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Contos-->DESESPERO NO BLOCO 13 -- 27/10/2002 - 15:14 (Ricardo Campos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Voltei. A casa persiste. Mesmo depois de ti, a casa resiste. A nossa casa. Não se estendeu amplo tempo no registo, mas por mim viajaram anos duros, pesados, sufocantes, longos. Tudo agora é nada. As ruas estão desertas, mesmo abarrotadas, preenchidas. O sol, esse, nunca mais brilhou ou se ergueu sobre mim e até hoje a noite não o deixou de ser, mesmo esbraseando a pele de quem se abandona debaixo dela, de quem adormece sem cair no sono. Agora a noite é clara e as chamas negras ascendem abruptamente de mim à conclusão do meu olhar; cravando em mim um desespero corpulento. Um silêncio agressor me invade, tudo é triste e penoso e tudo muito mais penoso e magoado do que quando o vulcão da tua alma incendiava de sonho o perímetro do teu ser. E, mesmo assim, tudo agora é nada. Os espaços aquietam-se, percebendo a minha compleição, cai da exterioridade um rumor raso, as paredes adquirem inibição e as brisas perdem-se flutuando na minha impaciência de tormento. Estou perdido de dor. Uma dor cortante, interna, agarrada... ela não sai de mim, incisiva, ela quer-me, sem indicio de paz. Os teus olhos deixaram-me, afastaram-se sem volta. Tenho-te em tudo o que tocás-te. O teu sofrer arrepia-se em tudo o que foi teu. E eu fui teu. Tiveste-me. Fomos um e perdi de ti a minha essência, distante e densa, disfarçada de cristalinidade profunda. Levaste-me o ser; e quem sou agora? Uma flor partida e quadrada, precipitada sem direcção. Uma existência arrancada de si, desfeita em delírio alucinado. Uma vida austera e recusada, viúva da minha retenção, arredada do meu destino. Do nosso destino.
Este monstro, diante de mim, absorvente, de muralhas rudes, decifra a expressão da minha presença e entende este ardor devastado, varrido de sossego, aprontado de agonia. O céu, curvado de esperança, è hoje vermelho e mastiga um sopro perdido apetecido nos rostos afundados na identidade acordada sem saber. A luz atira-se ao meu olhar, engole-me a atitude simples, rompe e rescinde a sua beleza fresca dissolvida em mim e nos meus olhos ardidos. E, no entanto, tudo agora é nada. Tudo é nada e acabou. E, tudo acabou muito mais do que acabava quando te fazias sentir minha, insubordinada ao sólido viver do preconceito, movida pelo acendimento de quem pede por ser assim e por resistir a uma força que não luta por si, mas pela sua ilógica diferença gémea. E, assim, eu, ali, inerte, hesitante, real numa guerra surda. Estou sem ser, deserto de ânimo e sinto a noite a vir mais aguda e fogosa, violenta, escura, tropeçando nas labaredas que me cercam, atacando os limites castigados. Tremulo. Frio, eu permaneço guardado num instante tenebroso, banhado de trevas sombrias grosseiras e invisíveis. Desfraldado e tremulo. Um abismo morde-me os pés e cospe finas vontades rasgadas de me trucidar a face abatida e desabitada. Limitado, rompendo a pele em ter a terra a puxar por mim, e ver o mar na saudade de me beber os ossos. Um ar convexo esfaqueia o vento que morde o telhado da frente e, no perdão da natureza, eu revelo a solidão que me atende abundante; e , continuamente, tudo como se fosse igual e é mentira. Agora, tudo o que era fome de ser mais e querer a eternidade em te ver perpétua confinou-se por ser escassez dolorosa vestida de ninguém, atormentada de não nascer.
Levei a mão à face. Tremulo e sorumbático. Senti, na pele do rosto, o suor gelado de um desgosto fantasiado, mas real e desencaixado.
Angustiado, perdura aqui, dentro, uma energia escavada na estrutura derretida da minha voz. Decidi levantar o olhar da perplexidade das pedras do chão inferior vivo. Então, olhei a direito. A porta. Porta que te viu entrar. Que nos viu entrar; extensos momentos. Senti o seu amparo; como abalada com a memória que ressaltou de mim. Fui em frente, um passo atrás do outro; dolorido, tentei o alcance da entrada das lembranças. Cheguei. Toquei a porta, ressenti a sua fisionomia exterior intrínseca na minha memória primária desapercebida. Na algibeira a chave, que agarrei diligente e cravei na porta cansada do fecho dormente. Esgotado. Desando a chave, infiltrada na fechadura, para a direita e ouço os gritos das dobradiças aflitas, velhas, amofinadas... Está destrancada. Só. Basta um impulso para abrir a minha casa de sempre. Soltei uma pequena força e ouvi a madeira da porta a roçar num chão de taco húmido, importuno. Entrei por fim. A tremer. Encontro, tudo, depois de ti. Descubro-te em tudo o que é, aqui, em tudo o que o foi e hoje é nada. As paredes reservadas, verdadeiras, de boca cozida e semblante atado. Aquelas que te viram na intimidade. Que nos viram voar, sonhando num desvario brando e estrepitoso. As janelas fechadas. Os tecidos mudos, as cortinas saciadas de negro, ávidas de engolir a lucidez do dia que agora não existe. Os sofás, as pequenas mesas e a mesa grande em que jantávamos com velas, os candeeiros e as suas luzes, as luzes que explicavam o teu encanto perduram revoltadas de amargura, encarceradas à memória contundente. O espaço luta contra si próprio, luta por reviver o que não vive agora, o que hoje é nulo. Um cinema sem tela, imagens instantâneas, alucinantes, rompem a fixação dos meus olhos nos planos do lugar, envolvente e insubstituível. Tudo me dói. Dói sem cessar. Sinto o emudecer colidir com o meu corpo, o ar a degolar-me o rosto, as fotografias a golpear-me os olhos, as pálpebras, as pestanas e, depois, depois, o pensamento em investidas aceleradas, despedaçando-me em destroços de carne incolor abstracta. Tudo o que me envolve renasce de ti, sobrevive-te, e tu não sentes. Este espaço, o nosso espaço, a nossa casa. Também ela sofreu. Pesada. A casa continua sublinhada de um isolamento de luto, para sempre concentrada em ti. Não suporto. Não sustenho este pesar desalmado. As lagrimas afogam-me os olhos, a pele. Conheço o corpo a ceder, extenuado. Olhando para ti, em tudo o que vejo, estou e estás.
Caí sobre o sofá azul, onde te sentavas para me dizer e me expor o que és e tinhas feito e o que amavas e quem tinhas amado. Ao lado, as flores, já mortas, que te ofereci num ramo envolto em folhas brancas de um papel jovial e amarrotado. Era a cor que mais gostavas, e tudo, era como tu gostavas, tu eras tudo, e hoje sem ti tudo é nada. Também gostavas de bege e preto sem demitir o vermelho. As flores estão quebradas, diluídas em ser assim a vida e não de outro contorno. Vou pensando que a vida é uma linha curvada e finita, na vertical, redonda e cíclica com rebentos raros de excepção em ziguezague. Ela é uma luz perene com fim á vista, largada na obscuridade do túnel enganado, amassada num sentido inexistente, tentado e absurdo. A vida é uma fronteira morosa, distanciada da verdade, retirada do cerne claro, fundo. Viver é dilacerar a confiança do ser primitivo, é perseguir a falsidade que reina no sol ingerido da lua, que se vê leve e ligeira de superfície. Resta a dor. Essa, que se abate sobre mim. Ela, a dor, que se serena porque me consome, desatinada na droga que o meu desgosto fornece.
Do sofá achei o chão na minha cara, de taco, respirando o pó que se deixou surgir sem ti, sofrendo a dureza do solo que pisas-te levemente; e que era breve em ti e hoje se perdeu num calar acamado e patente. Fechei os olhos, e mesmo cerrados, viam mais do que pensavam. Continuavas aqui, a olhar-me e eu, assim, fatigado, esfalfado da extensão da minha ansiedade, repetida, ecoada. Num instante confuso, estafado de luta, oiço a tua voz sussurrante, simples, singela de lembrança, nostálgica e sem saber o que falas, fico retraído, recatado na minha solidão aleivosa. Estás em tudo o que existe aqui. E, eu existo. Não vou esquecer. A loucura, o diamante, o ouro indelével que imprimis-te no corredor que me improvisou. A essência, o fundamento que realizas-te na minha passagem. És a minha razão, o meu pretexto, a minha força, o alento que me traz de mim ao meu existir, cruzando o mar da vida sem perder a localização roubada do alívio. Como nos derradeiros momentos, em que me olhas-te desembaraçada e pedis-te a lembrança longa eterna antes da anulação da fronteira circular ainda válida. Eras tudo. A cama do hospital agreste. Sobre ela, tu. Deitada, fraca e doce. Entravas por mim, bem dentro, num sopro particular de profundeza, numa viagem interna destinada, calculada e natural. Eras carne da minha carne, um pedaço de mim, que me caía, sem querer; e eu, destronado, exausto, tentava levantar-te do chão, amparar-te num impulso suave. Aquele dia, sim, aquele dia cinzento, ancorado. Os teus olhos carregados, fundeados, embebidos... Estavas enlaçada ao sofrimento, ignorando a verdade e eu mentia-te. Olhei-te, prometi-te a conservação do nosso sonho, mas não. Ele morreu criança, sem apreciar o grosso da vida, o meio da existência, a perfeição do futuro, que não é futuro, é presente. Enquanto te via fugir dos meus braços, sentia crescer um ser dento de mim que, mesmo atassalhado, recreava o seu código de consciência. Assistia, nesses momentos, a uma luta bruta que te movia, e, em mim, encontrava respostas, formas inspecionadas de um ser amadurecido pela dor. Admirava a tua força, o teu carácter sincero, a tua mente livre. Ela escapou à carne, vive ainda e viverá, em mim, perpetuamente. É um cristal, verdadeiro, intenso, límpido, fresco de translucidez, repleto de magia, fulgor.
Nesse dia, tu choravas, um pranto denso, mas até ele era pronto de diafaneidade, subtil. Peguei a tua mão, toquei essa mão declarada; apertei-a e correspondes-te convicta. Aceitavas essa alquimia que nos une, essa química indescritível, sem plano de conformação. Amava-te. Sabia. As janelas abertas por um fio deixavam, acessar uma brisa ligeira que te ajudava a respirar. O teu quarto, branco, repleto de uma limpidez branqueada, o espelho da tua alma. Jarras, flores, dentro delas, tocadas nas beiradas dessa louça, no declive, embriagadas de uma água por trocar, atrasada. Frutas, doces, espalhados, calmos na mesa de cabeceira, julgando-se intocáveis por não lhes dares atenção. De fronte, na plataforma inversa das paredes, um quadro, de esperança. Um quadro, para onde olhavas e te revigoraravas, aguardando o contra-golpe. Estes contornos, sombras repassadas, trespassadas pela luz baça e tímida que entrava em feixes directos por entre as persianas rotas das janelas enfastiadas.
Na hora, acabava o tempo de visitas e, eu, ia saindo agarrado ao cimento velho e frio dos corredores imutáveis, depois de me despedir de ti, sob as reclamações repetidas das enfermeiras preenchidas de me exigir a saída. Era uma dor rompida, um punhal cravado a deglutir a pouca carne que me restava, um homicídio invisível. Deixava-te só, apenas a dor, o sofrimento, te acompanhava em mais uma noite que não sabias ser a última, a tua derradeira noite. Se pudesse não te tinha deixado sozinha. Tinha ficado contigo , para te ajudar, para não te deixar partir tão cedo. Se pudesse não te tinha deixado. A vida é atroz, mas é vida e sentis-te na pele a sua frialdade.
Em todos os contornos da minha visão eu te via, sem tempo para pensar em mais nada, em todas as sombras eu contemplava, reparando, o teu sensualismo, em tudo eu te sentia em mim. Como lembro esse dia, o dia em que tudo se modificou, em que tudo se demudou em não ser nada, em ser sem ti. Deixaste-me.
A casa desmoronava-se em mim em reminiscências sinistras e deixei de me saber desperto. Desabei na apatia, no desabafo do sono estimulante e forçoso. Caí no depauperamento de um cérebro fixado e perdi, por horas, a vigília.



Ricardo Campos
08 / 2002
































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