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Ensaios-->19. MALES ARRAIGADOS -- 15/06/2002 - 05:28 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

“Reservamos o dia para mais um ditado de espírito em vias de regeneração. Sabemos que se trata de irmão idoso, que caminhou muito até chegar aqui, para oferecer sua contribuição.”



Venho por intermédio desses amigos que me serviram de apoio. Tenho noventa e seis anos e jamais estive em condições tão precárias. Não sei bem o que dizer, pois minha cabeça é muito ruim, já que não pude estudar na derradeira existência. Sendo assim, peço permissão para me retirar, pois me sinto muito envergonhado de ser tão velho e de nada poder oferecer de bom ou de grandioso.

Pedem-me que relate as experiências, já que me deram oportunidade de ficar tanto tempo no orbe.

Vocês sabem o que é sofrimento pela velhice? Pois é a pior coisa do mundo. Quando tiverem feito tudo na vida, peçam a Deus para retirá-los do convívio dos irmãos, pois nada de proveito vocês conseguirão só por estarem vivos. Eu mesmo não era útil para ninguém. Ao contrário, precisava da ajuda de todos, tanto que, quando estava há pouco aqui, pensava que o artritismo que me atacara em vida ainda me prendia as articulações e sentia dores verdadeiramente lancinantes.

Agradeço a boa vontade de todos e peço a Deus que os abençoe, já que está na hora
de retirar-me.

Pedem-me para ficar.

Está bem, só que não tenho nada para dizer. Os filhos que carreguei no colo com muito amor e que cuidaram de mim com estima, assim que me viram morrer, alegraram-se muito e fizeram verdadeira festa. Quando ouvi falar dos japoneses, diziam que ficavam alegres, que comiam e bebiam, quando alguém falecia. Estranhei muito, mas foi o que fizeram comigo. Parece que se libertaram de grande peso e eu era magrinho e quase não comia. Assim é a vida. Por isso é que dizem que os velhos ficam crianças: é que vão diminuindo, até parecerem bebês de colo.

Querem saber se, no íntimo, o sentimento era de amor ou de ódio. Mas não sei. O que sei é que pareciam estar bem aliviados dos trabalhos. É claro que não queria viver para sempre, principalmente porque era um tormento para eles, mas que se rissem do velho daquele modo, foi muito constrangedor. Durante bastante tempo, tentei fazê-los crer que estava por perto, mas eles andavam muito depressa e eu quase não podia locomover-me.

Minha mulher partiu bem antes de mim, mas não veio recepcionar-me. Acho que arrumou outro, da mesma forma que fiz. Só que não sei como é que se faz para uma feliz convivência deste lado. Na Terra, foi muito fácil para mim, até o dia em que me chamaram de “velho frouxo”, pois não estava mais conseguindo nada e ainda ficava assanhado, querendo demonstrar que era bom. Isso até os setenta e poucos. Depois me acostumei com a solidão e com a doença.

Mas são histórias bobas. Acho que todo mundo pode contar alguma coisa parecida ou, até, inventar coisa melhor. Eu perdoei a todos os filhos e netos. Perdoei também minha mulher, embora, às vezes, sinta um pouco de saudade.

Os meus pais, perdi muito cedo e não me lembro deles. Acho que a memória vai esvaecendo as figuras que estão na mente, de modo que é burrice querer ficar tão velho. Eu não sabia nada disso e rezava a Deus para me manter vivo. Acho que tinha muito medo de morrer e passar por momentos de aflição, nas garras dos demônios.

É que tenho também bastante sentimento de culpa e não achava justo que minha vida não tivesse tido todas as regalias. Andei fazendo umas coisas erradas, mas não muitas. Era funcionário do governo e fazia como se trabalhasse por conta própria. Como os papéis tinham de passar para o meu visto, se não viessem com o competente “azeite para escorregar”, deixava em cima da mesa ou nem apanhava na prateleira. Era assim que sustentava minha casa e a outra...

Vejam o que me fizeram dizer. Não queria revelar esse lado da vida. Uma das vantagens de se ser velho é que os mais novos não suspeitam de que um dia também se foi jovem e que se podia fazer todas as coisas, igualzinho. Gostava desse respeito, pois era o que me mantinha em boa convivência, jogando baralho, dominó, conversando e bebericando. Era bom enquanto não chegou o artritismo e o sofrimento. Mas, ainda assim, os remédios me punham de bem com a saúde e até podia dar algumas caminhadas.

Ia dizendo que gostava de ser respeitado. Parece que os cabelos brancos e as rugas fazem as pessoas ficarem bem tranqüilas, pois isso lhes dá a sensação da impotência e da falta de agressividade. Bem que tive amigos que se zangavam com as pessoas até bem velhinhos. Aí eram maltratados de propósito. Eu não. Eu fingia que não via as coisas erradas e agradecia muito o que podiam oferecer-me de ajuda. Além do mais, contava casos bem engraçados dos dias da juventude, para disfarçar que estava sem graça pela necessidade de ser ajudado.

Como vêem, o desejo de permanecer velhinho no plano espiritual tinha sua razão de ser. Agora, estou sentindo o corpo reabilitar-se e adquirir forças novas. Será que o tempo no espaço reflui, pois faz mais de trinta anos que aqui estou? Só hoje é que estou reparando que as feições rejuvenesceram.

Dizem-me que tenho sofrido remorsos que não declarei e que tenho pedido a Deus oportunidade de regeneração.

É bem verdade. Não posso negar que, relativamente, a minha ânsia por voltar à vida tem crescido muito. Há algum tempo, descobri que minhas realizações em vida foram muito improdutivas para o desenvolvimento moral. Não fui boa pessoa e tudo o que fiz de errado ensinei a meus filhos, aos poucos, mostrando-lhes as vantagens de tirar proveito das situações, dizendo a origem de cada objeto ou de cada regalia que não poderia ter conseguido com o salário. Esse drama de consciência se despertou quando estava vivo, pois um dos meus filhos foi acusado de suborno e de tentativa de extorsão, indo parar nas barras dos tribunais. Senti que estava muito magoado comigo, embora não me acusasse diretamente de ter sido mau pai.

Foi a partir daí que começou minha agonia, pois já não era capaz de influenciar ninguém. Depois disso, por mais de quarenta anos, procurei conviver com os netos, sem me vangloriar por ter subtraído tanto dinheiro de ninguém nem de ter aproveitado do cargo em benefício próprio. Mas bem podia perceber que eram mal influenciados pelos pais, que lhes diziam para proceder em benefício próprio.

Quando um dos meus filhos se separou da mulher, com mais de vinte anos de casamento, por ter ela descoberto que estava sendo traída, aí mais me compenetrei de que os meus exemplos tinham dado péssimos frutos.

Como é que eu queria que tivessem ficado tristes e condoídos com a minha morte, se lhes dera tanto de que se arrependerem? Eu mais merecia ter ido para o inferno.

Será que não está na hora de deixar este lugar? Aqui me sinto muito bem, mas estou vendo que tudo o que penso vai ficando escrito e não estou em condições de aceitar este papel de escritor. Minha mentalidade está embotada e meus dizeres só demonstram que quem não age certo na vida não pode esperar recompensa alguma depois da morte; mas isso qualquer pessoa pode pensar pela própria cabeça.

Pedem-me para dizer por onde andei depois que me desliguei do corpo.

Pois fui por aí, principalmente pelas repartições públicas, para ver se encontrava os parentes, para pedir-lhes que deixassem de ser corruptos, que não valia a pena. Na verdade, o que fiz foi o contrário, pois, ao encontrar as pessoas aproveitando-se dos cargos para enriquecerem, até que os estimulava ainda mais, pois achava que o governo era injusto em pagar tão mal e exigir tanto. É engraçado que tenha agido assim, quando tão atormentado fui pelo fato de não ter sabido educar os filhos na moral cristã, embora os levasse religiosamente à missa, principalmente quando minha mulher era viva.

Dizem que os velhos vivem de recordações. É interessante que esse hábito se tenha gravado tão fortemente na cabeça, que ainda agora me surpreendi rememorando fatos antigos.

Dizem-me que é saudade do tempo em que era feliz.

Embasbaquei. Não é que é isso mesmo! Será que essa felicidade pode voltar a instalar-se em meu ser? Será que essas recordações são o motivo que dá sustentação à vida dos velhos? Será que os desencarnados podem aproveitar-se deles para amenizarem os sofrimentos? Ou a transformação de saudade em desespero é que se torna o pavor do remorso?

Até aqui me mantive bastante lúcido e não me arrependi verdadeiramente de nada. Estarei despertando para as coisas erradas da vida? Estarei tomando consciência das falhas de julgamento? Deus meu, inspirai estes amigos, para que me consolem e me indiquem o que devo fazer! Deus...


Comentário

O pobre irmão, finalmente, pôde ser levado a considerações de caráter íntimo, em favor das reflexões morais a respeito da personalidade. Enquanto julgava de modo frio e calculado as próprias ações, conseguiu conviver com o erro. Ao converter as intuições em sentimento de culpa, transformou-se a ponto de não se reconhecer perante a turma. Está em transe, assistido pelos componentes do grupo, cujo objetivo era justamente proceder a seu despertar.

Não se impressione o leitor com este desmaio no plano etéreo. Aqui agimos bem próximos das fórmulas dos encarnados, principalmente se pouco evoluídos espiritualmente. O que importa considerar nas atividades de hoje é a manifestação do velho senhor, a trazer preciosas pistas a respeito do que ocorre na senectude e, principalmente, no que concerne às reações do espírito após o desenlace. É de se esperar que a purgação das doenças possa liberar a entidade dos tropeços, o que seria o inferno em vida. Isso é verdadeiro para quem confrange o coração e aceita a dor com resignação. Mas os que se sentem injustiçados, os que se revoltam, os que mantêm o mesmo padrão vibratório inferior dos tempos anteriores, esses não se adiantam e não conseguem imprimir à mente a tendência de superação da pressão carnal. Sendo assim, a velhice nem sempre significa época de grandiosidade moral e, para esses infelizes, a morte só lhes dá continuidade à infrutífera peregrinação.

Se aos velhos cabe dar lições, e este não foi modelo de virtudes, saibamos extrair de seu relato o exemplo vivo do que não devemos fazer. Infelizmente, aprende o homem, a maior parte das vezes, levando fortes safanões da vida. Esperamos ter contribuído para evitar-lhes mais um.

Fiquemos todos nas mãos de Deus!

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