Uma das faces da poesia
A poesia não enche a barriga
A poesia não pára a guerra
A poesia não come verdura
A poesia não planta na terra
A poesia não salva da morte
A poesia não melhora sua sorte
Não urina, não defeca, não sua, não goza
A poesia não cheira nem fede
A poesia não fala palavrão
Aliás, nem fala, cala
A poesia não traz dinheiro
Não traz progresso
Segundos de sucesso
De alguns imortais
A poesia não acusa ou perdoa
Não se cansa, não enjoa
Não facilita nem atrapalha
Não junta, não espalha, não encalha
A poesia não compra nem vende
Não elogia, não ofende
Aos que não sabem ler
A poesia não sofre nem faz sofrer
Não sente medo, não tem segredo
Não tem espasmo, não soluça
A poesia não é redonda nem quadrada
Jamais se sente culpada
Se a culpam sem merecer
A poesia não é grande nem pequena
Não é nervosa nem serena
Não é patriota nem foge à luta
Não tem preguiça, mas não labuta
Não tem lugar para a riqueza
Não tem horário para a pobreza
Não se revela para ninguém
Não tem agenda
Poesia não se pega, não se adoece
Não se come, não se espreme
Não se guarda no congelador
A poesia não se troca
Não se empresta, não se trai
Não enruga, não engessa, nem perde a cor
A poesia não consta do planos de Governo
A poesia não consta dos orçamentos participativos
Das verbas públicas desviadas
Das obras sem conclusão
A poesia mal sobe a favela
Não deixa seqüelas em quem ouve ou declama
A poesia não prende bandido
Não moraliza a polícia
Não ama, nem reclama
Não vira notícia, não sensacionaliza
A poesia não rouba, nem esmola
Não ignora, nem vai à escola
A poesia não sofre atentado
Não tem pureza ou pecado
Não é virgem, disso eu sei
A poesia não sente sede
Não sente fome
Nenhuma dor a consome
Nenhum amor a conquista
A poesia não é artista
Não tem nenhuma profissão
Não é descrente
Não tem religião
A poesia não tem time pra torcer
A poesia não tem impostos a recolher
A poesia não tem contas a vencer
A poesia não tem ninguém pra sofrer
A poesia não conclui, não encerra
Não opina, não vota, não espera
A poesia não ajuda ao miserável
A poesia não ajuda ao doutor
Não é ao menos confiável
Mas é digna de louvor
Não entende de caridade
Não entende de maldade
É seca, conforme escrita
Feia ou bonita, é assim
A poesia não engana nem se engana
Não é chique nem vulgar
Não fere, mas machuca
Às vezes envelhece, não caduca
Não é elegante, nem impopular
A poesia não tem emblema
Não tem problema
Não vive em crise
Não tem reprise
Não tem mérito, nem demérito
Não é cheia, nem oca
Não tem ouvido, nariz ou boca
Não tem crânio, nem cabelo
Não tem barriga, nem é modelo
Não tem molde, nem moldura
A poesia não sente frio ou mormaço
Não sente arrepios ou cansaço
Não tem pavor ou tranqüilidade
Não faz inimigos ou amizades
A poesia não blefa, não deve nem teme
Não adoece, não enfrenta fila, não geme
A poesia não estuda línguas
Mas as fala
Não procura emprego
Não deixa recados
Não assiste novelas
Não faz palavra cruzadas
Não cozinha em panelas
Não se prostitui
Não entra em furadas
A poesia não é assaltada
Violentada, seqüestrada, roubada
Abandonada, recusada, perturbada
Internada, enganada ou mal amada
A poesia não se droga
Não enche a cara
Não vence barreiras
Não enfrenta barras
Não come o pão que o Diabo amassou
A poesia não deixa-se amar, nunca amou
A poesia não tem dependentes
Não posta correspondência
A poesia não arruma os dentes
Não paga consulta, não compra remédios
Não tem lepra ou lombriga
Não tem febre, nem dor de barriga
A poesia é assim
Sem problemas financeiros
Sem meias palavras, sem surpresas
Sem despesas, sem olheiras
Sem telefone grampeado
Sem a menor emoção
É esnobe com as dores
Com as flores, com os amores...
Com os poetas
A poesia é crua
A poesia é apática
É luxuosa, elitista
É pra quem sabe ler
Escrever, se entreter
Saborear
A poesia custa caro
A poesia custa tinta
Custa pestana, custa banana
Custa sono, custa abandono
Custa família, custa pilha
Custa frustração, custa escritor
Mas por ser poesia, se isenta
De todas as fraquezas humanas
Por ser poesia, se permite
A ser simplesmente poesia
Por ser poesia, faz o que faz
Por ser poesia, deita e rola
Por ser poesia, tira o corpo fora
Por ser poesia, se mete em tudo
Por ser poesia, atua nos bastidores
Por ser poesia, vende a alma e traí
E ninguém faz nada
Ninguém protesta ou prende
Ninguém fala, fuxica ou denigre
Todos a amam, a querem
Se deixam iludir
Como a vida é cheia de dores
Só temos a poesia para fugir
( Codo. Recife, Pernambuco, dezembro de 2002)
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