Usina de Letras
Usina de Letras
159 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62268 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10450)

Cronicas (22539)

Discursos (3239)

Ensaios - (10379)

Erótico (13571)

Frases (50658)

Humor (20039)

Infantil (5450)

Infanto Juvenil (4776)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140816)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6203)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O homem que só ia à missa do galo -- 09/07/2000 - 19:07 (Rodrigo Teles Calado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O HOMEM QUE SÓ IA À MISSA DO GALO

«O Homem que só ia à Missa do Galo», retrata-nos a experiência quotidiana de quem das coisas mais simples colhe lições de sublimidade ímpar, perante as quais se ofusca o brilho das estrelas de Natal e esmorecem os cantos de «Glórias» e «Aleluias».

A história de alguém que fazia presépio do mais belo lugar do mundo: o coração.

-----------------------------------------------------

Não será falta de respeito ao Criador dizer que Manuel Sabugo era feio de cara e mal feito de corpo. De tal modo que não casara e, apesar da sua quarta classe com distinção, tivera dificuldade em arranjar emprego. Com trabalhos pesados não podia, por causa da asma crónica, e serviços em que tivesse de aparecer ao público, numa secretaria, numa portaria ou em outros lugares do género, ninguém quisera dar-lhe. Acabou na recolha do lixo, o que parecia condizer com a sua figura de duende.

Não costumava ir à Missa durante o ano, mais por hábito criado por descuido do que por desinteresse, mas à Missa do Galo não faltava nunca. Pensava mesmo que Natal sem Missa do Galo nem beijo no Menino não seria Natal para ele.

Vestiu o seu fato dos dias solenes, o único que tinha, pôs uma gravata vermelha, escolheu dois lenços dos que passara cuidadosamente a ferro . um branco para ajoelhar -, meteu a chave da casa na algibeira, a moeda branca para o Menino na outra, e não esqueceu os cigarros - que haviam de matá-lo mais depressa do que a própria morte, como lhe dizia o Senhor Doutor. Deixou a mesa preparada com licores, vinho do Porto, figos passados, nozes e bolachas de chocolate - para as visitas que nunca tinha.

Acabara de sair de casa quando, ou por causa do ar frio ou porque tivesse de acontecer-lhe naquele momento, lhe deu um forte ataque de asma. Procurou a «bomba do ar» em todas as algibeiras, mas com a certeza aflita e quase absoluta de que a esquecera nas outras calças. Tentou voltar a casa, em busca do inalador que o livrasse daquela aflição, ainda conseguiu meter a chave na fechadura, mas caiu ali mesmo, a dois passos da salvação.

Pouco depois, uns vizinhos viram-no e levaram-no para dentro, percebendo que nem valia a pena chamar o médico. Foi um deles pedir ao Senhor Padre que viesse administar-lhe os sacramentos - ainda assim preveniria o Senhor Doutor do sucedido - enquanto dois o deitavam na cama, comentando que o pobre não lhes dera trabalho nenhum: até se vestira para a última viagem.

O Senhor Padre veio, absolveu-o «in articulo mortis» e ungiu-o com os óleos sagrados. Uma vizinha velha, entretanto chegada, disse:

- Foi mesmo um castigo de Nosso Senhor. Ele nunca quis saber de Nosso Senhor durante o ano, e Nosso Senhor mostrou que também só por hoje não Se importava saber dele.

O Senhor Padre não respondeu, por serem poucos o tampo e a paciência, e talvez a convicção também. Mas, depois da Missa do Galo, entrou em casa do Manuel Sabugo, que ficava a caminho da sua. Para seu espanto, viu-a cheia de gente, desde pessoas muito humildes até ao Dr. Sousa Campos. Tinham acendido velas, havia até algumas flores, e falavam do pobre com a veneração que merecem todos os mortos, servindo-se alguns da mesa posta por ele para as visitas que nunca tinha.

O Senhor Padre ouviu um homem novo contar:

- Quando eu era pequeno, costumava chamar-lhe «macaco» e rir-me dele, como os outros rapazes. Um dia, o Manuel Sabugo encontrou-me, de repente, num canto, e parecia que queria falar comigo.

Fiquei cheio de medo. Mas ele sorriu e disse-me: «Quando Nosso Senhor me chamou para eu escolher a cara que quisesse - e havia lá muitas tão bonitas -, pedi-Lhe esta. Eu disse a Nosso Senhor que as crianças me haviam de achar muita graça com uma cara assim.» E outro:

- Aquilo era uma miséria, a minha casa. A mala que eu levava para a Escola era um pedaço de uma saca de lona, que minha mãe cosera pondo-lhe uma tira de pano para pendurar ao ombro. O Manuel Sabugo, uma tarde, viu-me passar e pediu para eu lhe mostrar a mala, para ver se os meus livros eram iguais aos que ele tinha tido. Pegou na mala, mas rasgou-a num prego do portão. Tive a certeza de que foi de propósito, e desatei logo a chorar de pena e raiva. O Manuel tentou acalmar-me, e disse que tinha, por acaso, uma mala nova, que comprara para um sobrinho, a quem não a dera porque ele já tinha uma. Se eu quisesse, pagava-me a minha mala rota com aquela. Fiquei com a mala mais bonita da escola.

E nem percebi que, afinal de contas, o manuel nem sequer olhou para os livros, e só mais tarde vim a saber que ele não tinha sobrinho nenhum...


E um antigo vereador:

- Um dia, zanguei-me com os homens do lixo, por causa de um serviço mal feito que não tinha nada a ver com o trabalho deles. Gritei, fui bruto, e disse: «Vocês só servem mesmo é para o lixo!» Logo o Manuel me respondeu: «Limpar é mais digno do que sujar. Nós limpamos.» Ele tinha assim frases destas, que nos espantavam, lia muito... Passou-me a zanga e, por ter gostado da frase, mandei pintá-la nos camiões do lixo, com as iniciais da Câmara por baixo. E o Manuel nunca me disse nada, nunca se gabou a ninguém de que aquela frase fora sua...

O Dr. Sousa Campos tinha também uma história para contar:

- No ano passado combinei com uns vizinhos dar um jantar, no dia de Natal, aos pobres. Com tanta coisa que nos tinha sobrado da Consoada, as nossas mulheres puseram uma mesa muito bem posta, na minha garagem, toda enfeitada.

Parecia tudo comida fresca, com o jeito que lhe deram. Convidei também o Manuel Sabugo, não porque tivesse necessidade mas porque vivia sozinho desde que a mãe morreu. Ele ficou até ao fim, ajudou a recolher os restos e a limpar a garagem, e pediu-me, antes de sair, que lhes desse um pedaço de cordel e uns sacos de lixo vazios. Saí pouco depois dele, a dar um passeio a pé, gozando comigo mesmo o prazer que sentia por ter porporcionado àquela pobre gente um jantar de certza muito melhor do que teriam em suas casas. Numa esquina um pouco adiante, amontoavam-se pelo menos uns vinte sacos de lixo de modo desordenado. Vi o Manuel a remexer neles, e admirei-me. Ele não tinha necessidade de andar à procura de restos de lixo, porque a sua pequena reforma dava-lhes bem para viver. Pus-me a espreitar, e então percebi que ele ia juntando o lixo espalhado pelos cães e gatos, metendo tudo dentro de um dos sacos que eu lhe dera. Depois, foi pegando em sacos pouco cheios e juntando em um somento o lixo de dois ou três. Por fim, amarrou os sacos uns aos outros, em grupos de três e quatro. Quando acabou, o volume do monte de lixo reduzira-se a muito menos, apenas quatro grupos de sacos bem amarrados. Seguiu adiante, e voltei a vê-lo fazer o mesmo em todos os montes de lixo que encontrava.

Acabei por me chegar a ele, e perguntei por que razão fazia aquilo. Pareceu envergonhado, e explicou: «Sei o que custa recolher lixo do dia de Natal. Os homens do lixo também têm família - eu é que não tenho há anos - e querem acabar o trabalho o mais depressa possível. Mas este é o pior do ano. Assim, vai ser mais fácil pegarem nos sacos para o camião.» Fui eu então quem se sentiu envergonhado. O que eu fizera não valia nada, ao pé daquele gesto de que só Deus e eu estávamos a ser testemunhas.

O Senhor Padre saíu sem ouvir mais nada. Mas tinha a certeza de que Deus não castigara o Manuel Sabugo impedindo-o de ir à Missa do Galo. Convidara-o, isso sim, a tempo de assistir ao nascimento de Jesus no descanso já da felicidade eterna.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui