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Ensaios-->TRILHAS MÍTICAS E REALISMO MÁGICO EM "PÃO COZIDO" DE M.JORGE -- 09/02/2001 - 00:02 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



TRILHAS MÍTICAS E REALISMO MÁGICO EM
“PÃO COZIDO DEBAIXO DE BRASA”
DE MIGUEL JORGE



João Ferreira
8 de fevereiro de 2001


O alentado percurso da narrativa de “Pão cozido debaixo de brasa” leva-nos a viagens diversas. A natureza da narrativa em si oferece uma boa opção de análise e de estudo. A caracterização e montagem de alguns personagens originais mostra-nos o ardiloso autor montando altas torres em barro frágil solidificado pela arte de bem tecer fios de narrativa, arrastando-nos para o fio existencial gerido no tempo e no espaço, não sem antes nos ter atado aos múltiplos percursos culturais do homem no avanço das idades. Diríamos que um observador das consultas de divã o socorre nas tramitações psicanalíticas que formam o rio subterrâneo no patamar submerso ao código retórico-estilístico. Diríamos que um cientista social o institui como observador dos porões da cidade e das frágeis e miseráveis camadas de excluídos, que magistralmente e tragicamente fixa nas personagens Felipa, João Bertolino e Nec-NEC. Diríamos que um analista perspicaz o conduz pela alcova feminina, por onde tramita a erótica capacidade da serpentária psiquê feminina adestrada na dominação masculina, bem delineada nas relações de Adão-Leona-Lili. Diríamos que a voz de um cientista político informado e sábio empresta ao romance os necessários signos políticos da contemporaneidade, aparentemente de tonalidade brasileira, mas que, através de leitura ampla, os instalam no universo da polis humana, explicitando, em linhas lacônicas e denunciadoras, o abuso e a indiferença do poder político que explora o cidadão.
Estas, na verdade, são linhas de conhecimento, necessárias à efabulação.
Mas no ritual da análise textual, elas sobressaem porventura como elementos pré-textuais, que preexistem ao óvulo ainda não fecundado do texto. Na voz ancestral da história do texto, essas linhas simbolizam o lastro genético onde assentam as raízes da expressão e porque também descendem de dados objetivos que situam os sujeitos no tempo e no espaço e os relacionam com o mundo cultural de que fazem parte. A cultura semítica, representada por Gilgamesh, por Yussef e suas três irmãs, pela cultura árabe, judeo-cristã e bíblica, fazem deste livro um painel de riqueza analítica onde espraiam horizontes alusivos a um largo mapa de presença e de problemática humana. Mas, para além da formalidade do texto, “Pão cozido debaixo de brasa” mostra não apenas a alma e o colorido cultural do Centro-Oeste brasileiro, mas também uma obra polifônica e intertextual de onde emergem vozes universais e arquétipos de cultura bíblica e judeo-cristã habilidosamente recriados em novo contexto.
Apoiando-nos no texto “Pão cozido debaixo de brasa”, queremos, neste ensaio, chamar a atenção para a capacidade criativa com que Miguel Jorge mostra a alma e o colorido cultural do Centro-Oeste brasileiro. Mas, não só. A partir de uma leitura hermenêutica de “Pão cozido debaixo de brasa”, somos levados a nos questionar sobre a centralidade da presença psicanalítica freudiana e jungiana no romance de Miguel Jorge. A par da linha psicanalítica que permeia os comportamentos e os discursos dos vários personagens, brilha com evidência, também, a linha do realismo mágico e do fantástico no tecido narrativo. Num conjunto feliz, associam-se a linha mítica onde se escondem personagens originais como Adam, e Lúcifer, aqui sob a capa de Anjo novo. Recriam-se locais e personagens bíblicos como o Éden ou paraíso, a serpente tentadora, Eva, a simbólica maçã. Tudo se mistura artisticamente no percurso existencial dos homens, no tempo e no espaço, sob o jugo da vara do poder econômico ou político, ou sob o látego de uma sociedade injusta que exclui os mais pobres e os condena a serem, de alguma maneira, catadores de lixo e a praticarem marginalidades. No percurso da leitura, ergue-se, em dimensão detalhada, a grandiosidade hermenêutica aninhada nas mensagens centrais do romance, auxiliadas pelas categorias dinâmicas da intertextualidade, do mito, do fantástico e do realismo mágico, que dão alma e nervura estruturante ao processo narrativo.
Por este fio preanunciador, o livro de Miguel Jorge não demora a nos convencer da existência de uma criação literária importante no Centro-Oeste brasileiro. Na linha da pesquisa é a trilha da estrutura mítica do romance, associada aos processos da análise psicanalítica, ao jogo da intertextualidade, da arquitextualidade, da crítica social e política, e à sociologia da literatura, representada parcialmente pela infra-estrutrura narrativa - referente à voz e à ação dos excluídos - e pela modernidade trágica do desastre goiano do Césio 137, que mais nos convence da modernidade desta escrita.
Miguel Jorge, conforme já o sabemos da crítica, é um dos mais talentosos escritores do Centro-Oeste Brasileiro. Nascido em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, mudou-se ainda menino, com a família, para Inhumas, em Goiás. Mais tarde, após 7 anos de vida universitária em Belo Horizonte, Miguel Jorge optaria por um espaço definido para sua vida de intelectual e de escritor, que seria Goiás. Notabiliza-se em 1963 como figura destacada do Grupo de Escritores Novos(GEN), que buscava uma nova forma de criação e expressão literária em Goiás.
Transformando-se num dos símbolos vivos da criação literária do Centro-Oeste, tanto como autor de contos e romances, como de peças de teatro e de textos de poesia, de literatura infanto-juvenil e de ensaio biográfico, Miguel Jorge reaparece novamente em cena e com toda a vitalidade criativa neste romance “Pão cozido debaixo da brasa”, publicado em 1997, pela Editora Mercado Aberto de Porto Alegre.
É uma narrativa precedida por longo prefácio do crítico canadense, Sébastien Joachim, professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal de Pernambuco. Sébastien chama a esta obra “um grande livro” e “uma obra-prima”((Ib.7 e 17).
Pelo lado da análise, diremos que “Pão cozido debaixo de brasa” concentra um núcleo arquetípico que importa compreender para que os fios da narrativa ganhem todos os sentidos possíveis de ampliação e profundidade.
Antes do prefácio, o livro ostenta, a título de epígrafe, um fragmento de um manuscrito do século XII, reproduzido anteriormente na Mímesis de Auerbach. Esse fragmento é uma alusão bíblica contida numa peça de teatro medieval que condensa breve narrativa sobre Eva e a maçã. O núcleo dessa breve narrativa diz-nos que, ao provar a maçã, Eva viu que era doce. Como consequência desta experiência, há transformações em Eva: seus olhos começam a ver com clareza e sente-se como uma deusa poderosa, com visão do passado, do presente e do futuro. Mais do que isso: sente-se dona e senhora de Adão. E é nesta postura que incita Adão a comer a maçã, sob a recomendação de que não deve temer. E Adão come a maçã.
Embalados pela leitura, é difícil perder de vista a carga da epígrafe. Nesta carga significativa, desbobina-se o núcleo simbólico do romance. É como se tivéssemos mergulhado em plena narrativa bíblica, e ficássemos frente a dados míticos, onde a matéria-prima será sempre Adão e Eva, o Paraíso, a serpente(a cobra), o bem e o mal, o anjo novo(anjo mau) e o anjo velho(anjo bom), a maçã, representados arquetipicamente bem lá atrás, no tempo primitivo, revestidos de personagens modernos que atuam no tempo atual, na cidade e na pele dos acontecimentos que se dão num tempo e num espaço concretos. Com nomes e ações próprias que representam a carga de Adão e Eva,. o problema do bem e do mal, as consequências do mal, sob a forma da condenação ao trabalho, ao esforço, à penalização, como consequência do envolvimento de Eva com a maçã.
Progredindo para o plano dos personagens, o romance apresenta uma face natural e normal. Há uma mulher mãe, de nome Ziza, que chama por seu filho Adam, a toda a hora : “Adam, você está aí?”- Adam você está bem? -Adam olhe para mim. - Adam. - Adam, não sabe que o procurei por toda a parte. - Adam não sabe que é pecado esconder-se de mim? -Adam, no que está pensando? Minha doce criança que seria da escuridão do meu coração se não fosse por seus olhos? -Adam por que se escondeu no sótão? “Ela continuaria perguntando sem mencionar outras coisas além do seu nome: Adam, Adam. Acariciava-lhe os cabelos, o rosto: Adam. E era como se o despisse e o empurrasse para a banheira: - Nada como um bom banho para esfriar a cuca, hein, Adam? Talvez o seu segredo fosse esse de empurrá-lo para a ducha, avivar-lhe o ânimo com palavras e água fria. Fabricavam-se aqui e ali brancos montículos de espuma, a pele arrepiada. As mãos ágeis de Ziza detinham-se num ponto: -Não sei como conseguiu enfiar tanta sujeira no umbigo. Não vê que tenho dificuldade em limpá-lo? Aquelas mãos, de indulgente delicadeza, escorriam rápidas pelo entremeio das nádegas, pelas virilhas, pelo saco, e. -Você gosta do banho, não gosta, Adam? Ele sorria. Um riso que a fisgava pelo fascínio. -Menino cruel! - A inocente malícia do prazer estampando-se no rosto, no corpo retesado. -Adam., o que está fazendo? Com aqueles gestos, descobria que podia encantá-la ainda mais, com a excitação que sempre lhe ocorria na hora do banho. - Adam, não devia botar este pintinho empinado para cima. Mas que menino! Onde aprendeu essas coisas? Não, ele não aprendera com ninguém. Já sabia de si. Do seu poder de excitação. Do seu poder de domínio. -Como você é bonito, Adam! Devemos agradecer a Deus por tê-lo feito assim tão perfeito. Essas coisas ela dizia. E conforme ia falando, passava a toalha pelos caminhos do seu corpo feito só de alegria - Adam não quer falar comigo [...]”(22).
No cerne da história, está Ziza. Com ela, aparece a história comum de uma mulher que ganha uma verdade maior. Baseada na narrativa do Gênesis e na alusão da epígrafe medieval citada, a figura de Ziza se amplia e cria um sobremundo bem incisivo. Da mesma maneira que aconteceu no Éden, onde Eva comandou o processo de experimentação do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, também aqui o narrador coloca a mulher no comando das ações, envolvendo o homem. A julgar pela narrativa global deste livro e pelos próprios símbolos nele utilizados, o espírito da mulher tentando se implantar e comandar a cabeça do homem é uma tese central. No fundo, a história humana é toda essa epopeia.
E antes que outras considerações se teçam, todo o fundo narrativo se fundamenta numa trilha mítica. Ziza é a simbolização de Eva, da mulher em geral. Ela concentra toda a inteligência, sensibilidade e perspicácia do comando feminino sobre o homem. Nas relações com seu filho e em sua ação primeira de mãe, ela ensaia esse comando sobre o seu filho menino, adolescente., tomando conta dele, tentando dar-lhe a ciência, a consciência e a voz do comportamento. Ela estranha os silêncios de Adão, que ele não fale e não responda a toda a metralha verbal da mãe, sinalizando o ritmo da aceitação ou recusa que lhe vai no espírito.
Jogado no mundo e na escola, o filho encontrará outras representações de Eva. A principal delas será Leona ou Lili. Ela é a professora de Adão. Irá ensinar Adão na sala de aula e subrepticiamente conquistará seus olhos pela sedução até conseguir atraí-lo para seu chalé, onde conseguirá fazer dele um objeto de prazer e de complacência em sua alcova, buscando o tributo de seu belo corpo adolescente em prolongadas horas de rituais eróticos. Leona tem um marido, Offir, mas está desinteressada dele. Offir é um contador. Leona sempre o dominou. Agora, não tem mais serventia. Ela prefere o calor vivo de um jovem. E para eliminar a sombra de Offir, vai tentar comandar a mente de Adão para que elimine Offir, o que consegue. Toda a matéria é servida por elementos míticos que são tomados da narrativa do Gênesis, onde aparece o Éden, Adão e Eva, arquétipos humanos fundamentais, a maçã, o pecado original, o castigo que expulsa o homem do Paraíso e o condena a buscar o pão com o suor de seu rosto, assim como a presença de anjos bons e maus, na história da criação e do Éden,etc.
Leona ministrará suas aulas e, enquanto isso, jogará seus olhos conquistadores cruzando-os com os olhos do adolescente Adão, que terminará por dominar e subjugar. No meio dos exercícios escolares, Leona encontrará uma justificativa para satisfazer seu domínio. Convidará Adão para aulas complementares em seu chalé. Depois de longa insistência e trabalho interior, Adão irá comparecer ao chalé, um espaço edênico criado por Leona, onde terão lugar todos os seus prazeres e todos os seus deleites de domínio e comando sobre o homem, desde o prazer erótico até à eliminação de Offir pela morte, comandada por ela na mente de Adão.,
A leitura global do livro nos mostrará que é deste quadro inicial arquetípico e mítico que brotará a inspiração e o desenho da narrativa. Resumindo a história, veremos que a antecipação de Eva em descobrir o mistério da maçã antes de Adão, vai reservar para ela uma prioridade no conhecimento das coisas e do mundo. Isso possibilitará a Eva o caminho da dominação sobre Adão. A súmula arquetípica desenhada por Miguel Jorge vai ser esta. Ziza tem um filho: Adão. Desde a gestação até ao acompanhamento infantil, no banho, no asseio, nos atos e movimentos domésticos, na escola, até à maturidade, a mulher acompanha e domina os passos do homem. Domina como ser instalada na cabeça, com interesse de participação. Essa participação é íntima, extensiva e vai da mente ao corpo, num amplo desenho psicanalítico, onde cabem laços globais, envolvendo, mãe, filho, parentela, num envolvimento humano, muito acima da simples individualidade dos personagens, no espaço essencial da intimidade do corpo a corpo e da alma a alma. Sensualidade, sexualidade, presença, domínio do pensamento, e ação, como se a cabeça do homem fosse a propria figuração da mulher.
Tal como no Gênesis,o condimento essencial da história de Adão, é Eva, e também a serpente, figuração do daímon Demônio, que através da tentação da maçã proporcionará a abertura dos caminhos para os segredos do bem e do mal. Na narrativa, aparece a principalidade e a descoberta dos segredos do bem e do mal através de Eva e do Anjo Novo, o percurso de Eva(Ziza/Leona) na sedução de Adão, desde criança nos cuidados de mãe) até à adolescência (Leona, no chalé), até à dominação e perversão (morte de Offir), os dois sempre acompanhados pelo Anjo Novo (representando a ação do Demônio), e pelo Anjo velho (representando o lado do Bem), que no romance se apresenta de asa rota simbolizando a força menor do Bem nas decisões humanas.
A partir das evidências narrativas, a certa altura, parece não haver dúvidas sobre os dois eixos que sustentam o corpo do edifício narrativo. O primeiro eixo, indubitavelmente é a dominação feminina no mundo dos homens. Essa dominação deverá ser analisada em duas faixas: 1) A faixa dos ricos, representada pelos donos do chalé( identificado com o Paraíso 142) e das comodidades. É a faixa dos que têm meios de satisfazer seu bem-estar, seus prazeres para o corpo e para o descanso. Está simbolizada no chalé de Leona. Do lado de Ziza, está Yussef, um emigrande a quem Ziza se liga 2) A faixa dos pobres é representada pelos excluídos, por aqueles que catam “a sobra dos outros”. Seu símbolo é Felipa, que comanda João Bertolino e Nec-Nec.
Numa aproximação com a mística da Origem narrada no Gênesis temos a clara evidência da simbolização de Eva ou da mulher que intuitivamente aceitou o risco de conhecer a árvore da ciência do bem e do mal, transmitindo a seu companheiro o conhecimento, a intuição e a carga da responsabilidade da vida.Nessa dramática luta há o lado metafísico e religioso da ligação com os objetivos do criador. Esse relação com a árvore e com a maçã criou uma ruptura, bem visível na luta entre o Anjo Novo e Anjo Velho, que consiste em deixar o homem livre em sua corrida para o destino (Anjo Novo) ou em detê-lo quando ele quer se envolver no mal (anjo Velho).
O mundo é todo este cenário, onde os personagens são Adão e Eva, personificados e multiplicados em homens e mulheres, tentados e arrastados por mil anjos novos e demônios ou detidos e incriminados por milhares de anjos velhos que juram querer o seu bem. Na sociedade moderna existe esse núcleo. É a história central do homem. Crianças se desenvolvendo e adolescentes tentando entrar na plenitude da experimentação e do gozo da vida dominados pela mente da mãe. A mãe é o espírito que depois de dar o corpo, pretende alcançar também o espírito para comandar os atos da vida. O menino Adão é exemplo disso. Na sua latitude, a mulher é amplamente espírito e amplamente corpo. Na mulher burguesa, criadas as condições de satisfação de todos os prazeres da vida pessoal, social, e política, ela é toda corpo e espírito e pagará profundo e longo tributo para os dois. A revelação do segredo que ela aprendeu no diálogo com a serpente no Éden. Contrastivamente, na mulher pobre ou excluída, o crescimento e a afirmação dão-se no nível do espírito. Felipa é o símbolo desta mulher. Num misto de fé e fascinação, ela “carrega consigo uma promessa que deseja cumprir: atravessar o milênio, levada por uma esfera anelada da luz que buscava”34)
É claro que isto será a obsessão de Felipa. Olhava para a lua e esperava um sinal. Um dia, de repente, no céu “tudo cessou de brilhar e a lua, feito vidro incandescente, repartiu-se em duas bolas vermelhas que vinham rolando nos rendados das nuvens, até pousarem certas, próximas de Felipa, que não tirava os olhos dela e acrescentava que eram duas donas brilhantes viajoras, que estavam sempre do seu lado”(35). Felipa não tem casa, não tem chalé. Não cuida de seu corpo, não tem corpo para o prazer, não tem condições de buscar comodidades. Sua realidade não é física nem corpórea. É mágica. Ela segue em frente, vive, projeta sua mente e cria. Meio mística, cria auto-defesas. Na hora da fome, pode pensar em peixe frito pescado agorinha na boca do rio e senti-lo frito na boca ,assim como, por exemplo, apanhar um punhado de ervas do chão “dessas verdinhas” e pensá-las como frutas deliciosas colhidas no pomar. Tem gosto de tangerina, de goiaba de laranja”(36). Magia transformadora do espírito. Realismo mágico. Felipa e João Bertolino continuarão, sempre em busca da”luz azul” que se instalava no espírito de Felipa. João Bertolino caminhava junto “pois haveria de alimentar-se com os sonhos da mulher”54)
A beleza da narrativa de Miguel Jorge consiste na verdade da travessia humana, empreendida por ricos e pobres, fracos e poderosos. Aos pobres resta caminhar, caminhar, na incerteza do que vão achar. A narrativa dá conta desta travessia, da indiferença da cidade burguesa perante os humildes(38), das promessas dos políticos e dos governadores prometendo casa para todos (39). A narrativa destaca a outra parte da cidade onde há habitações com cortinas, bancos, praças, jornais. Movimento, pressa.
O romance utiliza símbolos para se referir às coisas. Entre os símbolos mais utilizados para definir a cidade e o mundo, Miguel serve-se das cores. O amarelo pode significar a insatisfação da cidade consigo mesma(42) Na cidade vive Ziza, seu filho Adão e Yussef. Mostra-se todo o ritual de uma mãe e de uma família preparando o menino para ir para o colégio; “Adam, levante-se[...]Adam[...] Adam, mas que menino![...]Adam, não vai se atrasar?[...]Adam não vai tomar café?[...]Adam, tomou leite?[....]- A ida para o colégio. A escola. Adão e seus colegas. Adão e a Professora. O convite para o chalé. A intervenção dos dois anjos.
Na sequência da narrativa, há espaço para avaliação do que se passa no espírito e no corpo de Adão. São diálogos que o autor reúne debaixo do título de “Esboço para um diário”. Intimamente, Adão confidencia a seu interlocutor Viola: “Sabe, Viola, alguma coisa explode dentro de mim. Alguma coisa adormecida que começa a despertar, aproxima-se e não sei como recebê-la. Então eu recuo com medo, enterro ainda mais o boné na minha cabeça, quebrado na testa, encobrindo-me os olhos”(52).
Este tipo de confidencia pode significar a psicologia do desenvolvimento do ser humano e suas questões fundamentais e os mistérios que assediam o corpo e o espírito na grande travessia existencial.
A busca e a travessia existencial de Felipa, de João Bertolino e Nec-Nec, da faixa dos excluídos são duas grandes metáforas de natureza profundamente simbólica numa sociedade injusta como aquela em, que vivemos.
J.Ferreira-1998
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