presença de milhares de
camponeses... Eles já não tinham medo. Aprenderam que é possível
ficar de pé perante o opressor. O juiz adiou a sentença, deixando-me
em liberdade. Até que o caso foi encerrado, por ordens superiores.
E os camponeses tiveram seus direitos reconhecidos. Esta
permanência em Champaran foi um dos acontecimentos
inesquecíveis da minha vida, momentos mágicos para mim e para os
camponeses.
Não é exagero, é pura verdade, dizer que durante estas
relações com eles eu me encontrei face a face com Deus, a Ahimsa,
a verdade. E senti que neles se encontrava aquilo que de mais belo e
puro existe na Índia. Seriam os meus irmãos. Com eles, gente
humilde, eu tentaria construir o futuro.
Ali continuou o meu lamento. Como era possível? Tanta
injustiça... Índia, que foi que fizeram contigo? Eu, que sempre amara
e respeitara as leis do Império Britânico, que sempre o vira como
um poder justo e benevolente, via agora o seu lado invisível e
oculto: a crueldade. Será que o poder pode, em alguma situação, ser
bondoso?
Poderão os ricos, algum dia, amar os pobres? Lembro-me das
palavras de Jesus: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha
que um rico entrar nos céus”. A riqueza embota o espírito. Mas meu
desencanto começara muito antes.
Ainda na África do Sul, eu acompanhava as tropas inglesas,
como enfermeiro. Era a guerra contra os zulus. Guerra? Uns pobres
negros, revoltados contra a opressão, perdidos em solidões imensas.
De quando em quando o estampido de um fuzil inglês, e a imagem
de um corpo tombando morto. Foi ali que meu respeito pelo
Império começou a se apagar. Mas agora, à frente dos pobres
camponeses do Champaran, nada mais restava. Não, não vejo nem
árvores, nem nuvens, nem paisagens do sonho nas formas que o
azul anil desenha na água. Vejo o rosto dos oprimidos...
E vi a Índia assim: um imenso país, milhões de pessoas, sob o
peso da opressão e da vergonha. O ressentimento crescendo. As
explosões de violência. A injustiça gerando o ódio como sua
retribuição, a morte gerando a morte. Os dominadores, convencidos
de que mais medo seria necessário para controlar o ódio. A Lei
Rawlatt, que concedeu ao governo poderes ilimitados para prender e
intimidar. A Índia se transformou num imenso caldeirão em
ebulição. Só se falava em matar e morrer. Parece que todos se
haviam esquecido da vida, da mansidão, da bondade. Que coisa!
Havíamos perdido a nossa alma. A Ahimsa já não nos comovia... E
foi neste clima de pavor que aconteceu a brutalidade suprema: o
massacre de Amristar.
É muito irônico porque este nome, Amristar, foi tirado do
tanque sagrado que o seu fundador, Randas, escavara: Amrita Saras,
a fonte da imortalidade. Em breve o jardim da vida seria
transformado em lugar de morte. Vou explicar. Era o ano de 1919.
O general E. H. Dyer, do exército britânico, assumira o comando no
dia 12 de abril. Imediatamente, ele determinou a proibição total de
todos os tipos de comício e de procissão. Acontece que nem todos
ficaram sabendo disso. E estava programada para o dia seguinte, 13,
uma grande concentração em Jalianuala Bag, uma enorme praça
vazia, cercada por casas e muros, verdadeira armadilha, sem ruas em
número suficiente, que servissem de entrada e saída. E as poucas
existentes eram muito estreitas. O general, de automóvel, seguiu
com suas tropas, que incluíam um carro de combate munido de
metralhadora. Segundo seu próprio depoimento, no trajeto ele
tomou a decisão de matar todos, se possível e necessário fosse.
Haviam desobedecido à lei. Que arcassem com as conseqüências. A
Índia aprenderia uma lição da qual nunca mais se esqueceria. Saberia
de novo quem é que tinha o poder nas mãos. O carro blindado não
pôde chegar ao destino. Era largo demais para a viela. Chegando à
praça, o general dispôs vinte e cinco soldados numa pequena
elevação e outros vinte e cinco no lado oposto. Sem uma única
palavra de advertência ao povo, deu a ordem de fogo. O fogo durou
dez minutos. Foram disparadas 1.650 balas; 379 pessoas foram
mortas; 1.137 ficaram feridas.
Eu sei que, com freqüência, o medo e as tensões levam os
homens à loucura, provocando ações militares insanas como essa. Se
o general Dyer tivesse sido julgado como um doente, teria sido
possível até mesmo perdoar o Império. Mas a Câmara dos Lords,
examinando suas ações, considerou-as perfeitamente justificáveis. O
general salvara o domínio britânico...
Índia, que foi que fizeram contigo? Via o medo misturar-se
com o ódio, e o desejo de vingança que parecia, por momentos, ser
a força mais brutal a se mover dentro das pessoas. Ninguém
percebia que o caminho da felicidade e da dignidade era fácil:
poderia ser trilhado até mesmo por uma criança. Bastaria que as
pessoas ouvissem as coisas boas que jaziam nelas adormecidas e se
dispusessem a seguir o caminho da verdade, a Ahimsa. Faltava
alguém que fizesse os gestos mágicos... Eu teria de fazê-los...
Capítulo 7
A caminhada para o mar
Gosto de ver os casulos de borboletas. Lagartas feias que
adormeceram, esperando a mágica metamorfose. De fora olhamos e
tudo parece imóvel e morto. Lá dentro, entretanto, longe dos olhos
e invisível, a vida amadurece vagarosamente. Chegará o momento
em que ela será grande demais para o invólucro que a contém. E ele
se romperá. Não lhe restará outra alternativa, e a borboleta voará
livre, deixando sua antiga prisão... Voar livre, liberdade:
- Swaraj: era assim que a chamávamos em nossa língua. Palavra
que todos nós dizíamos com doçura e esperança. Mas como eram
diferentes as visões que uma mesma palavra produzia.
A maioria pensava que bastaria o evento político da
emancipação, que com ele um mundo novo se iniciaria, e borboletas
sairiam voando de todas as árvores.
Eu sabia que isto não era verdade. Somos como as borboletas:
a liberdade não é um início, mas o ponto final de um longo processo
de gestação. Não é isto que acontece conosco? Quem será o tolo
que pensará que a criança é gerada na hora do parto? A vida
começou, em silêncio, em momento distante do passado. O
nascimento é apenas o vir à luz, o descobrimento, a revelação
daquilo que havia sido plantado e cresceu.
Não haverá parto se a semente não for plantada, muito tempo
antes...
Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e
silenciosas metamorfoses...
Não haverá Swaraj se a Índia livre e bela não crescer antes do
evento político. O meu medo era que ele chegasse e o casulo só
contivesse uma pupa disforme, sem asas, incapaz de voar. Ah! Se
isso acontecesse, a sua liberdade seria a sua morte... O meu medo
era que chegasse o momento do parto sem que a criança estivesse
pronta, e a esperança se transformasse num aborto. Por isso recuseime
a romper o casulo. Preferi fazer os gestos que, eu pensava,
seriam os gestos de vida, gestos que plantariam sementes, que
acordariam uma verdade interior... Não, não queria que o momento
chegasse enquanto eu entoava o lamento. Queria que ele chegasse
invocado pelos cantos de alegria...
Digo isto para que você possa entender a razão de muitas das
coisas que fiz. Os políticos julgavam-me um pouco estranho. Eu
não fazia as coisas que eles previam que eu iria fazer. Todos, ao falar
de liberdade, pensavam naquele momento de rompimento do
casulo, de rompimento da bolsa no ventre da mãe. Mas eu vivia
muito antes, no momento inicial da vida. O que eu tentei fazer, eu
penso, se parecia mais com a magia e as suas esperanças que com a
política e as suas certezas...
Gestos poéticos que despertem nas pessoas as coisas boas que
nelas estão adormecidas... A liberdade só seria colhida se fosse,
antes, plantada.
Mas a violência é mais atraente que a espera. O ódio aos
ingleses estava presente nos cantos das praças, no interior das casas,
nas conversas dos jovens e velhos e até mesmo no silêncio dos
templos. Pensava-se que o sangue traria a liberdade. Pelo menos a
vingança... O sentimento de urgência que agitava a Índia era
ignorado pelas políticas de adiamento que vinham de Londres.
Nosso povo dizia “agora”. Do outro lado do mundo vinha o eco:
“mais tarde...”.
Se alguém não fizesse um gesto de vida, se eu não fizesse um
gesto de vida, a violência armada iria acontecer. Era o ano de 1930.
Tagore, aflito, me perguntou que é que eu tinha reservado para a
Índia, naquele momento. Creio que ele pensou que eu já tivesse
preparado a minha agenda... Mas eu não tinha idéias. O gesto teria
de ser grande.
Teria de conquistar a Índia inteira. Diante dele as pessoas
deveriam sorrir, perder o medo, ter coragem para ficar de pé e
desafiar o dominador... Isto, na mais completa mansidão.
Satyagraha: a verdade teimosa que vai dizendo e fazendo o bem, e a
verdade que nela mora, a despeito da morte que habita o inimigo.
Até que me veio uma idéia. Eu quebraria a Lei do Sal e faria
com que o povo participasse do meu gesto. A Índia inteira
desobedeceria, como eu. A Índia inteira consideraria o seu desejo de
viver mais sagrado que as leis do Estado, e os seus gestos revelariam
a liberdade que já vivia neles.
O povo entenderia o meu gesto sem que eu precisasse dizer
uma única palavra. Mas os dominadores são um pouco mais
estúpidos. É necessário que as coisas lhes sejam ditas com clareza.
Por isto escrevi uma longa carta ao vice-rei. E isto significava dizer
ao Império Britânico aquilo que eu estava sentindo. Meu gesto não
seria nem secreto nem ambíguo. Seria claro para que, mesmo na
minha transgressão deliberada da lei, a honestidade e a verdade
estivessem presentes. Eis algumas das coisas que lhe disse:
“Caro amigo, antes de iniciar meu ato de desobediência, com todos os
riscos que sempre temi enfrentar durante todos estes anos, quero ter a alegria de
me aproximar de vós para buscar uma saída. As minhas convicções me proíbem
que eu faça sofrer qualquer coisa que tenha vida, e muito menos seres humanos,
ainda que eles tenham causado os maiores sofrimentos a mim e aos meus.
Embora considere o domínio britânico uma maldição, não pretendo prejudicar
um único inglês...
“E por que considero o domínio britânico uma maldição? Ele empobreceu
milhares de criaturas, por meio de um sistema de exploração progressiva, bem
como por meio de uma administração militar e civil ruinosamente dispendiosa,
que o país nunca poderá suportar. Ela corroeu os fundamentos da nossa cultura.
E minha impressão é que nunca houve, por parte do Império Britânico,
qualquer intenção de nos conceder liberdade, num futuro imediato”.
Depois eu lhe disse do nosso ideal de uma Índia independente:
tudo haveria de girar em torno dos seus milhões de camponeses. A
arrecadação fiscal seria revista, para que eles tivessem vida e alegria.
O sistema britânico, ao contrário, foi concebido para arrancar
do camponês a última gota de vida que ainda lhe sobra. Não é isto
que acontece com o imposto que incide sobre o sal? O sal é a única
coisa que o pobre deve comer em maior quantidade que o rico, em
virtude do seu esforço físico. Mas a ganância fiscal dos ingleses
tornou o sal um produto de preço extorsivo, pesado demais para os
ombros dos pobres. Os pobres, de maneira idêntica, enriquecem o
Império pelos impostos que são obrigados a pagar, pelos remédios e
pelas bebidas alcoólicas, o que mina tanto sua moral quanto sua
saúde.
Depois atrevi-me a ser um pouco mais direto:
“Tomai o vosso salário como exemplo. Mais de 21.000 rúpias por mês,
7.000 dólares americanos. Vós estais recebendo mais de 700 rúpias por dia
(233 dólares), enquanto a renda média de um indiano é de cerca de dois anás
por dia (4 centavos de dólar)... E o que digo do salário do vice-rei é verdadeiro
para toda a administração.
“Nada, a não ser a não-violência organizada, pode conter a violência
organizada do Império Britânico. E esta não-violência, em palavras que vós
entendeis, mas a que damos o nome de Satyagraha tenacidade na verdade -, será
concretizada na desobediência civil. No décimo primeiro dia deste mês de março,
com os cooperadores da comunidade de pobreza em que vivo, tomarei a iniciativa
de desrespeitar as determinações da Lei do Sal. Estará em vós impedir a
realização desta minha determinação, mandando-me prender. Espero que haja
dezenas de milhares de pessoas prontas, de modo brando e ordeiro, a fazer a
mesma coisa que eu”.
A notícia correu. A mágica começou. Aqueles que respiravam
ódio e vingança pararam um pouco para ver que novo gesto iria
acontecer... Seriam 370 quilômetros a serem percorridos a pé. Sei
que poderia ter feito a viagem de trem, para chegar ao meu destino.
Teria sido mais rápida. Mas não se pode apressar a borboleta... A
vida cresce devagar, a imaginação acorda aos poucos, os
pensamentos necessitam de tempo... Era preciso dar muito tempo
para que as pessoas pudessem ir tecendo, entre elas, suas redes de
esperança, com as palavras. Com isto, as coisas boas iriam saindo lá
de dentro. Meu gesto não era nada, em si. Fraco e impotente. Seu
poder estaria nas mãos que se juntariam. Eu queria iniciar uma
canção de Swaraj e Satyagraha, e esperava que os outros fossem, aos
poucos, juntando suas vozes, até que a Índia inteira cantasse e os
ouvidos dos opressores estourassem de espanto ante tanta
dignidade.
Partimos daquela comunidade de pobres onde vivíamos, o
Ashram. - Caminhamos em nome de Deus! - afirmei, rezando.
Ah! Que poder estranho contém o nome Rama. Quem poderá
contra a verdade e o amor? Lá íamos como um rio, tranqüilo, sem
nunca reagir, simplesmente sendo rio, irresistível...
Vinte e quatro dias, 18 quilômetros por dia. Eu me ri, vendo
meus companheiros:
- Brincadeira de criança!
Eu tinha 61 anos de idade (o que é isto para quem faz planos
de viver cento e vinte?...) e me havia treinado a vida toda para as
caminhadas...
De aldeia em aldeia, na direção do mar. Como o meu coração
se alegrava! De longe já se via o rebuliço, os meninos encarapitados
no alto das árvores, atalaias encarregados de anunciar a chegada dos
guerreiros sem armas.
- Lá vêm eles! Lá vêm eles! - gritavam, despencando-se a seguir
lá de cima para se juntar ao povo, aqui embaixo.
Eu não queria uma Índia muito diferente disto. As pequenas
aldeias, o trabalho da terra, o artesanato, as mãos fazendo suas
próprias roupas, a tranqüilidade boa das pessoas que amam a vida na
sua simplicidade pobre e vivem em paz, uns com os outros e com
Deus... Não queria um novo amor. A mesma Índia, a mesma
cultura, só que livre do ódio de dentro e da opressão de fora.
Tive muito tempo para pensar, enquanto andava. Lembrei-me
daquela noite, no trem, na África do Sul, quando aprendi sobre o
poder dos gestos poéticos. Nunca mais parei... Mas nunca me havia
atrevido a um gesto deste tamanho, desafio ao leão, perante o
mundo, a Índia inteira seguindo, imaginando, rezando... Na direção
do mar...
Primeiro foi o abandono das roupas ocidentais: gesto de
solidariedade aos mineiros mortos na África do Sul. Dali para a
frente minhas roupas conteriam sempre esta memória. Trajar-me
como um ocidental significava aceitar sua cultura. Mas sua cultura,
por bela que fosse, se construíra com muita dor. A mesma coisa
com o leite das vacas... Não lhes contei? Depois... Já lhes disse que
eu aprendi a ver o invisível. Em cada terno de dez libras comprado
numa rua elegante de Londres há miséria de muitos camponeses.
Era isto que me importava. Daí a roupa simples, tecido grosseiro,
feito em casa...
Fazer os panos para as próprias roupas em casa. Muitos me
disseram que isto era tolice. Seria muito mais barato comprar tecidos
feitos industrialmente pelos japoneses.
Sei disto muito bem. Acontece que o que está em jogo aqui
não é o dinheiro, é a própria alma. Nós, pelos séculos passados,
fomos sempre capazes de produzir os tecidos de que
necessitávamos para nos vestir. Em cada casa havia uma roda de
fiar, em cada casa havia um tear. E as mãos sabiam como fazer...
Tínhamos então Swaraj, liberdade, em relação às nossas
próprias roupas. Auto-suficientes. Não precisávamos de ninguém.
Mas aí vieram os ingleses. Eles produziam quantidades enormes de
tecidos, em suas fábricas mecanizadas. E os tecidos tinham de ser
vendidos. Mas para que fossem vendidos teríamos de ter
necessidade de comprar. Foi por isso que nossa cultura foi
impiedosamente quebrada. Fizeram-nos desaprender o que
sabíamos para que fôssemos forçados a trocar o nosso suor pela
mercadoria que faria ricos os estrangeiros. Foi preciso procurar
muito para encontrar alguém, dentre os velhos, que ainda se
lembrasse das artes de fiar e de tecer. E foi com uma alegria imensa
que me tornei um aprendiz de fiador e de tecelão, e isto passou a
fazer parte da minha disciplina diária de viver. Nem mesmo durante
a caminhada interrompi este hábito. Uma hora por dia, dizendo à
Índia que, se quiséssemos, poderíamos recuperar algo que os
dominadores nos haviam roubado. E eu sabia que me haviam
entendido quando, ao passar pelas aldeias e vilas, as pessoas se
sentavam à beira do caminho, com suas redes, fiando, com seus
teares, tecendo. E eu os abençoava, mãos postas, em silêncio,
invocando o nome de Deus.
Caminhávamos sem cessar, na direção do mar. Muitos dos
meus companheiros se cansavam, seus pés e pernas começavam a
doer. Comentei, com bom humor, a delicadeza e fraqueza da
geração nova, a despeito dos seus hábitos alimentares fartos. Eu me
contentava com pouca coisa, algumas frutas me bastavam. As
estradas eram sujas, o sol era quente, o tempo estava seco, havia
poeira. Os camponeses, com sua bondade, regavam o caminho para
que a poeira assentasse e o ar ficasse mais fresco. E as aldeias
pareciam preparadas para uma festa, enfeitadas com bandeiras da
Índia. Eu sentia a borboleta crescendo, vagarosamente. Coisas muito
bonitas estavam acordando dentro da alma e dos corpos dos pobres.
A canção já era cantada em todo lugar. Eu irão caminhava sozinho.
Todos marchávamos para o grande desafio. Quebraríamos a Lei do
Sal...
Outros gestos me vieram à mente. Lavar as privadas, para que
soubessem que eu não me envergonhava de fazer os trabalhos mais
humildes e que a limpeza era valor sagrado.
Falar a minha língua... Poderia alguém imaginar que falar a
própria língua viesse a ser ato de rebeldia? Pois a opressão até isto
nos havia roubado, o orgulho de falar as línguas que haviam passado
de geração a geração, durante milênios. O silêncio da língua é o
silêncio sobre o próprio passado, como se ele estivesse condenado
ao esquecimento. Todos os líderes políticos, em reuniões
importantes e em suas conversas comuns, usavam o inglês, como se
estivessem dizendo: “Vede, somos dignos da liberdade. Vestimo-nos como
vós, europeus, vos vestis. Falamos a língua que vós, europeus, falais. Certamente
pensamos e sentimos como vós. Podeis confiar em nós”.
Os camponeses, a alma da Índia, escutavam com tristeza e
desesperança. Comecei a falar em minha língua em reuniões
públicas, para espanto dos que haviam se expressado em inglês, e
para a alegria dos ouvintes, que assim viam retornar à arena pública
o espírito da sua cultura. Pois não é através da língua que um povo
se descobre?
E até mesmo perante o vice-rei. Numa conferência por ele
convocada, exprimi-me em hindi-hindustani...
E agora, olhando para este fogo que se apaga - a lenha já se
converteu em brasa -, lembro-me de outras fogueiras, quando pedia
que as pessoas, reunidas em comícios, se despissem de suas roupas
estrangeiras, fizessem com elas um grande monte, e transformassem
tudo numa enorme fogueira. Não, não eram as roupas que estavam
sendo queimadas. Era o próprio Império que ardia numa pira
funerária...
Chegamos ao mar. Era o dia 5 de abril. Como já fosse tarde,
passamos a noite rezando. Depois, bem cedo, de manhã, fui até o
mar para agradecer... Aquele mar sempre fora nosso, sempre nos
dera do seu sal generosa e gratuitamente. Fui lá para dizer que
novamente o recebíamos como irmão. Tomaríamos da sua dádiva
diretamente, sem permitir que ela passasse pelas mãos dos
dominadores. Agradeci porque ele nos ajudava a viver. E me
preparei para a grande transgressão.
A Lei do Sal: nós, indianos, éramos proibidos de possuir sal
que não nos tivesse sido vendido pelo monopólio governamental.
Procurei então, nas areias duras, um lugar onde o sol tivesse
libertado o sal. Tomei-o nas minhas mãos, e o mostrei à multidão
que nos seguia. Alguém gritou:
Salve, libertador!
As lágrimas me vieram aos olhos.
Não, não era um punhado de sal... Isto era o que os olhos
viam. Mas milhões de indianos viam outra coisa: um passado em
que as terras, os rios e os mares nos haviam pertencido.
Invocávamos o passado. Pedíamos que ele retornasse. Era isto o que
eu lhes dizia em silêncio:
- Tomem posse daquilo que lhes pertence.
E o milagre aconteceu. Por toda Índia o medo desapareceu. As
pessoas deixaram de temer o Estado, encorajadas pela verdade que
lhes falava mansamente no seu íntimo, a voz de Deus. E o gesto
solitário se transformou em gestos solidários: panelas, bacias,
recipientes de todos os tipos, invocando o sol e o mar como aliados,
o sal sendo produzido por quem o desejasse, num desrespeito claro
às ordens do opressor. O sal era agora o símbolo da Swaraj. O sinal
estava dado. Restava esperar que a borboleta rompesse o casulo.
Capítulo 8
A reverência pela vida
As borboletas fizeram minha imaginação voar... Pensei no seu
fascínio. Acho que é porque elas são metáforas de esperança. A
lagarta deixa de ser, desaparece da vista, oculta-se aos olhos, e
renasce transfigurada. Quem, ao ver uma borboleta, poderia
imaginar que ela fora um dia uma lagarta? Quem, ao ver uma lagarta,
poderia imaginar que dentro dela se abriga uma coisa bela, que
nascerá quando chegar o tempo? É assim que eu penso sobre a vida,
algo que vai transmigrando, migrando por diferentes formas, através
de silêncios que parecem mortes, como o meu corpo agora,
reduzido a cinzas, para aparecer depois... Agora nada mais sou que
uma crisálida dentro de um casulo...
Depois é a beleza do seu jeito de ser. A fragilidade das asas,
que podem se quebrar ao menor golpe. Indefesas, sem ferrão para
se protegerem. E vão, delicadas, quase pedindo desculpas às flores,
por se alimentarem do seu néctar. Sugam com uma carícia terna.
Para mim, imagens de harmonia e mansidão...
Por fim, há tantas... Diferentes tamanhos, a variedade das
cores, as formas e os desenhos mais surpreendentes. Diante do
casulo fica sempre a pergunta daquele que não sabe da vida que está
lá dentro: como é que ela vai ser?
Diante da Índia, crisálida, eu também imaginava, tinha
esperança. Na verdade, minha vida inteira foi um cultivo da
esperança. Não sei por que recusei-me, com uma teimosia que
frequentemente exasperava os outros, a pensar, a sentir e a agir em
obediência aos fatos do presente. Na Inglaterra queriam me obrigar
a abandonar meus hábitos vegetarianos. Lembro-me que o dr.
Mehta, tão amigo, chegou a ser rude comigo:
- Se você fosse meu irmão, há muito o teria mandado de volta
com as suas bagagens. Que vale um voto pronunciado diante de
uma mãe analfabeta e ignorante das condições de vida que o
esperavam aqui? Sua teimosia lhe será totalmente inútil...
Ele queria que eu abandonasse o meu desejo mais puro e me
ajustasse ao mais prático e mais viável. Mas a minha alegria estava
precisamente na fidelidade a algo que estava ausente.
Depois foi na África do Sul. Meus irmãos indianos já haviam
aprendido a conviver com a opressão. Para sobreviver, resignavamse
a ser lagartas. Mas eu acho que este é um preço muito alto para
continuar vivo. Porque a esperança faz parte da vida, e abandoná-la
é o mesmo que aceitar a morte. Por isso tratei de fazer os
movimentos da borboleta, muito embora tudo nos obrigasse a ser
lagartas. O belo é aquilo que podemos ser. E a esperança é nada
mais que a fidelidade a essa possibilidade que dorme silenciosa em
todos...
O que eu esperava para a Índia era aquela esperança que havia
crescido dentro de mim. E é preciso que eu conte qual era ela, para
evitar enganos, antes que eu me vá, cinzas, nas águas do Jumna. É
que houve muitos que não compreenderam. Só viram com os olhos.
O invisível se lhes escapou. O salto de alegria lhes pareceu salto de
revolta, porque não ouviram a música... Registraram o gesto, mas
não entenderam a esperança. E o sentido do gesto se perdeu.
Já lhes contei: eu queria fazer um poema: eu acreditava no
poder mágico das palavras ditas com amor. Como, entretanto, eu
não era poeta, teria de dizer o meu amor com o meu corpo inteiro...
Olho agora para trás e descubro que poema eu não escrevi. A razão?
Eu tinha muito poucas coisas a dizer. Para ser preciso: uma única
coisa.
Cheguei mesmo a pensar que esta era a essência da pureza: ser
consumido integralmente por um único desejo bom. Assim, passei
minha vida inteira dizendo esta única coisa, repetindo a mesma
esperança. Claro, em cada situação a mesma coisa era dita de forma
diferente.
Num momento recusava-me a tomar leite, noutro momento
proclamava um jejum até a morte... Os ocidentais, por não saberem
da minha esperança, achavam que eu era louco.
Maluquices de um faquir seminu. Às vezes, em ataques de
coragem e lucidez política, vinham os gestos mágicos que
levantavam a Índia inteira e faziam o Império Britânico tremer.
Depois vinha um ataque igualmente imprevisível de esquisitice
doentia, que poderia manifestar-se como proteção à vida das cobras,
lavagem de privadas imundas, uso da terra como remédio ou
comparecer perante o rei e a rainha da Inglaterra, para um chá,
vestido com um lençol e calçado com sandálias... É, eles não
entendiam.
Porque não sabiam do segredo: meu único desejo, minha única
esperança, meu único verso. Posso dizê-lo como um mandamento:
- “Amarás a mais insignificante das criaturas como a ti mesmo”.
- “Quem não fizer isto jamais verá a Deus, face a face”.
Sempre amei profundamente a vida. Não, não era apenas a
minha vida. Era a vida de todas as coisas. Olhar para os animais e as
plantas me enchia de alegria. E eu queria cuidar deles como quem
cuida de algo frágil e precioso. Aí o mandamento cristão do amor
me parecia pouco exigente. Pedia apenas amor ao próximo. Os
cristãos entenderam que este “próximo” se referia só às pessoas
(tanto assim que imaginam que somente elas têm uma alma...). Eu,
ao contrário, penso que todas as coisas que vivem são minhas irmãs.
Elas possuem uma alma. Lagartas que um dia serão borboletas...
Esta idéia de que apenas as pessoas têm alma, eu acho, é
responsável tanto por sua crueldade como pelo seu senso sem
limites de importância. Se os animais não têm uma alma, concluímos
que eles são vazios de qualquer valor sagrado. Estão aí só para nos
dar prazer. Estão aí para serem usados por nós. Então, temos
permissão para matar e destruir. Mas não é isto que explica a
devastação e a morte por onde quer que passe o homem europeu
que se chama de civilizado? Eles se definiram como caçadores; os
que vivem a partir da morte. Mas eu queria que fôssemos pastores
da vida...
O nome deste sentimento
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