Usina de Letras
Usina de Letras
82 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62263 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10450)

Cronicas (22539)

Discursos (3239)

Ensaios - (10378)

Erótico (13571)

Frases (50653)

Humor (20039)

Infantil (5450)

Infanto Juvenil (4775)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140816)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6203)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Jornada Fantástica -- 31/10/2002 - 14:20 (Noemia dos Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

JORNADA FANTÁSTICA








Ela bateu a poeira da roupa, sorriu. Estava voltando pra casa. Abraçou os primos já com saudades e lágrimas nos olhos. Duas semanas, tão rápido... Antes de entrar no avião acenou pras três silhuetas, até ano que vem! Não fosse tão longe, viria mais vezes. A família estava diminuindo, os mais velhos morrendo, as histórias se perdendo na poeira do sertão. Talvez fosse o caso de escrever um livro, quem sabe, contando essa vida dura e desatinada, compartilhada pelas gerações anteriores e - por que não? - pela sua própria. Voltava pra casa mais rica: uma cabra, um cabrito, três pés de mexerica. Deixou suas posses aos cuidados dos tios, mas era bom saber-se fazendeira. No avião esqueceu por alguns momentos da saudade e da tristeza, os passageiros a seu lado estavam viajando há horas e estavam loucos pra contar as novidades. Divertiu-se com o paraibano e o paulista, amalucados e bem-humorados. Bom pra chegar em casa com alto astral apesar o frio louco que estaria fazendo por lá.
No dia da chegada o primo a esperava meio sem jeito, fazia já um ano que não se viam, parecia esquecido de seu modo afetuoso e dos laços que os uniam. Acabou-se a timidez no caminho do aeroporto até a casa da tia: duas horas sacolejando pela estradinha mal asfaltada e escura, melhor conversar pra passar o tempo mais depressa. Chegou na madrugada, como sempre. Acordou a tia, os primos, os vizinhos. Livrou-se dos agasalhos, calorzinho tímido. Dormiu a sono solto até o meio-dia, todo mundo pisando macio pra não acordá-la. Sentiu falta daquele aconchego, aquela doçura quase bruta. O calor infernal - santo calor! - convidava a trocar a roupa sisuda do dia-a-dia pelo alegre e descontraído uniforme de férias: bermuda, camiseta, chinelão. Dias de sol e malemolência, ah, saudade!
Passou o primeiro dia se acostumando ao passo lento das coisas, o calor que dificultava os movimentos, um não fazer nada danado de gostoso. Sentou pra conversar, ouvir as novidades. Cidade pequena, parada. O que se move são as sombras, de acordo com o sol. E as pessoas se escondem nas casas, debaixo das árvores, esperando o tempo passar e as coisas seguirem seu ritmo lento e implacável em direção à morte. Triste, inevitável, poético em sua conformação.
Perguntou por todos, vivos, mortos, desaparecidos. Alguns caíram na vala comum do esquecimento, ninguém sabia por onde andavam. Outros seguiam lutando, debatendo-se no lago negro da sobrevivência. Ela pensou que talvez fosse privilegiada, salvara-se do círculo vicioso que arrastava a família para a desgraça inevitável. A avó passou fome, os tios perderam-se por causa da bebida, as tias, por causa dos homens. Sua mãe era exceção, bendita exceção. Recusou-se a cair no abismo, resistiu bravamente ao destino que se desenhava para ela como se desenhou para todos. Assim como a mãe, ela também era uma vencedora, mesmo sem ter participado da luta, daquela luta. Travava outros combates, em outros campos, a seu modo.
Algumas vezes acordou assustada, sem saber onde estava. Olhou o mosquiteiro branco, caprichosamente esticado pela prima. E sentiu um aperto no coração, como se temesse a morte. A sua, a de seus queridos, não sabia ao certo. Um ano antes viera curar-se da dor da perda, melhor nem lembrar. E sentia agora essa dor, essa ausência anunciada, sem saber de que ou de quem. Ou seria ainda a angústia passada, a ansiedade pelo futuro que precisava ser planejado, reconstruído? Melhor dormir, esquecer. Fez uma prece ao anjo da guarda, Daniel, e dormiu o sono dos justos, se é que há justiça nesse mundo de meu Deus. Então acordou no dia seguinte com sede de novidades, com vontade de abraçar o mundo. Tanto por fazer... Haveria tempo? Tinha todo o tempo do mundo, poderia fazer o que quisesse, ser o que quisesse. Demorou a descobrir, mas agora era tarde: já provara o doce fruto da árvore do conhecimento, não poderia apagar da memória o sabor, a textura, a sensação de saber-se pronta, inteira, poderosa, senhora de seu destino. Agora era tarde, jamais seria ela mesma de novo.
Encontrou-se com o próprio Tempo, um senhor de cem anos, pai de muitos filhos, cercado de netos, bisnetos, agregados. Quase surdo, lúcido e brincalhão, espantou-se ao saber que ainda não se casara. Por ali meninas de treze anos pariam crianças e juntavam-se a homens mais velhos a fim de aumentar a população. Aos trinta, com seis ou sete filhos, já estavam velhas e desiludidas. Ela não queria isso pra si, que ficasse pra quem tem coragem. Despediu-se do Tempo e seguiu seu caminho no sertão de volta pra casa da tia, no meio da noite escura. No caminhão, pensava de novo na morte. Aquele lugar parecia tão cheio dela e no entanto lá estava aquele homem de cem anos com seus filhos, netos, bisnetos, sobrevivendo com todas as condições desfavoráveis e contra todas as estatísticas negativas. É, o mundo é mesmo engraçado, a vida é mesmo louca...
À noite, antes de dormir, hora de jogar conversa fora com a tia, atarefada o dia inteiro. Ela lembrava de todos os fatos com datas, lugares, pessoas, coisas que a mãe confundia um pouco. A primeira viagem a São Paulo, de pau-de-arara e trem, sofrida e interminável. A tia lembrava-se das estações, pessoas presentes, cidades. A mãe já esquecera as datas e seqüência de estações, mas lembrava o propósito e que chorara sem querer ir. A vida seria outra se tivesse ficado. Ela olha para as duas, tão parecidas. Uma grande e quase amarga em sua revolta. A outra pequena e aparentemente frágil. A tia guardava em si a tristeza da vida que não deu certo; a mãe esquecera os motivos por que sofrera na juventude. Ambas marcadas, raízes de uma mesma árvore, da qual ela se alimentava há tempos. Sentia-se parte da árvore, a seiva correndo em suas veias. Sentia também o sofrimento das duas em si. Impossível desvencilhar-se destes estigmas de família.
Conheceu gente nova. Muitos nomes, difícil lembrar até ano que vem. Alguns até já conhecia, mesmo pensando não conhecer. Sempre sorridentes, amistosos. Simpatia sertaneja, de chapéu de couro e dialeto diferente, quase uma nova língua. Ela achava graça nos termos, no jeito de falar. Musical, inesperado. Um presente poder ouvir. Nas Rodas de São Gonçalo apertou muitas mãos, soube muitos nomes. Não lembraria a metade depois, tinha certeza. Mas o que importa? A vida é efêmera como sua memória para nomes, principalmente aqueles, tão inventivos. A dona da casa pagava promessa ao santo; era costume antigo e quase em desuso convidar os vizinhos para dançar as Rodas, pagar promessa alheia. Muitas mulheres, os homens ficavam tímidos, só olhando. Dançavam aos pares, algumas puxando a cantoria. E se revezavam, há que se ter muito fôlego debaixo daquele sol. Ela quase atrapalhou a função na afoiteza de fotografar, aproveitar o sol, o desenho das sombras, o efeito da poeira subindo enquanto os pés socavam o chão. No final da tarde estava exausta, cansada só de olhar aquela gente indo e vindo, repetindo os passos marcados dezenas de vezes. Era bonito, no fundo lembrava alguma coisa da sua infância, a primeira viagem, quando comera doce até não poder mais e correra pela casa do devoto da vez atrás das outras crianças. Ah, memória...
Sábado de sol, como sempre. Dia propício para passeio, pegar um barco para a Ilha da Coroa, do outro lado do Velho Chico. Os meninos sorriem, quase caem na água, empolgados. Primeira vez, nem sabem nadar. Cruzar o rio é como viver uma aventura fantástica, apesar dos meninos viverem ali desde pequenos. E do rio estar ali desde sempre, vida atravessando o sertão. Ela pensa nessa força que alimenta pequenas cidades, que irriga as plantações de uva, manga e cana-de-açúcar dos gringos. Ela não sabe as histórias do Velho Chico. Será que os gringos sabem? Os meninos também não sabem, a escola não ensina e eles não aprendem. Basta mergulhar nesta misteriosa água que vem desde Minas, ela conta sua própria história. Na prainha da ilha a areia é quente, é preciso esconder-se do sol de quase meio-dia. Nas conchinhas espalhadas pelo chão não é possível ouvir o sussurro do mar, muito pequenas para tamanha responsabilidade. Mas é possível saber que mar há e um pouco dele passa por ali, pela prainha da Ilha da Coroa. O mar não vira sertão, mas se mistura com ele.
Último dia. Juntar as roupas espalhadas, fazer tudo caber na mala, despedir-se. Ela estava feliz, renovada. Sabia que ali fechava-se um ciclo, iniciado há pouco mais de um ano. Era hora de decidir, abandonar o que não lhe servia mais, abraçar novas causas. Mergulhara dentro de si querendo respostas, mas nem todas as perguntas precisam ser respondidas. Às vezes basta fazê-las, deixá-las ecoar até conseguir responder as questões mais simples. Ela sabia que a resposta chegara e não seria mais a mesma, nunca mais. Gostava disso. Era outra alma usando o mesmo corpo. Melhor ou pior, não poderia dimensionar ainda a mudança. No aeroporto, olhando as três silhuetas, chorou um pouco. Mas desta vez se despedia dos primos e de si própria, sua personalidade múltipla descartava-se de uma de suas facetas. Estava leve. Lembrou-se de uma velha estória, em que uma menina viajava para qualquer lugar segurando balões coloridos. Nesse momento, também poderia viajar agarrada em balões coloridos, bastava uma bússola e a vontade de chegar. Sorriu. Estava pronta para uma nova jornada.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui