Usina de Letras
Usina de Letras
278 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62165 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22531)

Discursos (3238)

Ensaios - (10349)

Erótico (13567)

Frases (50574)

Humor (20028)

Infantil (5423)

Infanto Juvenil (4754)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140790)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6182)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Ensaios-->PanAmerica 2000 III -- 27/01/2002 - 18:07 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
PanAmérica Ano 2000 II

[para Wir Caetano]

Introdução

Antes de iniciar a análise de PanAmérica, de José Agrippino de Aula, Vamos comentar um pouco a bibliografia sobre o livro, e dos anos 60 em geral. Ao ler Estilhaços da Cultura, de Evelina Hoisel, notamos que a autora se baseou bastante no texto Cultura e Política entre 1964-69, de Roberto Schwarz. Verificamos que Celso Favaretto, autor de Tropicália, Alegria, Alegoria, também baseia-se bastante neste artigo. Porém, ao lermos tal artigo, lemos também uma nota introdutória que fala que o artigo contêm equívocos, e que o autor pretendeu fixar uma experiência de geração, mais do que fazer ciência. Concordamos parcialmente com o texto de Schwarz. A parte em que mais nos aproximamos de sua posição foi a seguinte: “a direção tropicalista registra, do ponto de vista da vanguarda e da moda internacionais, com seus pressupostos econômicos, como coisa aberrante, o atrazo (sic) do país” (SCHWARZ, 1992, p.77).
Fizemos ao artigo de Schwarz as seguintes observações:
1. Teve formulações pouco claras. Quando ele afirma: “o leitor verá que o tempo passou e não passou”. O que, efetivamente, não passou, ao contrário do tempo? A atualidade das questões?
2. O artigo se alongou bastante na busca do fermento social específico das obras de arte dos anos 60. No entanto, não conseguiu dar conta daquilo que, em meio àquela produção, seria esforço dos artistas para realizar aspirações universais da humanidade. Schwarz buscou insistentemente descobrir qual classe social estaria por trás de cada um das obras de arte, fazendo uma “sociologia das classes” por demais reducionista do fazer artístico.
3. O artigo atacou a aliança entre os trabalhistas e os comunistas, repudiando sua aliança no período 1950-64, quando de fato essa aliança começou em 1945, foi rompida e só retomada em 1954, e marcou muito o período de Goulart (1961-64). No entanto, Schwarz escreveu dando a entender que o PC e Jango teriam outra alternativa do que essa aliança. E, principalmente, Schwarz mostrou não compreender o dilema de Goulart, que era um reformista que atuava de forma a evitar a revolução socialista, e não estava preparado para a contra-revolução. Em 1964, Goulart ficou dividido entre chamar o povo para a revolução, arriscando-se a uma guerra civil, e a aceitação do golpe: em ambos os casos, ele negaria sua natureza reformista. A solução que Jango encontrou foi a renúncia e o exílio.
4. Houve um abuso do termo “populismo”. No texto encontramos fragmentos tais como: “a esquerda populista era moderadíssima”. Schwarz afirmou que a “reivindicação econômica” era alimentada pela “burguesia populista” (?).
5. A análise do tropicalismo e do Cinema Novo foi rápida e rasteira. O autor nos pareceu ter se concentrado mais no campo teatral, mais próximo de seu entendimento. Outro dado um tanto irritante é o menosprezo dos intelectuais brasileiros em bloco (em dado momento ele diz que “a mais reputada poesia brasileira ressuscitou o cortejo dos preteridos do capital”). E nisso, ele se refere às marchas com Deus pela família e pela liberdade. Outro dado é o abandono do antiimperialismo da esquerda: os combates contra o capital estrangeiro e o imperialismo são adjetivados de “vibrantes” e “imaginários”.
6. As razões acima nos fazem acreditar que o verdadeiro marco para o fim dos anos 60, para Schwarz, foi a fundação do CEBRAP, e não o AI-5.
É com base, portanto, nessa postura de desconfiança que fizemos a releitura de toda a bibliografia que se referiu à tropicália.


1. As Formas da E(pop)éia

“Vejo campos de agonia/Velejo mares do não/Na ponta da minha espada trago os restos da paixão que herdei daquelas guerras/Umas de mais, outras de menos.” Paulo Martins em Terra em Transe

A e(pop)éia PanAmérica (Editora Papagaio, 2001), segundo livro de José Agrippino, constituiu-se em quatro partes. A primeira falou da tumultuada refilmagem de um clássico inspirado na Bíblia, à la Cecil B. de Mille. Na segunda parte, o narrador se concentrou na relação com a atriz Marilyn Monroe. A terceira parte foi acentuadamente política. A quarta e última, por sua vez, tratou do apocalipse.
Curiosamente, essa epopéia excluiu a cidade de São Paulo, origem do autor do livro, dos lugares onde ela se passa (identificamos a Califórnia e o Rio do Janeiro). A respeito de PanAmérica, destacamos as seguintes palavras de Celso Favaretto:

Entretanto, se ‘Lugar Público’ é um romance em que ainda se reconhecem elementos da profundidade, embora não psicológica, da narrativa moderna, pois enfatiza a reflexão sobre a banalização da experiência e o esvaziamento da consciência, ‘PanAmérica’ já não é um romance. Classificado por Agrippino como ‘epopéia’, pode ser considerado um caso particular das maleáveis formas ficcionais que, articulando várias tendências experimentais, abriram o campo da escrita. (FAVARETTO, 2001)

Supomos que PanAmérica também prosseguiu com essa investigação sobre a banalização da vida. O texto refere-se muito a episódios envolvendo sexo e morte, mas no decorrer da narrativa não há nenhum aprofundamento psicológico. Numa passagem, o “eu” do narrador sugere que sua amada Marilyn seria pura mercadoria: “Eu rasguei com a unha a tampa de papel que era a virgindade de Marilyn Monroe e depois introduzi meu membro na vagina apertada e úmida” (AGRIPPINO, 2001, p.62). Favaretto escreveu que a narrativa foi constituída da seguinte maneira:

Exterioridade pura, corrói o sujeito da representação. O eu reiterado que o narrador dissemina no texto não fixa nenhuma identidade, antes a pulveriza (...). Máquina histérica, a enunciação é ritmada pela repetição, o que pode ser associado à forma industrial da produção cinematográfica (FAVARETTO, 2001).

O texto se organizou em curtos capítulos, sem título e cuja ligação é feita somente pelo “eu” que não fixou uma identidade. Não notamos clima de festa em PanAmérica. Há redundância, desgaste e pesadelos que se referem sempre a desejos interditos pela sociedade. Talvez PanAmérica seja a narrativa de um “eu” dominado que se viu obrigado a conviver com as ficções do dominador: com elas se choca, agride ou penetra, mas não consegue criar as próprias. A narrativa de PanAmérica por vezes citou pormenores, mas se distanciou bastante de uma narrativa realista à moda de Hollywood, que nos pareceu ser sua matéria-prima. As estrelas de Hollywood são ridicularizadas e postas em papéis que jamais viveram nos filmes. As cenas que Marilyn chegou a protagonizar em PanAmérica se aproximaram do pornográfico, em tudo diferentes da ingenuidade de um filme como estrelado por ela e citado no decorrer da narrativa, Bus Stop. Os acontecimentos são narrados para um olhar de fora, com uma objetividade técnica, excluindo-se, na maior parte das vezes, qualquer envolvimento afetivo. Ainda Segundo Favaretto:

O vazio de realidade é a sensação que fica ao final da leitura. Mais propriamente, a volatilização do simbólico na narrativa, com o que não se tem mais um romance, mas uma ficção objetiva em que toda a história é desarticulada, por efeito da técnica narrativa, é reduzida a acúmulo de clichês, objetos, materiais e comportamentos industrializados que, segundo Agrippino, têm uma ‘presença superior’.

Neste contexto, a ambivalência domina até o caos final, sem que surja qualquer sinal de uma nova ordem. Um fenômeno, uma palavra, um pensamento, todos oscilaram entre uma coisa e outra. Retornamos a Favaretto:

A falta de fé no poder da palavra, diz ele, levou-a ao que denominou ‘texto de desgaste’, todo calcado nos estereótipos, restos e cacos da cultura de consumo, significantes-objetos industriais prontos para a circulação, em que o desejo é reificado (FAVARETTO, 2001).

Assim sendo, focalizemos o objeto do desejo por excelência que é Marilyn Monroe. O narrador comentou a respeito dela: “Eu levantei-me depois de algum tempo e Marilyn Monroe disse que estava com medo e que era perigoso ela ficar grávida (AGRIPPINO, 2001, p.117). Logo, poucas páginas adiante, o narrador se viu às voltas com um agressivo exército de fetos, que nos pareceu um símbolo da culpa e do temor associados à sexualidade, num mundo em que o campo da sexualidade passou a ser campo da vida privada por excelência:

Marilyn Monroe agachou sobre os joelhos, abriu as pernas e lançou um horrível lamento, e de sua vagina vermelha escapou em grandes hordas o exército de fetos. A multidão minúscula de fetos abandonou o útero de Marilyn Monroe armado de lanças e espadas (AGRIPPINO, 2001, p.217).

Assim como neste momento acima a sexualidade foi relacionada a um produto asqueroso, mais adiante a liberdade e sua representação (a famosa estátua em Nova York) foram também transfiguradas negativamente:

Primeiro a estátua de concreto mexia vagarosamente e depois aumentou a velocidade e logo em seguida a massa humana estava transformada numa pasta de carne e a Estátua da Liberdade levantou com ambas as mãos o imenso depósito e sorveu a pasta de carne. (AGRIPPINO, 2001, p.217)

No texto acima, a Estátua da Liberdade se transformou num monstro devorador das massas. Podemos tentar decodificar essa simbologia: a vigência da liberdade por um lado permitiu a criatividade e o prazer, mas cobrou um preço dos habitantes do centro do império, que sofreram com a destruição de valores e os choques culturais que ela engendrou.

2. O Império e os Estilhaços

Embora Favaretto tenha escrito logo a seguir que “a referência à situação histórica brasileira é óbvia” (FAVARETTO, 2001), julgamos que a posição do enunciador foi ambígua diante da intervenção norte-americana na República Dominicana (que teve auxílio de militares brasileiros):

Todos os oficiais dominicanos e norte-americanos que se encontravam sobre o convés do porta-aviões sorriram e cumprimentavam-se mutuamente devido ao êxito da operação (...). Os comunistas atacavam as forças do governo e eu seria reconhecido como um dos soldados do governo (...). O regime capitalista e as forças do governo haviam caído e os comunistas estavam no poder. Eu saltei de alegria no meio da multidão e tomei um ônibus abarrotado de camponeses (...). Eu gritei espremido na multidão irada. O porta-aviões, que transportava o batalhão de marines, atracou no cais, e a multidão se dispersou em pânico. Eu balancei os pés sentado na longa mesa de mármore do frigorífico e olhei para as altas e volumosas cabeças dos comunistas que tinham sido enforcados depois da invasão dos marines (...). Eu olhei as cabeças dos comunistas conservadas no frigorífico do Departamento de Ordem Política e Social, e as cabeças eram muito grandes e lembravam cabeças de papelão pintadas usadas no carnaval. Os olhos estavam abertos e a língua para fora, e havia outra língua comprida e fina amarrada ao pescoço da enorme cabeça como uma gravata. (AGRIPPINO, 2001, p.103).

Notemos portanto: o eu acima ficou inicialmente do lado dos comunistas, mas logo se passou para o lado dos invasores, para finalmente contemplar as cabeças dos comunistas executados. Aqui não existiu nenhuma nota de revolta ou indignação, apenas mera contemplação da morte e da tortura.
Julgamos necessário tentar decodificar a mitologia presente em PanAmérica, mitologia esta que é volátil, ou seja, se desmaterializa aqui para se tornar outra coisa acolá. A mitologia seria para dar forma, superar e dominar as forças naturais na imaginação. O desenvolvimento da produção (evidente em PanAmérica, que comentou bastante a presença dos supermercados e uma infinidade dos produtos) provocou nos produtores um rebaixamento de sua capacidade mental. Sem clareza de sua função social, descrentes do marxismo e do pensamento sistemático como um todo, enxergaram no desenvolvimento das forças de produção característico do capitalismo desenvolvido uma fonte de fantasmais poderes estranhos.
A mitologia de Agrippino foi diferenciada. O mito originalmente era uma primeira fala sobre o mundo, uma primeira atribuição de sentido ao mundo, sobre o qual a afetividade e a imaginação exerciam grande papel, e cuja função principal não era explicar a realidade, mas acomodar o ser humano ao mundo. Em PanAmérica emergiram anseios e desejos que remeteram à nossa natureza inconsciente e primitiva. Marilyn Monroe e Joe Di Maggio, respectivamente uma artista e um esportista de sucesso, foram cobertos de uma aura do mito e colocados numa outra lógica, diferente daquela em que operavam quando eram referidos nos meios de comunicação. Em PanAmérica a vida foi percebida como um todo ininterrupto e contínuo. As fronteiras entre reino animal, plantas e homens são rejeitadas. Nada possui forma definida, invariável, estática. Por súbita metamorfose, qualquer coisa podia se transformar em qualquer coisa. Se o mundo mítico gerado pela narrativa teve alguma lei, foi a metamorfose.
Podemos dizer que a mitologia gerada por PanAmérica transfigurou uma nova etapa do capitalismo, remanejando personagens da mídia que atuaram como novos mitos. Então, Marilyn Monroe e Joe Dimaggio se tornaram representações mítico-religiosas, seres sobre-humanos. Essas estrelas possuíram nome. Já as personagens latino-americanas, os negros e os homossexuais foram sempre anônimas. Há uma espécie de hierarquia em PanAmérica. Marilyn, uma vez morta por Dimaggio, reapareceu viva e “respondeu que esteve fora por dois meses e que foi muito bom” (AGRIPPINO, 2001, p.193). As fantasias que Marilyn protagonizou com o narrador e o gigante Dimaggio são um desrecalque, nelas se evidenciam desejos reprimidos na realidade, e que encarnados nesses seres sobre-humanos, foram realizados na imaginação.
Embora a mitologia de PanAmérica tenha sido narrada friamente, através de um olhar distanciado, :Favaretto julgou ver pelo menos um signo de engajamento e protesto:

Mas há outros (índices) como o índio brasileiro na vitrina de uma cidade americana, nu, enfeitado de penas e com um pênis enorme e mole, que caiu até o joelho, portanto exangue, desernergizado à custa da exploração. Esse objeto exótico, imagem brasileira pronta para exportação e consumo, é um raro signo motivado da narrativa, a única manifestação, salvo engano, de um sujeito historicamente afirmado: ‘eu sofria internamente’. (FAVARETTO, 2001)

O tema do índio se mostrou uma espécie de estilhaço do Brasil. Curiosamente, nos remete à tradição literária brasileira, com a qual PanAmérica nos pareceu em atrito e grande tensão. No livro seguinte que escreveu (e não conseguiu publicar), chamado United Nations, Agrippino abandonou o português do Brasil para escrever diretamente em inglês, um índice de que a tensão foi resolvida com a ruptura. Apenas episodicamente e de maneira impiedosa apareceram outros estilhaços. Podemos também citar a maneira cruel como outro dado da cultura brasileira (o candomblé) foi apresentado:

Eu e Marilyn fomos envolvidos pela multidão de tios, tias, sobrinhos, cunhadas, irmãos e fomos transportados com empurrões e risos para o interior da sala (...). Dimaggio ligou a televisão e apareceu um grupo folclórico brasileiro representando uma macumba. Os negros dançavam e pulavam ao som dos tambores, e uam negra gorda de charuto na boca degolou um frango numa panela e depois enfiou a panela cheia de sangue na cabeça de uma das negras que dançavam. A numerosa família soltou gargalhadas e se agitou nos divãs apontando a televisão. Marilyn Monroe procurava falar com a família gentilmente e explicar que era um ritual primitivo, mas a sua voz era abafada pela piadas e pelos risos. (AGRIPPINO, 2001, p.165)

Como vimos acima, a cultura brasileira nacional e popular padeceu ao ser observada de um ponto de vista exterior em PanAmérica, ponto de vista esse que se julgou superior e foi arrogante mesmo quando buscou compreender uma outra tradição, ao invés de ridicularizá-la (Marilyn chamou a umbanda de ritual primitivo, ao tentar explicar para a família o que viam na televisão).
E, se o ponto de vista norte-americano maltratou a cultura brasileira, a narrativa como um todo reuniu elementos de vários países das Américas, e de certa forma pareceu ter uma visão turística do Brasil:

Eu abandonei o táxi, e me misturei a uma pequena multidão de turistas que entrava no elevador. Eu e a pequena multidão de turistas saímos do elevador e entramos na cabeça do imenso Cristo de Concreto situado no topo do morro de pedra. (AGRIPPINO, 2001, p. 126)

Acima, podemos observar também que o Cristo Redentor foi referido de foram indireta, assim como a cidade do Rio de Janeiro, apesar desta cidade ser uma grande referência internacional do Brasil e da América Latina. Poderíamos dizer que, como em PanAmérica, não existem referências a Salvador, Belo Horizonte ou São Paulo – embora essa última fosse a cidade de origem do autor do livro – que essa epopéia teria com sua origem brasileira uma relação ambivalente semelhante àquela que o narrador teve tentando esconder o pênis enorme do índio brasileiro dos olhos de Marilyn.
Essa relação tensa e potencialmente explosiva ficou evidente também na relação entre o narrador e seu soldado amante (o que nos pareceu claramente uma provocação contra a ditadura militar):

E depois chegou o soldado de lábios vermelhos que eu havia conhecido no dia do golpe militar e nós deitamos entre as granadas. Eu olhava para uma correntinha dourada que ele trazia no pescoço. Havia uma medalhinha de uma santa e um número gravado numa minúscula placa (AGRIPPINO, 2001, p.99).

Além dessa referência contestadora, existiram também passagens que se referiram a Che Guevara e Karl Marx. Vejamos como surgiu o filósofo alemão em PanAmérica: “Eu citei algumas passagens de O Capital de Karl Marx e disse para a platéia que as transformações sociais seriam inevitáveis” (AGRIPPINO, 2001, p.161). Sendo assim, Marx foi apenas mais uma parte do espetáculo. Não há referências a classes em conflito em PanAmérica. No entanto, em dado momento o narrador identificou-se como uma determinada classe:

Os atores representavam uma família feliz, e eu via na porta da casa um vaso de flores, e eu me sentia feliz de ver aquela família classe-média americana, o pai conversando com a filha, o filho conversando com a mãe e os irmãos. A harmonia e a felicidade de uma cena se transmitiam para mim, e eu sorria imaginando que eu futuramente poderia formar uma família igual àquela (AGRIPPINO, 2001, p.35).

Percebemos aqui o quanto o narrador se modificou, indo de um extremo de ruptura, tendo relações homossexuais entre granadas, e um extremo de desejo de integração, identificando-se com a classe média.
Na tarefa de decodificar essa epopéia, concluímos que o texto de Agrippino não seria nem de longe um poema heróico que se tornou referência para um povo. É antes o canto de uma privação, desencanto com o projeto nacional-popular da esquerda, ódio aos militares e ao nacionalismo da direita. Falamos em canto, mas existem poucas referências à música em PanAmérica. Foram citados os Beatles, com os quais o narrador se encontrou num avião, pouco antes de vomitar. Existiu também o caso de uma “batucada de negros” que foi ouvida pelo narrador no instante em que esse comeu um sanduíche contendo a carne de uma mulher morta que o gigante Dimaggio havia matado. Ou seja: a música não foi, em PanAmérica, relacionada com algo agradável. O cinema -- e aí se subentenda que o que fazemos no Brasil não foi considerado cinema – foram os principais fornecedores de inspiração. A pouca cerimônia com a qual o narrador dispôs dos personagens hollywoodianos teve uma continuidade nos embates violentos que fazem as vezes de relação entre as pessoas no decorrer do texto. Não existiram emoções ou sentimentos antecedendo o sexo: apenas seres tomados enquanto objetos dotados de ânus, pênis ou vagina. Num determinado momento, os corpos dilacerados, com seus sexos em pedaços, chegaram mesmo a levantar voô. Sintomático notarmos que o corpo em PanAmérica foi queimado (como no caso do negro que o dragão da Ku Klux Klan carregou), foi despedaçado (como no caso da mulher sem corpo que DiMaggio teria despedaçado) e foi possuído em sua dimensão de materialidade bruta (caso dos soldados no exército). Para Agrippino, o corpo foi também um palco dos dramas da sociedade, sofrendo, gozando e se “despedançando” entre os objetos pop-trash de uma indústria cultural em transe.
A propósito das relações entre os personagens de PanAmérica analisemos a batalha entre os anjos e as arraias. Ela nos pareceu uma grande batalha campal pela posse de Marilyn: “Um grande número de arraias e anjos despencava ferido do alto e explodia de encontro à areia da praia”(AGRIPPINO, 2001, p. 172). Mas talvez tenha simbolizado uma guerra real. As arraias eram comandadas pelo gigante DiMaggio. Os anjos estavam do lado do narrador. Marilyn agiu como espécie de Helena de Tróia, tendo originado a luta. O Papa, Martin Luther King e os bonzos budistas pediram paz para os contendores, mas o próprio narrador se encarregou de dar um chute no Papa Paulo VI, os anjos vaiaram o Papa e a luta continuou. Já nesse momento a posição do narrador não foi ambígua. Ele se decidiu pela continuidade do conflito. A presença de Martin Luther King e dos bonzos budistas, figuras que se manifestaram contra a guerra do Vietnã, nos deixou a entender que o narrador ficou do lado do imperialismo norte-americano.
Como no trecho supracitado, não notamos clima de festa, barato ou curtição em PanAmérica. Existiu uma oscilação entre o tom apocalíptico e uma tentativa de integração que não se completou. Agrippino não nos pareceu ter, ao contrário da maioria dos artistas Pop, uma abordagem mais positiva que negativa do mundo contemporâneo. Tanto que a epopéia terminou com uma enumeração cada vez mais acelerada, enunciação frenética de um narrador cuspindo substantivos à maneira de uma metralhadora. E dava-se o fim de todo aquele admirado punhado de estrelas anunciado anteriormente. Tudo se findou com o aparecimento de um peixe cósmico:

Eu estava preso pelo pé a duas mulheres que se agarravam a um poste elétrico e eu consegui agarrar o posto enquanto a multidão misturada à tinta amarela escorria no vale e nas ruas da cidade. Eu saltei para a rua, atravessei a praça tomada pelos caranguejos e corri para a estação de trem (...). O peixe cósmico entrava em decomposição e a carcaça imóvel atacada pelos micróbios. As pontiagudas e brancas espinhas apareceram na carne branca em decomposição, e a torre do aeroporto ao longe. (AGRIPPINO, 2001, p.249-255).

Finalizando, observemos no texto acima o mal estar com que o narrador narrou a decomposição geral. Em PanAmérica, flagramos um mundo em decomposição, sob os ventos novos dos anos 60. O apocalipse foi um contraste triunfal com a travessia do mar vermelho, fragmento de superprodução hollywoodiana dessacralizada no início de PanAmérica. Dela tiramos a seguinte mensagem: não adiantavam mais as superproduções hollywoodianas e realistas que tentaram nos ajustar ao realismo: o real nunca funcionou como eles pensavam.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui