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Contos-->Penetrálya -- 02/11/2002 - 19:15 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Penetrália























1. O Clube de Poesia


Vilar Lírio observou o céu. Lá longe, viu a cidade crepuscular. Colocou um CD e o aparelho expeliu a voz de Jim Morrison pelo ar. Era o começo da festa.
Ele gostava de reunir os amigos em sua casa, fazendo projetos mirabolantes que ficavam sempre inacabados. O último projeto fora o de um Clube de Poesia. Vilar Lírio escrevia poemas e tinha vários amigos que praticavam literatura por diletantismo.
Um dos mais curiosos era Abel, um artista performático que se valia dos textos apenas como um apêndice para sua proposta de desbunde.
- Minha nova peça se chamará Édipo-Rei, Édipo Gay.
- Como? Vilar Lírio se assustava.
- Édipo vaza os olhos, não é?
- É...
- Na minha história, ele vazará um outro olho...
Vilar se limitou a uma gesto expressando constrangimento. Ele comparecera à única peça de Abel até então montada e ficara decepcionado. O nome da peça era Super-Homem nos Trópicos. Nesta peça, um rescaldo das idéias de Nietzsche era apresentado, num clima de deboche e com vocabulário chulo:
- Vocês aí, viados da poltrona! Levantem o rabo daí e venham todos ao palco, fazer o parto do filho da puta dos trópicos!
A peça obteve um fracasso de público e de crítica, e desde então Abel se restringiu a escrever peças que não mais conseguia montar. Desejava também fazer poesia. Vilar Lírio não sabia o que fazer quando, em meio à festa, Abel apareceu antes de todos os convidados, envolvido num saco de plástico, esperneando e recitando poemas ininteligíveis lá dentro. Naquele dia ele trouxe para Vilar um poema chamado (Dia)lética:

So a k o n t r
a
S o u K ontra
Qu e m e d i z
Q u em m
e encon t
ra
D i
z
Di z q
d
iz
Kontr
+
adi
ção
Louvo o ovo

- Razoável, disse Vilar, perplexo - gosto da última frase...É engraçada...
- Vou publicar este no Suplemento Literário de Minas Gerais, disse ele, orgulhoso.
- Divulgue o nosso Clube, OK?
O que andava preocupando Vilar ultimamente era o gosto de Abel pela maconha, que ele fumava em qualquer lugar, inadvertidamente, e ainda por cima, vendia. A festa começara; Vilar se dedicou a acender a churrasqueira e conversar com Amália, a namorada, que naquele momento chegara. Meia hora depois, observou a ausência de Abel. E sentiu um cheiro adocicado no ar. Logo emergiu Abel do outro lado do terraço, que estava na penumbra, com olhos vermelhos e um ar distante. Ficou a um canto, quieto, amuado. Vilar levou para ele, silenciosamente, um copo de vodka com gelo e limão.
Vilar temeu que os pais subissem ao terraço, flagrando Abel em pleno “bode”. O pai sempre fora muito tolerante, mas Vilar prometera fazer regularmente um curso de Direito, em troca do apoio às suas veleidades literárias. Amigos usuários de drogas não estavam previstos. Tanto o pai quanto o avô tinham escrito textos em jornais e arriscado uns poemas. O avô fizera romance, o pai, crônicas. Sebastião Lírio, pai de Vilar, trabalhara num jornal do interior, o virulento A Tocha, há muito extinto.
Na época da ditadura a vida cultural do interior mineiro floresceu, apesar da repressão e da censura que grassavam no país. Com a chegada da democracia liberal-burguesa, desmanchou-se para nunca mais. O cineasta Glauber Rocha foi profético, disse que a democracia capitalista seria corrupta, e destruiria todas as resistências, agindo como uma leucemia e criando um país de escravos. Pode-se discordar das atitudes de Glauber, criticá-lo como “comunista irracionalista”, mas algo se foi, algo se degradou, algo de decisivo se perdeu na Nova República. Talvez por isso, há brasileiros jovens que sentem saudade tanto da liberdade sexual de Woodstock quanto da patriotada da ditadura militar, confundindo de maneira bizarra o Brasil do milagre econômico com o amor livre e o sonho alucinógeno da contracultura que importavam para nosso país.


2. A Revolução da Casca de Banana


- Fica bem lançar um livro de poesia na juventude, dizia o sr. Sebastião Lírio - mas não concordo, não vejo por quê deva se envolver em política. Está certo que todo jovem tem o direito de ser comunista...mas isso já passou, Vilar.
Havia um certo cinismo nas palavras do sr. Sebastião. Ele mesmo já passara pelo Partido Comunista Brasileiro, pouco depois do racha de Carlos Marighella, em fins da década de 60. Dizia que todos seus amigos estavam no partidão nessa época.
- Eu nunca fui reacionário. Mas o Muro de Berlim caiu, meu filho, e já não era sem tempo. A revolução agora pode ser feita aos poucos, por reformas. Acontece que não te aconselho a perder tempo com esses albaneses do movimento estudantil. São umas bestas, não sabem que a lógica da história os descartou.
A experiência de movimento estudantil de Vilar Lírio começou num colégio de classe média alta em BH. Participara do Grêmio por uns meses, tendo desistido de participar ao verificar a infantilidade dos colegas, sua despolitização e o interesse em simplesmente fazer festas demagógicas.
Ele se filiara no partido dos trabalhadores por essa época, e numa tendência das mais moderadas. Os integrantes desta tendência logo o exasperaram, pois Vilar exigira ser respeitado por discutir Marx, Lênin e outros pensadores. Eles tentaram convencê-lo de que o pragmatismo puro seria mais interessante que as convicções ideológicas. Em vão. Vilar também combateu a combinação de Marx e Cristo, ou melhor, a apropriação de algumas idéias de Marx à doutrina de Cristo. A preocupação com o poder temporal, no entender do rapaz, impedia que os militantes decidissem entre o alemão e o galileu.
Desgostoso, Vilar se voltou então para os radicais. Não lhe agradou a retórica irada com que disfarçavam a incapacidade ideológica. Suas críticas eram mais fundamentadas, mas Vilar observava que dificilmente chegavam à raiz de um problema. No plano ideológico estavam também desorientados com a derrocada do socialismo real. Não sabiam mais em quem acreditar, e não eram nacionalistas, nem marxistas, nem trabalhistas à Vargas. No entanto, repudiavam com razão o reformismo das elites e a falsa social-democracia brasileira.
Isso tudo se passou no interior do partido dos trabalhadores; no movimento estudantil o nível de discussão era baixo. Aconteciam disparates, absurdos. Na terra devastada em que se tornara o campo da esquerda, ele vira anarquistas explicarem a globalização da seguinte forma:
- A globalização é uma espécie de suruba, onde o terceiro mundo entra com o rabo.
Durante uma reunião, um colega cientificamente refletiu:
- A revolução agora não se faz mais com as armas, a revolução agora é ensinar dona de casa a usar a casca de banana para fazer doce.
O discurso dos ex-esquerdistas como o de Sr. Sebastião perpassava, percebia ele, toda a sociedade brasileira.
Um colega de Vilar repetia sem parar:
- Eu não acredito mais em socialismo não. Você pega a social-democracia sueca, a inglesa, a francesa, elas dão certo! Por aí você vê...não é como o PT, que só reclama...
Acontece que aquele sujeito, tendo nascido em 1972, era adolescente quando o Muro de Berlim caiu e criança na época do regime militar. Não tinha leitura nem idade para ter sido marxista-leninista e vivido a época em que um terço do mundo era comunista. Estava, portanto, repetindo um discurso como o de Sebastião Lírio:
- Nós, as cabeças pensantes deste país, fomos de esquerda nos anos 60, amávamos os Beatles e os Rolling Stones. Depois o Muro caiu e percebemos que todos aqueles sujeitos, Marx, Mao, Marcuse, eram sonhadores de uma noite de verão e viramos de novo liberais, renovados, de cuca aberta, internacionalizada. Do internacionalismo proletário para a aldeia global foi um pulo...
Numa recepção de calouros da qual Vilar participara na universidade, observou os integrantes do movimento estudantil instigando os novos alunos a fazerem a dancinha baiana da garrafa, simulando a pornografia da indústria do emburrecimento, promovendo um rito de adesão rebolante & degradante, distribuindo pirulitos estúpidos. O abismo em que o movimento estudantil caíra lhe pareceu não ter fundo.


3. Espectros de Guignard


Vilar pensava nisso tudo quando Mateus Emboaba, um pintor que se arriscava eventualmente na crítica de arte, chegou trazendo um artigo. Propunha que lançassem uma revista de Letras e Artes. O artigo era o seguinte:

Lutz Draken é o pseudônimo de Maria das Neves, uma artista plástica que recentemente exibiu suas pinturas, tendo estas, em sua maioria, a cidade de Belo Horizonte como tema. Ex-estudante da Escola Guignard, deve muito ao fundador. Espectros de Guignard envolvem o figurativismo cauteloso de Draken. Ocorre que às vezes a influência salta aos olhos, gritante, em um quadro como “Parque das Mangabeiras”, em que uma ponte em meio às árvores em tudo se assemelha aos trabalhos do mestre, o que levanta (injustamente) a suspeita de que Draken, mais do que seguidora de Guignard, é plagiadora e subserviente.
Draken abstrai a feiúra da grande metrópole com pinceladas suaves. Sem arbustos e paisagens floridas, a pintora é obrigada a idealizar lugares desagradáveis, como as margens fétidas do ribeirão Arrudas. Às vezes é mais feliz, como em “Saudades da Lagoinha”, em que pinta com cores quentes as casas de tolerância da cidade. Há momentos desanimadores, como “Nossas Montanhas - ou O Que Restou Delas”, em que as montanhas mineiras se desfazem em gelatinas marrons e verdejantes, pegajosas e cansativas como o protesto ecológico embutido no título. O excesso e a mensagem já digerida dão um tom Kitsch à obra. Draken precisaria nos mostrar a destruição, nos fazer sentir que a beleza das montanhas foi destruída, desnudando a terra devastada, o solo exposto, o verde subitamente mutilado. Em vez disso, temos um quadro preguiçoso e uma mensagem pret-à-pôrter. Sente-se aí um mau gosto insidioso. Diz-se que há uma gota de mau gosto em toda a arte. É bom não abusar.
A pintora utiliza bem os confetes de luz e paredes esbranquiçadas dos prédios, mas não consegue chegar ao expressionismo, nem escapar do realismo fotográfico. Suas pinturas não exprimem uma visão suficientemente subjetiva da realidade.
Belo Horizonte não é mais a mesma daqueles anos em que Guignard e seus discípulos introduziam a modernidade por aqui - modernidade aquela que já está defasada, diga-se de passagem. A lição de Guignard, Draken aprendeu, mas lhe faltou um toque pessoal, uma visão mais intimista. Tudo ficou com uma fria distância, uma mera repetição do consagrado, do canônico. A nossa capital ainda se veste de provincianismo, ainda se quer uma cidade do interior, mediterrânea? A mentalidade de décadas atrás parece prevalecer nos quadros de Draken, sem que tenhamos uma visada da modernidade urbana, da decadência evidente do centro da cidade, que irresponsavelmente nem é tematizada. E o mau tempo, o céu melancólico, as chuvas insistentes do verão? Não reencontrei nas pinturas de Draken um lado de BH com o qual me identifico e que me sensibiliza, daí minha aguda insatisfação.
A pintura dessa artista se ressente de certa dureza e convencionalismo. Não foge a estilos já digeridos pelo público, aproximando-se no máximo do impressionismo, mas sem o vigor plástico demonstrado pelo mestre Guignard. O céu em suas pinturas é de um azul sempre sem nuvens, um azul irritante como um otimismo obrigatório. Mesmo o velho hotel “Butterfly”, retratado no quadro “Saudades da Lagoinha”, aparece numa zona boêmia sob céu azul, levemente tinto de rosa, mas o mesmo insistente céu de brigadeiro. Lutz Draken, olhe para o alto e avante!

Vilar leu o artigo e comentou:
-Está bem agressivo, polêmico. É disso que estamos precisando. Mateus continuou:
-Em Belo Horizonte, todos artistas plásticos ou são filhos de Guignard, parentes de Guignard, ex-alunos de Guignard ou imitam o famoso Amílcar de Castro.


4. Criaturas do Udigrudi


Abel


Estou admirando muito um poeta aí, o Paulo Leão.


Vilar


Que Paulo, o “beatnik do Maleta”?


Mateus


É mesmo? Mas ele não é beatnik. O Maleta é um lugar muito urbano, à la Blade Runner, em BH. Mas os beats americanos eram filhos da abundância dos EUA, e não da pobreza terceiro-mundista.


Abel


E daí? Por que o Paulo Leão não pode?


Vilar


O que estamos discutindo não é isso, Abel.


Mateus


O que estamos discutindo é o seguinte. Ele pode importar dos americanos, mas não aceito que macaqueie, que fique imitando. Não vejo problema na importação nem nos modelos estrangeiros. Não posso negar que Paulo Leão, pobre, bêbado e descabelado, conhece e pratica poesia. Ele é realmente um poeta maldito, pois vive esta maldição até mais intensamente do que os malditos franceses e do que a patota Ginsberg-Burroughs-Keroauc; só que vive muitas maldições bem brasileiras, desde a pobreza, a deficiência, até a proscrição de sua arte. Veja, Abel, são maldições bem tropicais.


Abel


Ele é mais maldito que os beats americanos, então? Vocês são caretas, estão muito atrasados. O próprio Leão não tem a intenção de falar das maldições tupiniquins, isto está na cabeça de vocês.


Vilar


Eu não diria tanto...É um salto, um fenômeno bem brasileiro...Saltamos da pobreza e do acanhamento de nosso meio cultural para a contracultura. Foi uma saída que arrajaram, entende?


Abel


Gosto também de José Ênio, cujo livro Paulo Leão prefacia. Ele veio do vale do Jequitinhonha, região conhecida por sua pobreza e...


Mateus


Afinal, estamos discutindo justamente isso. Leia um poema dele aí.


Abel


“Sobre o asfalto sujo/ De escarro e hipocrisia/ O mendigo e a doida se amam/ & gozam da aristocracia/ Sobrepujando o amor/ Em prazeres atrozes/ No gozo de seus algozes.”


Vilar


O que me preocupa é que, atuando contra a cultura, o pessoal do underground vá direto para a contracultura britânica e americana, o que mostra onde estão as matrizes. Note o fato de que ignoram a literatura portuguesa, por exemplo, por achá-la demodeé para seus padrões.


Abel


Mas os poetas são marginais.


Mateus


A figura do poeta oficial, de gabinete, a poetar em solenidades cívicas, é uma recordação remota. As elites liam poesia rimada, com métrica e rima. E sabiam de cor trechos de Bilac. Era a velha cultura burguesa. Agora a rapaziada de elite, que é “cool” e que gosta de ler, se voltou em massa para a contracultura, para o também chamado udigrudi. A contracultura, enfim, assumiu o lugar da cultura “careta”. Foi só uma troca de posições. Os poetas marginais estão melhor integrados do que aqueles que tentam fazer uma poesia tradicional.


5. Uma Sombra no Escuro


No jornal do diretório acadêmico, Vilar escreveu um artigo criticando as figuras que via rodarem pela universidade:
Hippy Recaído- Pode crer, bicho. É TODO MUNDO fumando unzinho.
Comuno-stalinista (entra em cena dançando)-Stálin é um bom companheiro, ninguém pode negar, senão ele manda matar.
Hippy Recaído-Este planeta devia se chamar Planeta Maconha.
Stalinista Pirado- Olhe, temos que combater este neoliberalismo que tá aí, e para isso precisamos de um guia genial dos povos. O materialismo ciberdélico é nossa salvação. Para isso precisamos de todo mundo se dopando numa boa. Nós somos uma alternativa de poder, podemos nos aliar aos cubanos, aos chineses.
Hippy Recaído (fingindo estar entendendo) - Só...
Stalinista Pirado- Kim Il Sung! Fidel! Estes são os cérebros da nossa Revolução, são chefes que nos ditam as verdades incontestáveis...Isso aí, abaixo a ditadura! Ainda vivemos a ditadura do moralismo babaca, careta, o negócio é sermos dialéticos sem diálogo, neo-hippies de situação! Viva o bunda-lê-lê total e radiante. Viva Adriane Galisteu, viva Romário, viva Edmundo, o animal!
Hippy Recaído-O sistema é foda. A universidade é burguesa, bicho. O reitor já vem malhado, sacou?
Comuno-stalinista -Requisitamos o DA como uma célula da Grande Marcha da Revolução Anarquista, Narcótica e Maoísta. Paz e amor, camaradas, e todo mundo curtindo seu barato total. Nossa aliança com os superdoidões é em prol das viagens mais malucas, das drogas mais pirantes...
Hippy Recaído-Pode crer. O lance é instalar a ditadura da loucura.
Stalinista - Pô. Maior viagem. Stálin é um barato, eu fico me imaginando no lugar dele, mandando cortar cabeças, cafungando carreiras e fazendo orgias em dachas, matando os revisionistas...Ia ser a maior curtição!!! A anarquia é liberdade, descompromisso total, imoral, pirações totais, aí vamos transando altas loucuras.
E todos terminam assim, “transando altas loucuras” enquanto o fim do mundo não vem.
Aquilo saíra como que da ferida. Vilar estudou no colégio Mersépolis. No primeiro dia de aula tropeçou na escada. Sua vida escolar inteira foi como aquele tropeção, ele sempre se levantou depois, riu e tentou tirar uma poeira imaginária. Gostava de ouvir We Can Work It Out antes de ir para a aula. “Nós podemos resolver isso”, dizia Paul. John Lennon retrucava: “A vida é muito curta, não há tempo para fofoca e intriga, meu amigo”. Na véspera da prova de Física era a posse do Fernando Collor. Enquanto Collor abortava um “Brasil novo” mais velho que Matusalém, Vilar se entediava. Tirou quase zero. Cismou com a Alemanha, escreveu para as embaixadas, colou o mapa da Alemanha Federal na parede. A Alemanha Oriental mandou uma brochura: fotos de Erich Honecker, último presidente da democracia popular alemã, conversando com as crianças.
Vilar perseguia alguns amigos no jogo de War até expulsá-los do tabuleiro. Com alguns colegas do Grêmio do Mersépolis, desinteressados de qualquer assunto sério, Vilar foi a um programa de auditório. Uma garota ginasiana tentava responder a perguntas que pareciam óbvias para Vilar:
--Qual é o nome do país onde nasceu Drácula?
--?
Vilar Lírio escrevia poesias amargas pelas madrugadas. Uma ruiva colega queria ser rebelde como os roqueiros reacionários do Guns and Roses. Na aula de Educação Física, Vilar marcou um gol contra e comemorou.
Uma Sombra no Escuro é o que Vilar foi em sua infância e adolescência. O filme conta a história do poeta roqueiro Larry Winters, condenado à prisão pelo assassinato de um barman no Soho londrino. O roteiro foi concluído a partir de seus escritos e poemas alucinados. Winters tinha, quando criança, a obsessão de matar coelhos, sonhava, na prisão, com Alice no País das Maravilhas, lendo Nietzsche e sonhando com incesto e um sensual cavalo branco, tomando drogas pesadas. Vilar se sentia numa cela de prisão inglesa, enquanto lá fora estava um país faminto e miserável. Ouvia canções que diziam: “Purpúreo espreita um dragão no sem-fundo de um olhar de moça./ Eu peguei a grana,/ Droguei a sua bebida,/ Atualmente você perde muito se parar para pensar”. Escutava estas canções pop e escrevia algo assim:


Contam que teu olhar
É um cisne negro
A nadar no lago azul das horas


Eu sou o pavão ébrio
Você é mulher fatal
Colombina no carnaval.
O almofadinha e a melindrosa
Falam, cantam e dançam
Ao som do Charleston
Ficam tontos com os cavaquinhos.


Eles rezam ao Deus Pã,
Grita o arlequim entre serpentinas.
No fim da festa,
Te vejo vestida de pirilampos,
Acesos nos seus cabelos.


6. Só Louco & Só Poeta


Vilar conheceu uma moça, estudante de Psicologia, que pirou. Ela começou a repetir muito o jargão acadêmico, psicanalítico. Estava brigada com o namorado, e daí deu a louca, jogou o computador janela afora, saiu nua diante da rua. Uma amiga tentou socorrê-la, teve os dedos feridos, quase a maluca lhe torce o pescoço.
Outro caso foi o do tesoureiro da chapa de DCE. Tudo começou quando as brigas dentro da entidade chegaram a um extremo. O cara desistiu do cargo, e aos poucos foi perdendo o controle; bebia demais, responsabilizava quem se queixara dele. Um dia, numa festa, deixou cair uma mala. A mala continha papéis, ferramentas, relógios, garfos, lenços. A gota d’água foi o dia em que ele resolveu cobrar um cheque no DCE. A nossa gestão já estava terminada. Ele estava pintado de tinta, e pouco consciente de qualquer coisa, situação deprimente. Chamaram a polícia. Quando a polícia chegou, eles o viram queimando os pelos do corpo. Perguntaram o motivo: -Tatuagem. E lá se foi o tesoureiro maluco para a clínica.


7. Diálogos


--Oi!
--Vai prá todo lugar?
--Vênus a Singapura!
--Rapadura é doce, mas não é mole não.
--Há canções.
-- Mr Tambourine Man, do Bob Dylan.
--azul.
--Azul é Paco de Lucía.
--Tropicália...
--Salada!
--Raul Seixas...
--Jovem Guarda demais.
--Zappa.
--Cucamonga!
--José Jota Veiga e Murilo Rubião.


8. Manifestações


Oceanos turbulentos de edifícios, estruturas metálicas, sinuosas, ferrosas. Entrecortadas por artérias. Repletas de seres que tentam viver, vazios & formigas humanas, ensaiam passos cinzas, apodrecendo & depois morrendo. É isto que a gente quer, neste oceano de luzes?
Pode ser que exista um mundo, um anti-mundo, composto de anti-matéria: este mundo antimaterial consistiria de partículas atômicas e subatômicas que girariam em órbitas opostas àquelas do mundo que conhecemos. Se estes dois mundos se chocassem alguma vez, ambos seriam aniquilados num só clarão ofuscante.
Fascinação: olhos de vidro, pedaços de mar fóssil, resíduos e cacos reincidentes de um mundo imaterial, cobra de doce veneno, sensual sedução para a morte. Em Istambul, é recomendável contratar um guia ou entrar numa excursão, porque nas ruas só se fala turco. Ninguém fala inglês ou francês. Tomado pela febre, meus sonhos revolvem o misterioso pântano. No domingo acordaremos, pegaremos o revólver e picaremos o patrão em fatias doces, comendo-o em calda.


9. Terra à Vista


Vilar Lírio não tinha saudades da adolescência e dos tempos de colégio. Mas existia a curiosa relação entre Juliano e Marina. Ele se lembrava que começara a conversar sobre música com Juliano. Já a impressão que teve de Marina foi de uma adolescente bonita e agradável, mas cujas qualidades eram ofuscadas por uma boa dose de egocentrismo, individualismo, mentalidade estreita de classe média. Ela era uma displaced person, garota sem raízes, sem amigos. Sonhava em ser inglesa em Belo Horizonte. Queria cursar jornalismo numa faculdade, mas não gostava de ler.
Uma das minhas lembranças de Marina divertiu Vilar: ela disse que o casamento dela e de Juliano seria como o Sergeant Pepper’s dos Beatles, com figurino psicodélico. Tempos depois, Juliano resolveu realmente experimentar drogas: Marina reagiu com lições de moral ao estilo “tradicional família mineira”. A família de Marina era de “burgueses fidalgos”: o pai era um empresário do setor têxtil que o fantasma do príncipe Alexei Romanov visitava com freqüência. Pelo menos assim ele acreditava. Juliano, por sua vez, sonhou certa vez que era filho de Elvis Presley.
Vilar quase não se lembrava de nada que Marina falava nessa época. Vilar e Juliano conversavam sobre rock and roll. Marina e Juliano tiveram uma discussão, a meio caminho entre a briga e a brincadeira, a respeito de Ringo Starr. “Ele só toca pratos, Juliano”. Nessa fase crítica do romance dos dois, em meio a desentendimentos constantes, Vilar Lírio os chamou para assistirem Uma Sombra no Escuro, filme sobre um rapaz inglês que escrevia poemas alucinados, no Savassi Cineclube, que circa 1991 tinha uma programação ótima, com filmes europeus de boa qualidade.
Eu me lembrei desse tempo de colégio quando assisti o filme Terra Estrangeira, do Walter Salles Júnior. A narrativa começa justamente em 1990, no momento do confisco da poupança e da morte da mãe; o filho vai em busca da cidade de San Sebastián e do pai, da origem, na Espanha. O que estava encenado ali era a desnacionalização do país, e a vida de um imigrante brasileiro pobre na Europa. A dor que provocava aquele governo neoliberal, tão ruim, eleito pelo povo para canibalizá-lo, o desejo dos jovens de abandonar o país, essas coisas me atingem nesse filme, elementos, aliás, que o filme apenas registra, documenta, mas não problematiza. No entanto, se Terra Estrangeira me parece uma tentativa de ser o Terra em Transe da década de 90 (se o seis virasse nove...), Walter Salles diz que tem só influência de Godard: parrícidio? Afinal, Terra em Transe procurava provocar o público de formadores de opinião que o viu, impactá-lo com questões da hora, enquanto Terra Estrangeira tem um enredo policialesco envolto em belas imagens em preto e branco que procuram traduzir a estética do fotógrafo Sebastião Salgado. Mas todo esse apuro estético não disfarça o apelo fácil e comercial da trama, nem provoca discussão: nunca discuti esse filme com Juliano e Marina. Em geral, só discutíamos música, ou, mais especificamente, rock e pop.
Um artista que descobri em 1991 e que até hoje admiro é o Jim Morrison. O filme de Oliver Stone o colocou de novo na mídia, e quando eu vi o filme propriamente dito, me irritei com a platéia do Savassi Cineclube, que dublava junto com o ator Val Kilmer as músicas do conjunto, e me decepcionei com o filme que se fixou em mostrá-lo somente como bêbado, drogado e popstar intelectual em ritmo de putaria. Me marcou especialmente o filme propriamente dito que Morrison fez para finalizar o curso de cinema na UCLA, em 1967: uma loira nua dançava em cima de uma TV onde passavam imagens nazistas. Depois o próprio autor aparecia tragando um enorme cachimbo de maconha. Juliano me falou entusiasmado dessas cenas. Depois soube que foram feitas no apartamento de Jim Morrison, que era coberto de fotos de mulheres da Playboy. Agora penso na cena enquanto interessante explosão irracionalista, e num apartamento decorado com pôsteres de mulher pelada, em algo vulgar como papo de borracharia. Já Marina era mais anos 80 mesmo, preferindo Legião Urbana, The Cure e The Smiths, e acho que o conhecimento que ela tinha dos Doors não ia muito além da canção Light my Fire...
Às vezes penso que a minha geração, que é também a de Juliano e Marina, vai ficar para a posteridade como geração AIDS, quando acharem a cura dessa doença no futuro. Depois, afasto esses pensamentos.


10. Brahmaloka


Telas de imagens misturadas, o mundo se vê dentro delas. Você vê sua imagem nelas? Metáfora real de uma esfera aberta de percepção? Hein?
Mergulhar fundo no cérebro, mergulhar no passado, contornando minha dor. Dentro da casa, todos os aparelhos ligados ao mesmo tempo. Eu me sento, pregado no chão, gostaria de me sentar num bolo bem açucarado. Uma moça toma chá numa confeitaria às cinco horas da tarde quando entravam na loja uns policiais. A moça atira o chá na cara deles e lhes mostra os seios. Transfigurados, os clientes mudam: o padre se masturbou, os noivos fizeram amor em cima de uma torta, uma velhinha de mais de oitenta anos tirou a roupa e cantou Janis Joplin até cair exausta no chão: Drácula e Frankenstein, ao saírem para caçar na zona boêmia de Belo Horizonte, ficam chocados ao verem o saci-pererê comer a vagina da mula sem cabeça por detrás. Num estúdio, cientistas acústicos tentam novamente achar a pedra filosofal.
O isolado guru pediu aos corvos que o deixassem e paz. O bebê de Jurema foi jogado pela janela com honras de fazer inveja à Rainha da Inglaterra. Vilar Lírio comprava sementes de melão e gostava de fritá-las. Descanse a cabeça e não enlouqueça. Começa um novo dia e logo virá uma nova noite, com suas insinuações de escuridão & boêmia. Dentro de um chafariz, no Xópin Cênter, uma mãe e uma filha. Vilar Lírio pergunta:


--O que vocês estão procurando?
--Nossos egos!
--Como?
--Minha filha perdeu contato.
--Saímos em busca de nossos egos, superegos e inconscientes coletivos.
--Quem são vocês?
--Somos freiras liberadas.
--& eu sou poeta, diz Vilar Lírio:


Olhos de náilon azul
& garota pelada de isopor...
Unhas de plástico & masturbador psiconuclear.
& cuca explode!
Funde!
Eu faço você sentir seu próprio gosto,
Seu bife é de sapato.
Sua língua é pela ferida...


Vilar Lírio olha de novo & mãe & filha se dissolveram naquela água borbulhante. Bendito cachorro quente!
Vilar Lírio ensaia um passeio às montanhas azuis. Mas se sente uma galinha. Enfim, após algumas tentativas, ele voa como uma andorilha velhaca & vê a cidade se auto-destruindo. Os ianomânis dançam febris na marcha da lua louca, mastigam ervas medicinais e outras diabólicas. O ritmo é bem marcado, imita as batidas cardíacas. Começam todos uma masturbação coletiva, tribal, ritual. Pouco depois tudo se evapora, vento odiando o ar, numa luz nebulosa vermelha como o desespero sexual. Na praça Sete, Vilar Lírio observa o desabrochar de uma crisálida enorme. Ela se abre, abortando um feto de asas transparentes. Nojo e frustração nos transeuntes.
Vilar Lírio entra num casamento: vê o teto da Igreja subir e descer, distribuindo cores. Ele ri à toa, enquanto o sacerdote psicodélico, vestido de gravata & chinelos, dança e seu saco se sacode freneticamente & algum tempo depois, Vilar Lírio ainda reflete sobre o significado dessa cerimônia. Desiste & bebe diante do espelho: mil gagos vagarão pela terra?
Brahmaloka: a culpa é a flor mais nefasta! O camelô cigano traz um carregamento de abóboras! Bailarinas se apresentam, descabelam e gemem. O público discute num barzinho ao som de jazz e se delicia com o ar esfumaçado. Vilar Lírio recita um hai-kai:


A lua é astro de plumas suaves
& sabe dançar


Brahmaloka é surpreendente: Vilar Lírio viajou na maionese, viu algo assim como um mar de vidro sob um céu de fogo, e lá, flutuando sobre o mar, estavam aqueles que venceram o monstro, cantavam músicas com instrumentos reluzentes & suas obras eram grandes e admiráveis, justos e admiráveis eram os caminhos desses homens e mulheres malucos! Vilar Lírio cometeu mais um:


Não vejo a revoada festiva das Igrejas
& nem o turturinar apaixonado dos óvulos
O assassino de espermatozóides pode tocar o sino?
Mataram os pombos da Matriz,
Ceifaram as inocentes vidas,
A mãe corajosamente clama &
De seus filhos queridos
Os que sobreviveram estão no mais elevado planeta que o espírito pode habitar.


No ônibus, Vilar Lírio se depara negro como uma pantera, cabelo duro de pixaim. O trocador é um magrelo, Vilar pode sentir seu cabelo crescer, é como sentir pulsações. Vilar quis descer, mas não há a zoeira habitual. Olha para o motorista: ele se transmuta em Marilyn, James Dean, Woody Allen, Yoko Ono, mas depois volta sempre a ser um mero motorista brazyleyro mestiço, estatura mediana, profissão esperança. O nada é inexorável. Ele não perdoa. É como uma onda de ácido corroendo mentes, dissolvendo-as, explodindo os crânios, deixando cascas vazias vagarem sobre corpos ilógicos, zumbis cúmplices de seus próprios descerebramentos rituais. O vinho da superfície desce, embriagando os reinos oceânicos. O príncipe Namor e o seu primeiro ministro, Aquaman, meros lacaios do imperialismo, são destronados.Com a volta da democracia liberal, o líder das sardinhas se candidata a presidente da república marinha, mas numa eleição fraudada vence o tubarão azul & agora todos estão deprimidos abaixo da linha que divide ar e a água.




11. Os Campos Magnéticos


E começou um devaneio de Vilar Lírio: Os campos magnéticos nos encontraram e agora avançamos por seus prados e serras como o suor da mulher-goiaba, pombas suaves descem pelo ralo da geladeira abaixo. O planeta Vênus têm furúnculos, se esconda neles! Mas não se assuste com as lágrimas e pérolas que porventura escorram do pênis de Tancredo Neves. Não vá fugir da grande verde borboleta ensopada, o vento rígido sopra, a pele de urso se instalou & não se deixe atropelar pelo bonde cheio de ritmo & blues & feito sob medida para sua dor & repletos de pianos & órgãos genitais masculinos
balangando.
Escute as loiras no piano. Toque a rica renda de samambaia do seu próprio sexo e coloque o ouvido para escutar o som & vá se masturbar atrás da pegajosa parede de caramelo onde estão sepultadas as mãos de Mário de Andrade. Das iluminuras & coleções de calcinha pendendo do teto, extraia gotas de licor e jóias & não acredite nas autoridades pois elas sabem da pedra ácida do rochedo abissal. Gente: vomitar é grátis, gelo arde nas águas dos seus lábios. Esperem o doce fim, quando o sangue escorrerá nos tapetes e liquidificadores. Um doce & sincero amigo nos acompanhará com guarda-chuvas roxos & amarelos & o fim de tudo é bem feito répi éndi & vocês tem mesmo cérebro, nome, sexo & calma! É maçã lerda, psicopata, que habita os bairros religiosos em Nova Iorque, e acendem-se fogos & velas & aranhas de sal nos cobertores – não tenha medo –os urubus voam e os céus do mundo sabem da madeira orgástica & da academia que freqüentamos & nas geladeiras & Everestes & Indochinas & Vietnãs & Sarajevos da vida & campos de futebol há fornicação & todos sabemos & ninguém sabe latim. Seu pai sai de carro & come Jocasta & lagosta.
Todos queremos melões e pestanas.
Ó magos, vamos todos em busca do planeta Vênus, Terra, Marte, Martelo. Vamos nus, porém vestidos, nos amar com barbeador & sua nudez sideral cavalo selvagem do onanismo nos convida & o sertão de lua & brejo doce de prata & blues & poeira de montes terráqueos! Hasteamos bandeiras! Por que essa morte? Por que? Pela justiça e pela liberdade! Eles se levantaram & enterraram o cadáver em meio a rosas, crisântemos, dálias.














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