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Artigos-->D. XICOTE MEDITA -- 25/04/2011 - 15:47 (Francisco Miguel de Moura) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




                              D. XICOTE MEDITA



                                               Conto



                                                



                                                                     Francisco Miguel de Moura*



 



 



O vento e as lembranças carregam D. Xicote para o  insondável, como nos sonhos em que não se pode despertar. De outras vezes já foi até onde a água se torna apenas um filete no caixão do rio, sem temer os buracos da estrada nem a poeira nos olhos.



          De cócoras em cima de uma pedra, à beira daquele volume imenso de água doce, que pode fazer mais? Nestas paragens, água é sede, pedra é lixo. As sombras foram consumidas pelo fogo de outubro. Pequenas folhas secas se entramelam pelos seus pés como perseguindo-o. Tanto esforço e dinheiro em vão  neste mundo solitário dos homens.



          De inopino chega-lhe um grito de revolta e ecoa no vale. Não há  perdão para a cidade e sua política. Não compreende como se vive tão mal e tão junto, tantos gênios de ações nulas, tanta mentira e crueldade.



          Joga a metade do cigarro no meio das águas, com um gesto de desprezo. Ele bóia, vai na onda. Depois fica parado. D. Xicote se arrepende. Tira a camisa  de meia e dá um salto na água, sem pensar num possível ataque das piranhas famintas. Recupera a bagana, enfim, e volta e enterra-a na praia artificial ali em frente.



          O último dos últimos!



          Suas palavras não fazem eco, não há ninguém por testemunha. Em breve não haverá nenhum país. Ecologistas de merda vêm, sujam e se vão. E na cidade ficam a gastar papel com protestos, bobagens, inconscientes de que estão poluindo no seu próprio ato.



          Há tempo os peixes dormem., os poucos que resistem: branquinhas, curimatás, mandis, piranhas, e nas locas talvez algum corró. Tudo parado. Ninguém belisca seu anzol. Cadê a próxima isca?  Tanta água desaproveitada, uma tristeza. Quantos animais e árvores e ervas e arbustos não morreram no fundo do vale, para dar lugar a outras vidas que seriam os cardumes de várias espécies!



Não fosse o vento... É o que compensa vir aqui.



          Mariquinha e seu Fulgêncio estão sepultados na memória. Se ainda são vivos, mudaram-se para lugar distante. Ela talvez viva e moça. Bonita como naquele tempo? Ou mais? Velho não se muda, não consegue assimilar alimento e cultura em região que não a sua,  o corpo cansado já não gera energia,  não rejuvenesce, não reflora.



          A escuridão da noite se aproxima.



          Uma coruja, espantada com o assoado do pescador solitário, pia. Os grilos cricrilam e os pirilampos, mudos para os ouvidos humanos, acendem seus fachos de curta glória.



          O estômago dói.



          A natureza sente, nos seus humores, angústias, melancolia e pena de viver.  Dor e  seus mistérios sem limite.



          D. Xicote pega o velho jipe de seu Chagas, vizinho de Amanda. Nunca faltou, sempre o empresta. Felizmente a máquina também não falha. Mas a pescaria solitária lhe rende apenas algumas piabas e duas curimatãs, e um mundo de lembranças que voltam como nuvens em caravana, nas sombras da noite sem lua, e se fixam corroendo o tempo.



          Há quarenta anos o vale do rio era uma riqueza. Bem que o padre Meira e o deputado José Murilo adivinharam a mesquinhez da política de província, desinteressada do amelhoramento da região e de que o povo recebesse alguma mensagem governamental que não fosse a cobrança de tributos. Outros padres e deputados vieram depois deles. E gastaram o dinheiro dos empréstimos dos Estados Unidos, da Alemanha, do Japão, para a construção da Barragem. Enfim, chegou a vez dos construtores, já não era possível reinaugurá-la sem sua existência. Agora deixam-na entregue às moscas, sem nenhuma vantagem econômica, servindo de refúgio aos ricaços da cidade, nos fins de semana, que trazem suas farofas, galetos e copos descartáveis, acompanhados de cervejas e uísques. Poluidores do universo!



          E é tudo.



          Há quarenta anos, lá no fundo, vivia a Fazenda Boa Vista, nome a que bem fez jus. Dentro e além dela, a floresta.  Mato seco na seca, mas bonito no inverno. Os paus-d’arco, que lindas flores roxas ou amarelas pelo mês de setembro! Os angicos que se perderam, as aroeiras que se transformaram em lama, as imburanas que sumiram, matéria de remédio pra curar gripe, pereba, dor do peito. Os bichos pequenos: preás, tatus, tamanduás e guaribas, até  ratos e lagartixas.



          Os homens não sabem o que fazer das coisas do mundo. O líquido precioso que inundou o vale do Guaribas também é bom e belo. Pode fluir pelo rio abaixo, deixando-o sempre rio, sempre vivo.  Mas, nada disto. Eles são uns tiranos. Se a água fosse aproveitada para irrigação daria tanta batata, abóbora, melancia, que era capaz de matar a fome da Terra dos Condenados a Curralinho e arredores.



          A Barragem ficou, o rio morreu.  



          Mariquinha, Mariquinha, teu nome revolve as cinzas da minha infância perdida, teu sorriso gravou-se indelével na alma deste animal que chamavam de Xico. E agora é nada. Quem poderá esquecer-te, mesmo que te tenha visto uma só vez?



          Lembranças que apaziguam a angústia de viver, tão-só.



          E Amanda?  Quem é Amanda?  Quer transformar o mundo para o bem e o amor. E busca  ajuda!  Coitada!  D. Xicote é um covarde.  Se não é, parece. E no mundo de hoje, quem parece será,  para todos séculos.



          A palavra fica. As letras o socorrem.  D. Xicote viveu o romance juvenil de uma noite. Agora, Mariquinha é todo esse fogo da imaginação. Quer reescrevê-lo para tocar, assim, o coração de quem não conhece  ambos. E são muitos. Como era linda ao nascer do dia, sem pente nem cheiro, sem vestido bonito, sem chinelos, pisando a terra  molhada de urina de vaca e bezerro, no curral da Fazenda Boa Vista! Cheiros que se foram. Berros que seus ouvidos gravaram para sempre. Com o amor que só na infância é possível.



É impossível!



Se fosse com Amanda... Espere... Tem horas em que as duas são uma só pessoa, uma se transfunde na outra. Elas se parecem em que traço? Não pôde encontrá-lo? Um dia encontrará, se for verdade. Ah, seu defeito hereditário! Vem do lado de  D. Morena que se queixava de não gravar  coisas pequeninas, sutis, como as feições de uma criatura.



          Vontade de escrever, preencher o tempo e encontrar-se com ele, o que passou. Dizem os teóricos que é com palavras que se escrevem romances, cinqüenta mil são suficientes para um, e quanto menos repeti-las melhor, mais rico o texto, mais forte, mais emocionante. Que sabem eles do romance, do conto e da novela?  Nunca escreveram unzinho sequer.  Romance também se faz de som e desespero. De espaços e ausências. De tempo. Da fúria da vida. Da morte.  Por isto vai lembrando de Bigó, o que se foi e, provavelmente, não escreveu nada. Nem voltará. Mas anda, conhece, e sobrevive. Sozinho. Queria ser um Bigó, de calça e camisa listradas, sapatos de segunda mão, chapéu de massa quebrado dos lados, alguns tostõezinhos no bolso e pé na estrada do mundo. Bahia, Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul, a última notícia. Teria ido parar na Argentina.  Viver... Só é preciso viver com dignidade. E ser digno é ser livre,  andar com a cabeça e os pés, criando sua própria existência.



          Difícil juntar tudo de uma vez. Outras reflexões nascem ao som monótono do jipe a rolar na piçarra. Tudo lhe dá a sensação gostosa de dormência, de sono, desejo de cama. Perigo. Precisa ficar atento. Vai passando  em frente ao Morro do Quebra Pescoço, uma luz o alumia lá em cima. Sussuapara! Aqui pretende montar sua residência definitiva. Comprar um sítio e vir aí viver e morrer com Amanda.



Mais dois quilômetros. As luzes da cidade ainda acesas.



          O tempo pára, o carro não pode, precisa chegar a seu destino.



          E Amanda? O primeiro descanso, a primeira luz, o primeiro posto?  Ó querida Amanda, amaremos como nunca, esta noite ou amanhã. Será o selo.



                             



Chega faminto, forra o estômago com o baião-de-dois e um caldinho gordo de carne guardados do jantar, por mãos carinhosas, na geladeira a querosene recém-adquirida por ela, rompendo todas as dificuldades financeiras. Que gostosura! Melhor iguaria que aquela  só a de D. Morena, que muitas vezes deixou de comer um punhado do que mais gostava para dar ao filho.



Meu amor, dorme! Que fique em sua maravilhosa quietude.



Cansado da viagem, D. Xicote adormece fundo, na rede grande da sala, sem dar conta de sua chegada aos demais. Ganhara recentemente uma chave da porta de fora, a seu próprio pedido. Para não perturbar a tranqüilidade de Amanda, àquelas horas descansando da estafa diária, da espera.



Na solidão.



E por que se demora tanto em suas pescarias sem futuro, como já falou o Ananias e a  própria D. Remédios?  Quem sabe das intenções alheias?



          Pequena tranqüilidade volta ao coração de D. Xicote na hora dos sonhos de menino. Ou de manhã, à beira do fogão, ouvindo histórias, na voz que aprendeu a amar. Interromper seus desejos, suas palavras, seria castigá-la outra vez, se as duas são uma. Para D. Xicote,  ninguém lhe tira da mente: com certeza Deus lhe concede uma segunda oportunidade. E encontrará meios de descobrir. “Não pode fazer da vida um constante pesadelo.”



_________________



*Francisco Miguel de Moura, poeta, cronista e romancista, autor do livro  D. Xicote, o  D. Quixote brasileiro.


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