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Ensaios-->12. TEATRO DA VIDA -- 08/06/2002 - 10:24 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Um grito de horror foi o que soltei quando me vi despedida do mundo, sem que pudesse nada fazer para impedir. Foi um tiro certeiro na cabeça. Fiquei tonta por algum tempo, como se tudo se embaralhasse, mas, de repente, eis que a luz espiritual se fez, de modo que readquiri o domínio dos pensamentos e das funções orgânicas. Foi aí que compreendi o que me havia feito e me horrorizei, sem imaginar que estava sofrendo pelos martírios de que impregnei a vida dos outros e não pelo meu próprio tormento de infelicidade.

Era como se não existisse possibilidade de retorno e que devesse sofrer eternamente, na ilusão da perda total da identidade. Era a fusão de mim em mim, como se a realidade não existisse. Sei que a minha expressão está afetada por essa estranha sensação, mas sou capaz de explicar. É como se as impressões de perda, de ausência, de afastamento da realidade corpórea fossem a só existência, de forma que a inexistência de qualquer idéia espiritual se unisse àquelas impressões, para realizar em mim a concepção do nada, do irreversível, da impossibilidade, como norma psíquica, sendo impossível resgatar o que antes era, do mesmo modo que impossível era imaginar que se pudesse vir a ser, em diferente plano.

Nessa suspensão de existência como ser individualizado permaneci durante largo tempo. Enquanto isso, as sensações se concretizavam como algo que tivesse vida própria, independentemente de algum sujeito para o qual tudo devesse definir-se. É como se tivesse perdido a memória do mundo e só me restasse foco de luz para o qual me dirigia toda, inteira.

Esse estado de catalepsia moral, sentimental e intelectual não estava isento de dor, porque a ausência de mim mesma era tormentosa, aflitiva, angustiante.

Podem-me censurar o que estou expondo como resultado dos pensamentos, das reflexões, mas não podem ver naquilo que se passou nitidamente senão como abstração completa do estágio atual de vivência. Mesmo para mim, neste ponto em que voltei a poder perscrutar o valor relativo de cada coisa, fica difícil de definir aquela agrura mórbida de quem não tem pátria, sem paradeiro, nem passado, nem futuro. É como se me voltasse à recordação algo que não aconteceu comigo, mas em mim, na expectativa de reaver a identidade e na impossibilidade do fato.

Graças a Deus, o tormento foi tornando-se compreensível e, de súbito, acordei desse estado de letargia inconsciente para o ponto exato em que sofrera o impacto do balázio no crânio. Despertei com imensa dor de cabeça, pela perfuração da bala, que me atingiu diversos pontos capitais para a sobrevivência física, mas que não me impedia de sofrer os embates no campo da espiritualidade.

Esperei com paciência a restauração do perispírito, como se fosse possível a reparação espontânea de cada fibra rompida pelo impacto destruidor. Não sabia onde estava, mas tinha exata noção do que me sustentava como ser, pois me recordava, agora muito bem, de cada pedacinho de minha vida, com exceção dos atos de bondade que pudesse ter realizado. Só o que era mau e doloroso para as pessoas é que me vinha à frente do painel de minha memória, como se estivesse em teatro em que, sobre o palco, figuras representassem cenas, estranhamente, para a única espectadora presente.

Dado o alívio que sentia da fase anterior, era até interessante ver serem representados os atos que me diziam respeito como autora. Era como se tudo se desenrolasse longe de minha pessoa. Aos poucos, porém, via-me na representação, ao lado dos outros, fazendo as coisas ruins que ali se passavam. Gostaria de mudar de papel, trocar de personagem, tornar-me vítima ao invés de algoz, mas o único que conseguia era a intenção de evitar a cena, que decorria independente de minha vontade, como se a minha atuação se revestisse das características de marionete, que é conduzido por invisíveis cordames. Não queria dizer as falas, mas as recitava alcandoradamente, com brilho intenso e emoção, como se atriz de inegáveis dotes histriônicos se compusesse para o papel. E esse tormento interior se transferia para a cena, e o que era mera resistência se transformava em realidade. O papel da personagem deixava de existir e eu me corporificava na ação, como se tudo pudesse voltar à realidade. Era a inexpugnável intenção transmudada em permanente ação. E o sofrimento deixava de ser figura de retórica e se consubstanciava ali, perante a minha vista.

Receio que a totalidade desta narrativa vá ter de ficar manca da verdadeira emoção, pois tudo se transforma em visão edulcorada pela possibilidade da literatura, dado que as palavras, as expressões, os conceitos vão friamente se transpondo para o papel, ao sabor de aparatosa imaginação.

Mas tudo o que deixei relatado é a pura expressão de minha verdade íntima. Para quem não se habituou a refletir sobre a realidade senão pelo seu metamorfosear em plano de idealização, como se a vida transcorresse independentemente do sentido biológico, poderá ficar fácil de compreender as sensações de dor e de desespero que assomam à fímbria da convicção no instante da obtenção do poder do raciocínio.

Hoje, como gostaria de dominar esta pena, de forma a traduzir em sangue o maléfico odor nauseabundo da linfa pútrida a escorrer do cérebro em decomposição. Que atormentada condição de quem ficara tanto tempo distante da realidade da existência, ao despertar, se deparar com as emoções ainda tépidas, como se nenhum instante houvesse decorrido entre os tempos. E era como se tudo pudesse alargar-se e espremer-se, como se não houvesse mais sentido de transcurso e, no entanto, a necessidade dele se fizesse presente, como se a morte se consumasse a cada momento e o nada se estendesse em perspectiva.

Penso não ter suficiente lucidez para meditar a respeito do que significa sofrer, em dor, em êxtase de purificação pela sensação da impossibilidade da fuga. É como se, pintora de telas da morte, me visse a pintar-me a mim mesma, exalando o último suspiro. É como se a dor da perda da vida querida da mãe, da filha, do companheiro, pudesse retratar-se em espetáculo sofrido como restabelecimento da realidade. É como se tudo o que o espectador pudesse conceber como memória ou presunção de que possa vir a ser o mal se consubstanciasse na presença do horror do outro — sujeito-objeto do mesmo drama infinito e intemporal.

Peço humildes desculpas ao grupo que me trouxe para este trabalho de socorro ativo. Sei que minha participação camuflou a verdade de minha história como ser que atuou em determinada peça da vida. Mas é como se tudo se tivesse esfumado, restando a luta interior, a introjeção dos problemas e das vicissitudes. Que importância terá agora o fato de ter matado alguém? O que importa é o levantamento do sofrimento que perpassa pelo cérebro, abatido por sintomatologia específica de certos procedimentos incorretos. E essa personalidade que vejo possuir-me é feia, é repugnante, é tenebrosa. Transformar tudo isso em sentimento de culpa talvez seja próprio dos confessores medievais, que intentavam demonstrar aos confessados como seria o inferno, se não se depurassem dos males praticados. Mas essa intenção era já martírio a perseguir o próprio possesso da divina justiça, como se fora ele participe da obra da vingança do deus dos exércitos, a fomentar brilho e poder a seu antagonista universal.

Peço desculpas para me esconder de novo da informação que faria de mim traste imprestável aos olhos dos que deveriam tão-só condoer-se pela minha condição de inferioridade cármica. Se me querem verdadeiramente, vão ter de suportar-me assim, fugidia, incerta, insegura, infeliz, pelo menos enquanto perdurar esta sensação de estar em constante bulício mental.

Incapaz de me fixar em determinados pontos, vejo razões transcendentais onde o vulgo simplesmente diria: 'Eis a causa, está aqui o efeito.' Eu não. Eu, pretensiosa, quero estar acima da lei e ver no efeito o próprio efeito sem causa; a dor existe — eis tudo. Vamos debelá-la. Há causas? Ótimo. Deveriam mesmo existir, mas a dor é que me pressiona e é ela que devo evitar, pois é ela que me enlouquece.

Tentam dizer-me que o tiro acertou onde exatamente eu havia intencionado atingir. Eis fórmula até interessante de dizer que sou reles suicida. É verdade que o meu inimigo subia ao palco, “alter ego”, a me apontar a arma assassina, conservando a fisionomia que eu carregara durante a infausta permanência na carne. Mas que tem isso? É como se me desdobrasse, que me visse ao espelho e fora de mim. É como se tivesse a sensação de atingir a imagem reflexa, aquela que odiava e que se transformava em vítima de minha volúpia de desintegração. Não consegui afastar o monstro, mas me vinguei da inépcia de viver, do medo de tomar atitudes, do receio pesaroso de ofender as pessoas. De repente, rompi com as imagens que se faziam coercitivas diante de mim, como se tudo pudesse ser definitivamente colocado de lado. Era o nada que me aborrecia como mistério insondável e necessário. E, no entanto, a noção dele, que me arrastava, que me dominava, que me fascinava, se tornou a intensa sensação, como jamais pude conceber, da própria existência.

Ser nada, no nada, e ser consciente disso é a mais absoluta forma do sentimento da própria percepção do existir.

Peço perdão, finalmente, por estar a desvestir-me tão lentamente, como se me envergonhasse diante dos amigos, que se mostram tão interessados em me fazer crer que tenho a possibilidade de me sentir alguém honrado e precioso. Se não fora por vocês, bons amigos, que grito de horror estaria emitindo, ao perceber o ato de imensa injustiça que pratiquei!

Não vá, leitor amigo, supor que não tenho, agora, noção do local em que estou e do que estou fazendo. Por via intuitiva, deixei claro aos que me auxiliam, que o drama que se instalou em mim foi a impossibilidade da realização do sonho da maternidade. Tudo se desencadeou quando tomei consciência de que a vida iria ser inútil biologicamente, pois todos os acalentados sonhos de procriação, visão final da integridade feminina que me fizeram crescer em ânsias de realização, se desvaneceram de súbito, diante de frio e simbólico relatório médico.

Estava impossibilitada para a vida. Que sobreviesse, portanto, a morte, pois nada por nada, que a realidade do inconsciente se confundisse, o que seria simples antecipação. E esse plano se frustrou tanto quanto o anterior. E a compreensão da irrisão do ato se deu com a condição da consciência adquirida e sofrida.

Vejam, irmãos, que estou bem apta a captar causas e efeitos, unindo as circunstâncias e desalojando as idéias preconcebidas dos esconderijos psíquicos. Vejam que tenho a percepção dos males que produzi internamente e que posso dissuadir-me de persistir na fantasia da dor. Mas estarei pronta a enfrentar a verdade de Deus?!

Deixo o testemunho do sofrimento, testamento final de quem pretende enterrar para sempre esse episódio existencial insólito e inoportuno. Nada havia sido cogitado nesse sentido e burlei todos os planos dos queridos intercessores. Mas me sinto, até certo ponto, restaurada e confortada, por ter podido refletir em voz alta a respeito dos insucessos. Quem sabe deixe, neste monturo de frases, enfeixado o cadáver daquela que não soube corresponder aos anseios da Vida...



Agradeço muito ao amigo que se dispôs a escrever e lhe peço desculpar-me por insistir tanto em que os termos se extraíssem da realidade de minha contextura intelectual, por meio da seleção que me foi possível do repositório oferecido. Graças a Deus, este pode ter sido o indício firme e seguro de que há esperança para mim.


Comentário

A mocinha que nos deu este sofrido depoimento não é espírito indócil, como se pode imaginar, lendo-lhe as declarações. É alguém que vem oferecendo sua contribuição ao grupo, desde algum tempo, mas, arredia, não conseguia suportar o trabalho como apanágio para o desenvolvimento das qualidades.

Fez-nos o relato do que pode vir a ser o sofrimento dos materialistas, embora sua personalidade jamais pudesse ser considerada assim, pessoa totalmente afeita a idealizar a realidade. Se chegou ao ponto de se suicidar é porque se deixou impregnar por demais dos ideais humanos. Não há necessidade de descrever o aparato intelectual de que está dotada, tanto brilho conseguiu transferir para a exposição. Entretanto, é bom que se deixe claro que a elaboração do texto se deu sob o influxo de tremendo sofrimento, pois era o desnudar, finalmente da personalidade.

Em lágrimas, foi recebida pelo conjunto dos amigos para aqui evocados por força da aceitação desse desvelamento. Havemos que compreender, no entanto, que muitos ficaram na carne, de modo que há resgates de dor a serem feitos.

Que o futuro lhe seja promissor, boa amiga, e que lhe reserve melhor fortuna!

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