Usina de Letras
Usina de Letras
291 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62174 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22531)

Discursos (3238)

Ensaios - (10349)

Erótico (13567)

Frases (50579)

Humor (20028)

Infantil (5424)

Infanto Juvenil (4756)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140791)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6183)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Caça -- 07/07/2000 - 14:07 (Magno Antonio Correia de Mello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Deu-lhe um acesso descabido de uma vaidade que acreditava morta e enterrada desde a pré-história. Nem as roupas rasgadas ou a pele esfolada foram capazes de conter uma vontade inexplicável de lixar as unhas.

Futilidade sem propósito. Tinha lá tempo pra esse tipo de bobagem?

Tempo. Quantas horas correndo? Horas, dias? Perdera a conta.

O pior é que os céus resolveram contribuir para complicar ainda mais a situação. Desabou um temporal de intensidade sádica. Patrícia entregou os pontos. Atirou-se no chão, nessa altura um lamaçal, ansiando por afogar-se na chuva.

Não conseguiu. Os primeiros raios de sol do dia seguinte surpreenderam-na deitada no mato, de costas, imóvel, esfarrapada, viva.

Uma voz remota e uma presença distante acompanhavam seu torpor. Era mínimo o ruído, praticamente imperceptível o toque no seu braço direito.

- Pat - distinguia -, acorda, minha filha! Você vai chegar atrasada na escola!

Patrícia só balbuciava.

- Mãe? - sem forças para dizer mais nada.

Com dificuldade, abriu os olhos, ofuscados pelo céu avermelhado de nascente. Estava morrendo de frio. Encolheu as pernas. Em posição fetal, protegia as partes do corpo que os restos de roupa deixavam descobertas.

Criatura em decomposição, a centímetros do apodrecimento total, não lhe sobrava um pedaço de carne que estivesse a salvo da lama. Houvesse um espelho pra refletir seus cabelos, ah, nem é bom pensar. Tão lindos e castanhos, agora deviam ser os de uma bruxa. Pintados de barro do primeiro fio ao último cacho.

Convivendo desde criança com a obra-prima das alergias, Patrícia não pôde evitar um novo desastre. Perdeu o controle sobre o nariz, o pulmão e a garganta ao mesmo tempo. Pigarreou, espirrou e tossiu a valer antes de quedar-se, exausta e sentada, sobre um cupinzeiro próximo.

Em menos de um morder de formiga, descobriu mais essa estabanagem, pôs-se a correr em círculos. Gritava, agitava os braços, balançava-se: à toa. Nada teria resultado. Os cupins haviam penetrado em seu corpo, impregnaram-lhe a alma, viveriam sempre nela, moscas bicheiras apressadas. Na ilusão de que isso pudesse solucionar o problema, a pobre heroína aumentou a intensidade da ducha.

Não tendo obtido qualquer efeito, desligou o chuveiro e terminou o banho. Três minutos depois, penteando-se à frente do espelho, presenciou sua irmãzinha entrar no quarto aos berros.

Patrícia agachou-se. Segurou a caçula entre as orelhas e a boca. Procurando consolá-la, copiava voz de neném:

- Que foi, filhinha? Conta pra mamãe, conta!

A garotinha cerrou os lábios miúdos, louca de raiva. Foi bruta. Afastando a irmã com um repelão, gritou a nove mil decibéis:

- Você não é minha mãe! Minha mãe me bateu! Não quero mais ter mãe! Nunca mais!

Patrícia perdeu a paciência.

- Ah, não quer? - atalhou, puxando a pirralha. - Então vá pro raio que te parta, sua peste!

Expulsou a menina sem nenhuma delicadeza. Ficou ouvindo seu choro descansando à sombra de uma árvore.

A primeira em quilômetros. Na vegetação rala, poucas se faziam notar. Sob a que Patríca se encontrava, o ar era leve, a temperatura gostosa. Ela se espreguiçou.

Não havia mais vestígio de noite no céu azul, parado, modorrento, tranqüilo.

Tranqüilo é bem o termo. Pousasse um helicóptero à sua frente, os passageiros admirariam Patrícia e lhe elogiariam o rosto.

- Que moça bonita, calminha!

- Mas não é? De uma candura! Um prendamento! Um primor!

- Ah, se eu te casasse com meu filho!...

Sim, os idiotas a venerariam. Como insetos diante de elefantes: numa inferioridade absoluta, na mais sincera adoração.

Patrícia se encantou com suas próprias pernas, lembrou-se com orgulho de seus seios. Eram mesmo o máximo da perfeição.

Evitou um bocejo. Esforçava-se pra não dormir, não ceder, não deixar que o terreno perdido se multiplicasse. Eles deviam estar próximos. Dera-lhes uma noite inteira de vantagem. Uma noite inteira.

Não seriam tão terríveis as conseqüências de seu sono se, como outros seres humanos, eles precisassem dormir. Mas não. Andariam anos a fio sem comer, sem repousar, sem beber um gole d água, sem nenhuma outra ocupação além de caminhar, caminhar, caminhar de modo obsessivo, caminhar de modo esquizofrênico.

Tantas amarguras se esfolassem. Patrícia os esquecera na sola do pé, humilhados, diminuídos. Só lhe vinha à mente a paz da árvore, sua sombra aconchegante, seus galhos firmes, suas folhas verdíssimas, seus seios macios, lábios provocantes, a covinha perfeita abaixo deles.

Distraía-se contemplando seus cabelos longos e lisos.

- Bibinha, se você me deixasse, eu morreria.

A amiga tirou-a do colo, assustada.

- Palhaçada, Pat! - interjeitou. - Que mania dessas coisas! Eu, hein!

Patrícia não reagiu à insensibilidade da outra. Limitava-se a encará-la, enternecida, entretida, entremeada, seus olhos devoravam Fabíola. Ergueu as mãos para colocá-las com suavidade no rosto da amiga.

- Um dia você diz que me ama?

Fabíola se aborreceu. Correspondeu sem entusiasmo aos carinhos de Patrícia. Beijou-a com indisfarçável apatia. Ao afastar os lábios, alertou:

- Te veste. São quase nove horas.

Biquinho insatisfeito, Patrícia prendeu os cabelos e se vestiu, se é que se pode aplicar esse verbo ao ato de cobrir-se com aquele bando de farrapos precariamente espalhados sobre seu corpo. A noite, a terra e a chuva haviam terminado de triturar os pequenos pedaços de pano que ainda sobreviviam inteiros no meio dos trapos.

Patrícia estava esgotada. Sem paciência pra matos, gente, árvores, tudo. Suas pernas se moveriam com má vontade, relutavam em apoiar o reinício da fuga desatinada.

No entanto, não se tratava apenas de andar. Era preciso correr. Em que lugar teriam se enfiado? A dois metros? A dois quilômetros? A três países? Ao lado? Paralisada desse jeito, por maior que fosse a distância, eles a alcançariam. Qual a razão de tanta preguiça, meu Deus?

Diga, qual? Quando mais precisava de força, mais carecia de energia e vigor, Patrícia parecia um rádio pifado a cinco minutos do apocalipse.

Para entender o que isso significa, é preciso imaginar uma pessoa presa numa ilha isolada no oceano infinito, munida apenas de um radinho de pilha, seu último contato com o mundo vivo. Cinco minutos antes de o planeta se ir, vão-se as pilhas do rádio. Sobram apenas as expressões apatetadas dos que são incapazes de compreender o alcance e a importância deste grave devaneio.

Durante o qual, brava e altiva, a heroína abandonou o ventre acolhedor da árvore e recomeçou sua corajosa odisséia rumo a lugar nenhum. As pernas sem muito custo convencidas a correr e os braços movendo-se com leveza faziam com que o corpo decidido de Patrícia se transformasse em uma escultura genial, tão perfeita quanto uma obra renascentista. Nada poderia bloquear seu caminho.

Exceto o muro do colégio, contra o qual o rosto de Patrícia se chocou frontalmente. No esbarrão, os três despencaram: a heroína, o livro e o caderno que ela trazia à mão. A pobre desabou sentada, pernas esticadas no sentido do muro. O pior é que, ao invés de agir como uma pessoa normal, levantar-se, ter presença de espírito e recompor-se, ficou feito criança, estática, aparvalhada, dando impressão de que alguma força a retinha no chão, à espera dos risos, da chacota, da impiedade alheia, numa longa frase dificílima de encerrar.

E os risos vieram. Com os risos, o choro desconsolado da esfrangalhada heroína. Era uma pessoa sensível, não um ser humano fraco. Por isso, suas lágrimas aumentavam o volume das gargalhadas, a altura da zombaria, a intensidade da dor.

Como se não bastasse, também influíam na temperatura, tornando o frio mais implacável. Não havia abrigo próximo.

Matagal estúpido, nem belo nem feio, apenas insignificante, o fim do mundo. Abismo onde esse maldito pesadelo se esgota, onde homens e suas almas estão condenados a penar indefinidamente, sem chance de se esborracharem em qualquer tipo de chão.

Nada disso, contudo, importava. A sede, o frio, a fome, a vegetação pobre não incomodavam Patrícia. Eles sim. Estavam mais invisíveis, imprevisíveis, intragáveis. E onipresentes.

Pensando bem, não era fundamental que não os pudesse ver. Isso não lhes evitaria os passos, não lhes disfarçaria os suores, não lhes amenizaria os rostos macabros. Distantes, próximos, e daí? O importante era tornar suas existências um completo fracasso.

Perda de tempo esperarem por Patrícia feito urubus atrás de carniça. Não terão qualquer oportunidade. Ela escorregará de suas mãos, sabonete imundo, rasgado, roto, forte.

Forte. Acima de tudo, muito forte. Águia serena e portentosa, planando acima da mediocridade humana. Formou um espelho no vazio, como um Narciso se afogando pela própria imagem. Uma águia. Uma águia de olhos e cabelos castanhos, belos, magníficos.

- Hum... Não sei... - vacilava Fabíola. - Quer mesmo saber? Se você fosse um passarinho, seria um pardal. É. Pardal. Nenhum se encaixa melhor.

Patrícia não escondeu a decepção.

- Ah não, Bibinha! Pardal? Por que pardal?

- Você me lembra um pardal, amorzinho - argumentou Fabíola. - É esse jeitinho desconfiado, essa carinha assustada. Igualzinho a um pardal.

A heroína não gostou. Fechou o semblante. Aborrecimento besta, não duraria segundos, tão grande era sua paixão pela amiga.

- Você me acharia bonita, mesmo se eu fosse um pardal? - indagou, já quase sorrindo.

Fabíola respondeu depois de uma sonora gargalhada.

- Claro, sua tontinha! - e, com um amplo riso: - Você seria o pardalzinho mais bonito do mundo!

Gostava de ouvir elogios de Bibinha. Eram tão raros... Normalmente, vinham acompanhados de uma ponta de ironia irritante. Fabíola jamais confessaria a Patrícia os sentimentos que nutria em relação a ela. Em vez disso, divertia-se com reticências, aspas, pontos de interrogação, dúvidas.

Invisíveis na hora. Um carinho de Fabíola sempre representava, para a desencontrada heroína, a mais absoluta felicidade. Duas horas mais tarde, na ausência da amante, transformava-se numa mentira, numa impossibilidade, num absurdo. E eles jamais permitiriam ao absurdo tornar-se menos absurdo.

A essa altura, faltavam poucos minutos para as dez horas. Continuava ventando frio. Não se via sequer um arbusto. A única esperança de amenizar o descampado era um pequeno relevo situado alguns metros adiante. Patrícia hesitava em atravessá-lo. A cada trecho desconhecido, voltava mais forte o pavor da presença deles.

Eles, certamente, não estariam do outro lado do morrinho. Partiram para um fim de semana num paraíso qualquer, gastando fortunas com mulheres e bebidas. Transviados. De repente, sumiam de suas idéias, davam folga à sua paranóia, cansavam-se. Voltavam mais fortes e mais filhos da puta.

Era o que lhe explicava a diretora da escola.

- Isso tudo é muito desastroso, Patrícia, catastrófico. Não há justificativa, não há desculpa. Nem saída. Só nos resta comunicar o caso a seus pais.

- Dona Mercedes, papai me mata!

- Pensasse nisso antes! Ora!

- Pensar em quê? Meu Deus, em quê? A senhora é casada?

- E muito bem casada!

- A senhora pensou em alguma coisa, quando se apaixonou por seu marido?

- Meu marido é um homem, menina! Um Homem!

De fato, era um homem. Você não concorda, Patrícia? Quem, quem é Patrícia? Espera lá, isso eu sei: Patrícia sou eu!

Ou será ela? Deus, que vida confusa!

- Patrícia!

- Que foi, mamãe?

- Não, calma aí, eu sou Patrícia e você é mamãe!

Ou não era?

Tinha sentido? Tanto medo, pra encontrar uma cabaninha abandonada, sem galinhas no poleiro, sem vacas no pasto, sem portões. Ao contrário de assustador, aquele barraquinho representava o papel de civilização, era o primeiro resquício de presença humana em dezoito horas de descampado.

Patrícia revistou a instável construção de ponta a ponta. No minúsculo cubículo que, tudo indicava, havia feito as vezes de cozinha, deparou-se com um filhote de leopardo.

Como evitar a ternura? O bicho tinha uns olhinhos vivos, um focinho dengoso, era um brinquedinho de pelúcia.

- Batuta! Vem cá, vem, deixa eu te fazer carinho...

O gato não atendeu ao chamado. Tímido e arredio, procurou abrigo embaixo do armário de louças, numa posição inacessível a Patrícia.

A heroína não insistiu. Esqueceu o bichano, foi até o filtro e encheu um copo d água. Sentou-se à mesa para analisar a situação.

Cascavel. Tinha certeza: a intrometida da diretora cumpriria o ultimato. Dois dias pra que ela mesma confessasse aos pais seu homossexualismo, caso contrário a escola o faria. Estúpida.

Na certa, não mediu o tamanho do desastre. Dizer "mamãe, papai, só gosto de trepar com outras mulheres" não é exatamente confessar o primeiro cigarro. Não só pelo medo de apanhar. Também pela indignidade do fato. Os pais se esforçaram, deram-lhe do bom e do melhor, tudo que não puderam ter, pra se apanharem no constrangedor papel de geradores de uma lésbica. Já pensou?

Bolas. Estava ficando cínica. Ou burra. Perder seu precioso tempo ironizando uma calamidade como essa. Ocupada em inventar piadinhas sem graça, a imaginação de Patrícia se negava a concentrar seus esforços na busca de uma saída honrosa para a enrascada em que a heroína se encontrava.

O delator a essa altura pusera a boca no trombone. Todo o colégio descobrira as preferências sexuais de Patrícia. O colégio não, o bairro. A cidade. O mundo.

Não andaria mais pelas ruas. A humanidade inteira estaria a esperá-la, pronta a cobrar-lhe uma explicação inútil e inexistente.

Também não adiantaria trancar-se em casa e fugir de todos. Ah, o inferno que a aguardava, quando seu pai soubesse de tudo... Sova monumental, três meses sem jantar ou almoço, era possível até que fosse expulsa de casa.

Batuta tentou atingir o corredor. Patrícia saltou e agarrou o felino. Embora esboçasse resistência, o gato logo se acomodou aos caprichos de sua dona.

Ela o tratava como a um objeto. Virava o pobre animal de barriga pra cima, fazia cócegas no seu ventre, torcia-lhe as costelas franzinas. Fosse capaz de sentimentos, Batuta odiaria funcionar como válvula de escape para as angústias de Patrícia. Não sendo, apenas contraía o bigode, assustado.

Quando tantos carinhos neuróticos já estavam perto de matá-lo, foi salvo pelo gongo. Mamãe leopardo, furiosa, invadiu a cabana rugindo como uma tempestade.

Patrícia percebeu a tempo a enorme fêmea. Largou o filhote e correu para um dos minúsculos cômodos do barraco, tão pequeno que mal conseguia acomodar o corpo da heroína. A julgar por sua aparência, esse quartinho, em tempos remotos, chegou a servir como despensa.

A desgraçada heroína prendeu a respiração, grudou os ouvidos à frágil porta do improvisado refúgio. Buscava, nos passos da leoparda, adivinhar-lhe os pensamentos de invencível caçadora. Ouvia apenas os grunhidos da fera:

- Abre essa porta, sem-vergonha! Abre, safada! Vou te estatelar, vou te esfolar, sua vadia, sua perdida!

- Não diga isso, Arnaldo, não faça isso! Ela ainda é sua filha, homem de Deus! É só uma menina!

Patrícia, encurralada, acumulara todos os móveis possíveis sustentando a porta do quarto. Em vão essa providência. O pai, homem imenso, terminaria arrombando a porta, a cama, a cômoda, a penteadeira, sua vida.

Triste ironia. A garota mais bela do planeta, fadada, em seus desmiolados planos, a ser a mulher número um do país, no prazo máximo de uma década, não tinha condições de responder pelos próximos cinco minutos.

Não contava mais com ajuda de Fabíola. Antes de voltar da escola, passou no apartamento da amiga para contar-lhe a conversa com a diretora. A atitude da companheira não poderia ter sido pior.

- QUÊ??? Quem foi o cachorro que espalhou isso? Você pelo menos sabe quem foi, Patrícia?

- Claro que não, Bibinha. Como é que eu vou saber?

- Ora, como!... Sabendo, sabendo! - Fabíola vociferava, frenética, levantando e abaixando os braços.

Discutiram durante meia hora e separaram-se aos gritos. Daí por diante, nada de Fabíola, esperança, carinho.

Presa a um quarto sem perspectivas, lutando para manter fechada uma porta sem futuro, Patrícia pensou em rezar.

Em vão. Conhecia mais prece nenhuma. O Senhor virou-se de costas para ela.

- Pronto, sua cretina! - anunciou-lhe o pai.

Conseguira estourar a porta. Patrícia não mais reagia. Estava muda, petrificada, em choque profundo. O pai, chorando como um bebê, ergueu-a pelos ombros.

- É mentira, Patrícia, me diz que é mentira!

Sacudia histericamente a filha, numa tentativa desvairada de receber dela a resposta que desejava. Sem nenhum sucesso. Só obtinha o silêncio absoluto de Patrícia, um silêncio misturado a um pavor incomum. Um silêncio marcado por gemidos dos olhos esbugalhados e perplexos da heroína.

Não podendo mais se conter, o gigantesco homem atirou a filha na cama. Possesso, ensaiou uma implacável surra. A mãe de Patrícia se jogou na frente do marido. Ele a tirou do caminho com um empurrão violento e levantou o braço direito.

Quem estivesse assistindo à cena não daria a menor sobrevida a Patrícia. Seria escalpelada. Manchete de jornais sensacionalistas no dia seguinte: "triturou a filha, etc., etc.".

Para surpresa da própria vítima, não foi isso o que ocorreu. O brutamontes conteve-se antes de assassinar sua herdeira. Ao invés de esmurrá-la, espancou a cama. Quando ia partir o inocente móvel em dois, encarou Patrícia. Não disse mais nada, nem tomou qualquer outra atitude. Saiu pela porta destruída com a mesma fúria usada para arrombá-la. Com uma diferença: agora, quem se despedaçou foi ele.

A heroína voltou a respirar. Com cuidado, abriu a despensa.

A leoparda tinha ido embora e levara o filhote. Patrícia, andando na ponta dos dedos, chegou à saída da cabana. A partir desse ponto, de pouca coisa se recorda.

Lembra-se de que correu, correu, correu, e de que, ao correr, ouviu latidos cada vez mais próximos, cada vez mais próximos, cada vez mais próximos...

Restou a vaga recordação de suas passadas duras. Não reconheceria mais tantos rostos ameaçadores. A diretora, o pai, o espelho?

Lembra-se de seus tiros. Uns a acertaram no estômago, outros na cabeça, muitos no coração.

Guardou também alguns detalhes de sua morte. Caiu aos pés deles, atormentada por suas risadas sarcásticas. Talvez, pouco depois de morrer, tenha vestido uma camiseta. Pareceu-lhe escutar sua mãe passando aspirador na casa, mas disso não tem muita certeza.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui