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Ensaios-->Os Tropicalistas Estão na Sala de Jantar -- 20/03/2002 - 10:31 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O livro Eu Sei Que Vou te Amar (1986), baseado no roteiro do filme, se inicia com duas epígrafes: a de Chacal: “Nosso amor puro/ Pulou o muro...” e de Leonardo da Vinci: “O que se vê, antes não era; e o que era, não é mais.” A mitologia da publicidade e dos meios de comunicação de massa pontua esta história que gira em torno da relação ambivalente de um casal, relação na qual o amor se intercala a momentos de ódio. Jabor, que anteriormente praticou uma estética tropicalista, em seus filmes Pindorama (1971) e Tudo Bem (1978) irá se afastando, nos anos 80, das alegorias de Brasil anteriores até morrer como cineasta para renascer como jornalista/comentarista de centro-direita no Jornal Nacional, a partir de 1990. Ele é um canibal que chegou à sala de jantar, mas agora não há mais nacionalismo verde-amarelo para devorar. Não há projeto nacional-popular para desconstruir, tendo caído tudo por terra, Jabor se acomoda com o adesismo neoliberal.
Em Pindorama, filme híbrido entre o histórico/alegórico, é renegada nossa origem portuguesa, tida pelo cineasta como fonte dos males brasileiros. Nos anos 80, desmisticado o nacionalismo, desacreditado o socialismo real, resta o progressismo dos costumes, a chanchada liberal nos tempos da AIDS. O casal conflituoso pretende ainda refletir, por suas marcas internas, um dado contexto nacional. Por isso, misturam-se no texto referências da cultura Pop como a Kryptonita do super-homem e a cantora folk Joan Baez:

...E eu sei que conseguirei te desagregar pouco a pouco e que no fim da noite você estará caído feito um joão-ninguém entre pedaços de kriptonita e eu ajeitarei o batom, o salto alto e partirei vingada, pensando: Dorme meu homem...dorme my baby, that’s my boy...(...) Ela está com um sorrisozinho maduro...na vitrola esta música ridícula que eu pus...Joan Baez...que absurdo...
Guantanamera, guajira guatanamera... (JABOR, Arnaldo, p. 10. São Paulo: 1986, Círculo do Livro)

Estas referências ao universo dos quadrinhos e ao da contestação dos 60-70 universalizam a tragicomédia que se desenrola entre os dois, numa inflexão em que se misturam influências tão díspares quanto Nelson Rodrigues e Glauber Rocha.
Tais referências nos levam imediatamente ao universo da cultura de massa, que se desenvolveu com características originais a partir da década de 30, nos Estados Unidos. Ela constituiu uma temática coerente depois da Segunda Guerra Mundial, atingindo o conjunto dos países ocidentais. Essa temática corresponde ao desenvolvimentos da sociedade americana, em primeiro lugar, e das sociedades ocidentais em seguida. E agora, nos anos 90, sua abrangência se torna por fim mundial. Ela pode hegemonizar mercados que antes lhe eram vedados, como o Leste Europeu. A penetração da cultura de massa apressou a queda dos regimes “socialistas de estado”, com a divulgação da revolução dos costumes, abalando sociedades ainda patriarcais e propagandeando padrões de consumo próprios da juventude abastada da América do Norte. Na década de 60, a explosão da revolução dos costumes no Ocidente impeliu fortemente a esquerda, enquanto nos eighties, sua penetração no Leste Europeu ajudou a derrubar regimes que travavam a plena expansão do capital pelo mundo afora, assumindo essas mudanças um conteúdo reacionário. Ainda é um assunto para se pesquisar o fato de que os socialismos autoritários não conseguiram criar culturas de massa autônomas, nem é esse meu foco, e sim um certo filme brasileiro produzido em 1986.
As conseqüências desse desenvolvimento são bem conhecidos: as massas populares urbanas e de uma parte dos campos têm acesso a novos padrões de vida, entram progressivamente no universo do bem-estar, do lazer, do consumo, que era até então o das classes burguesas. No Brasil, no entanto, essa integração se dá abruptamente, no espaço de poucas décadas, enquanto nos países europeus e nos EUA se deu de fins do século XIX até a sexta década do século vinte. As transformações quantitativas (elevação do poder aquisitivo, substituição crescente do trabalho da máquina pelo esforço humano, aumento do tempo de lazer) operam uma lenta metamorfose qualitativa: os problemas da vida individual, privada, os problemas da realização de uma vida pessoal se colocam, a partir daí, com insistência, não mais apenas no nível das classes burguesas, mas da nova camada salarial em desenvolvimento. A cultura de massa se constitui em função das necessidades individuais que emergem. Ela vai fornecer à vida privada as imagens e os modelos que dão forma às suas aspirações. E isso a nível planetário. Um gigantesco impulso do imaginário em direção ao real tende a propor mitos de auto-realização, heróis modelos, uma ideologia e receitas práticas para a vida privada. Se considerarmos que, de hoje em diante, o homem das sociedades ocidentais orienta cada vez mais suas preocupações para o bem-estar por um lado, e para o amor e a felicidade por outro, a cultura de massa fornece os mitos condutores das aspirações privadas da coletividade.
É porque a cultura de massa se torna o grande fornecedor dos mitos condutores do lazer, da felicidade, do amor, que nós podemos compreender o movimento que o impulsiona, não só do real para o imaginário, mas também do imaginário para o real. Ela não é só evasão, ela é ao mesmo tempo, e contraditoriamente, integração.
O filme de Jabor em dado momento faz uso de uma citação de outro filme, A Um Passo da Eternidade, referência marcante para a geração do cineasta. Um diálogo (ausente de From Here to Eternity) é encenado pelos dois personagens, pouco depois que um deles afirma que o “amor é invenção do cinema americano para faturar”:

Tenente Williams: - Quero te dizer que vou para Tóquio, senhorita Bellaway. Mas sempre lhe amei!
Senhorita Bellaway: - Você vai embora, tenente Williams?
Tenente Williams: - Vou, vou e estarei de volta, e faremos um rancho no Tenesee! (...)
Senhorita Bellaway: - Oh, tenente Williams, eu te esperarei até o fim da guerra! Meu amor, estamos a um passo da eternidade!

Esta encenação é um exemplo da promoção em torno das divindades da cultura de massa, os olimpianos modernos. Esses olimpianos não são apenas os astros de cinema, mas também os campeões, príncipes, reis, playboys, exploradores, artistas célebres, Picasso, Cocteau, Dali, Sagan. O olimpismo de uns nasce do imaginário, isto é, de papéis encarnados nos filmes (astros), o de outros nasce de sua função sagrada (realeza, presidência), de seus trabalhos heróicos (campeões, exploradores). Os novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no imaginário e no real, simultaneamente, ideais inimitáveis e modelos imitáveis; sua dupla natureza é análoga à dupla natureza teológica do herói-deus da religião cristã: olimpianas e olimpianos são sobre-humanos no papel que eles encarnam, humanos na existência privada que eles levam. Um Olimpo de vedetes domina a cultura de massa, mas se comunica, pela cultura de massa, com a humanidade corrente. A importância desta citação no filme é que ela desconstrói e satiriza os protagonistas do filme norte-americano como mitos de auto-realização da vida privada. De fato, os olimpianos, e sobretudo as estrelas, se beneficiam da eficácia do espetáculo cinematográfico, isto é, do realismo identificador nos múltiplos gestos e atitudes da vida filmada, são os grandes modelos que trazem a cultura de massa e, sem dúvida, tendem a destronar os antigos modelos (pais, educadores, heróis nacionais).
Caetano assinala a inauguração da tropicália em seu primeiro disco, quando diz que “os acordes dissonantes já não bastam para cobrir nossas vergonhas, nossa nudez transatlântica. (...) Quem ousaria dedicar esse disco a João Gilberto.” (VELOSO, Caetano, 1967). Aqui se sobrepõem o elogio da bossa nova e o complexo de inferioridade do subdesenvolvido. Essa temática retorna consagrando uma nova mitologia também em textos como o seguinte:

Eu me introduzi na conversa falando com a amiga de Marilyn, enquanto procurava esconder com o corpo o índio brasileiro enfeitado de penas que estava nu exposto na vitrina. O enorme e mole pênis do índio caía até o joelho e eu não queria que Marilyn Monroe visse o tamanho do sexo do índio brasileiro. Enquanto eu conversava com a sua amiga, Marilyn se afastou um passo para trás e permaneceu olhando com o canto do olho o comprido pênis caído do índio brasileiro exposto na vitrina. (...) Depois nós saímos caminhando no parque e eu dificilmente conseguia manter aparente tranqüilidade. Naquele momento eu gritei de ódio e dei um forte tapa na barriga de Marilyn e abandonei as duas perplexas e Marilyn chorando. (DE PAULA. José Agripino de. São Paulo: Max Limonad, p.67, 1988)

Embora José Agripino não seja do “grupo baiano”, ele efetivamente se utiliza de procedimentos semelhantes aos dos referidos artistas: justaposição de Marilyn e do índio brasileiro em situação absurda, em que o índio é símbolo de culturas primitivas e arcaicas que para o brasileiro atualizado e integrado no circuito do grande capital aparecem como atraso vergonhoso. Uma olimpiana que simboliza a nova mulher mitificada por Roliúde no Segundo Pós-Guerra é Marilyn Monroe. A mesma referência colocada num novo contexto obtêm um novo sentido:

-Uma vez...rondando pela noite...eu peguei uma mulher na rua...linda...loura...igual a Marilyn Monroe...levei pro motel, na hora...cheguei lá e vi que era um travesti...lindíssima...e aí...eu fiz ela me comer...eu fui comido pela Marilyn Monroe!!! Eu olhava no espelho e via a Marilyn Monroe me beijando pelas costas...eu...um pai de família brasileiro...um homem de bem...graças a Deus...dei para a Marilyn Monroe...dei e tinha um homem mau morrendo em mim...eu via o cabelo de ouro no espelho...a unha vermelha...e tinha um homem mau morrendo em mim...morrendo...morrendo...um macho canalha morrendo em mim...e eu... campeão de vôlei...forte...morria...e eu me sentia livre...graças a Deus...uma vedete...um Cristo de classe média...uma vedete crucificada...ahhh...de dia eu era marido...de noite...meu verdadeiro nome era Cristina e eu fazia trottoir pelas ruas do Brasil!!! (JABOR, Arnaldo, p.61. São Paulo: 1986)

A relação anal com uma figura mitológica e andrógina tensiona a fala do homem, que se liberta de seu alter ego de “macho canalha” ao fazer sexo com o homossexual que encarna a própria “deusa” mitológica inatingível. Mais adiante, até o filme ET, O Extraterrestre é citado:

-Nós dois somos vítimas de uma doença extraterrestre e temos de nos curar, você e eu pegamos uma doença gelatinosa que nos agarra um no outro, uma gosma do ET, uma gosma que nos une, e a gente quando se junta vira uma geléia, uma terceira pessoa, a gente tem de se salvar um do outro; pelo amor de Deus me salva de você e pelo amor de Deus te salvo de mim...
-Acabou?
-Se salvar um do outro...
-Chega!
-Temos de matar este amor...
-Cala a boca! (JABOR, Arnaldo, ps. 23-24, São Paulo: 1986. Círculo do Livro)

O personagem masculino, anônimo no livro (elaborado a partir do roteiro), exerce a profissão de publicitário. O filme é a fábula do “casal em transe” num mundo onde a comercialização da sexualidade e dos sentimentos é a regra e o colapso da relação homem/mulher leva de roldão muitas certezas. Thales Pan Chacon é assombrado por fantasias “comerciais”: “Você virou uma mulher enorme, cresceu feito um anúncio, você ficou do tamanho do quarto e eu fiquei pequeno, um menino, eu fui diminuindo e você crescendo” (JABOR, Arnaldo, p.20, São Paulo: 1986, Círculo do Livro, 1986)
A linguagem da propaganda do sabão OMO é satirizada a seguir. O comercial de sabão em pó vende também uma idéia de harmonia e felicidade no lar, criando artificialmente assim uma atmosfera para fazer a apologia do produto a ser consumido - e assim iludindo o freguês de que é possível consumir também a harmonia e a felicidade; o texto trabalha a questão da seguinte forma:

E a senhora, dona fulana, responda que ganha vinte caixas de detergente OMO, o que lava mais branco!...Fez o teste da janela? Fiz, sim senhor...e então, dona fulana? Meu marido é um sujo...Muito bem...e a senhora? Eu...eu lavo mais branco...eu sou pura e branca!...Muito bem...é isto aí! Seis anos para chegar a esta conclusão. Aliás, chega! Não agüento mais este papo... (JABOR, p.48, São Paulo: 1986. Ed. Círculo do Livro)

O tempo da tecnociência, da cibernética e dos robôs também influi no discurso amoroso do filme, que se utiliza do espelho para refletir a realidade desta sociedade tecnológica. No monólogo frente ao espelho, a solidão narcísica da sociedade de consumo é mostrada:

Minha cara no espelho...
- Boa noite, senhor, que lhe aconteceu? O senhor está transtornado!...
- É o seguinte, amigo transeunte espelhar, eu era feliz, um robô feliz, ordeiro na minha mediocridade, até que uma mulher replicante fez isso comigo, uma mulher biônica chamada Cármen, uma batedeira de ovos que evolui!...
- Não brinque comigo, robô!!!Diga seu número de série! Over!
- Meu número de série é 2447 e fui construído em 1949 pelo engenheiro sul-vietnamita Fuck Ya...Meu nome é Daisy...Would you like to hear a song?
- Yes, Daisy!!! sing it to me!!! - Daisy, Daisy, give me your answer, do, I go crazy just for the love of you... (JABOR, Arnaldo, p.63. São Paulo: 1986, Círculo do Livro)

Em outro trecho surge um personagem lendário, mais próximo no entanto do imaginário carioca:

Vou-me embora desta casa e sair por aí, como vai ser bom eu sair por aí, vou pela praia molhando os pés...até o Leblon...andar pela praia até o Leblon...encontrar o Tom Jobim...se o Tom Jobim se apaixonasse por mim poderia me salvar...me salvaria desta merda...e eu diria: ‘Querido...o Tom me ama...e como você é inferior a ele hierarquicamente na escala da humanidade, como ele compôs músicas lindas como Lygia e tua obra-prima é aquele jingle em que a gelatina Royal dança um samba com o pudim Royal...eu irei com ele...fique, seu medíocre...’ (JABOR, Arnaldo, p.64. São Paulo: 1986, Círculo do Livro)

Observo neste filme a presença de mitos e lendas de um imaginário “Pop” que nos envolve cotidianamente através da publicidade e do cinema tomando parte no relacionamento do casal. O casal é o alvo por excelência da propaganda da sociedade de consumo, pois representa aquilo que pode ser feito, o tipo de amor que obtêm aceitação unânime na mídia.
A tropicália se faz estetizando as distorções que sobressaem na modernização brasileira incompleta, “doidas” se vistas à luz ultra-violeta da modernidade internacional e sem uma contextualização histórica. Cabe fazer notar que somente na era atômica, ou seja, no pós-45, a humanidade atingiu o potencial de destruição total não só dela mesma, mas de praticamente toda a vida no planeta, e que essa possibilidade apocalíptica ainda era real em 1986; porém, a partir dos anos 90, ao findar o milênio, o fim do mundo foi adiado, passou a ser administrável. O fim de Eu Sei Que Vou Te Amar é pontuado pela imagem do casal protagonista se abraçando na praia, entre as ondas, realizando finalmente o mito de auto-realização visto na tela do cinema. No final do filme, Jabor tende a fazer um apoteótico fim de festa, como se os problemas fossem jogados para o alto, dissolvidos e esquecidos num frenesi dionisíaco.





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