Usina de Letras
Usina de Letras
70 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62240 )

Cartas ( 21334)

Contos (13265)

Cordel (10450)

Cronicas (22537)

Discursos (3239)

Ensaios - (10368)

Erótico (13570)

Frases (50639)

Humor (20031)

Infantil (5436)

Infanto Juvenil (4769)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140810)

Redação (3307)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6194)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Ensaios-->21 de Fevereiro - Uma Leitura da Poesia de Ana C. César -- 26/08/2000 - 23:31 (Thatiana Domingues Moure) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ana Cristina César – Análise de poema

(Trabalho relizado para conclusão do curso Introdução aos Estudos Literários da faculdade de Letras da Universidade de São Paulo - USP)


“Se o meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou”.
(Carlos Drummond de Andrade)


21 de Fevereiro

Não quero mais a fúria da verdade. Entro na sapataria popular.
Chove por detrás. Gatos amarelos circulando no fundo.
Abomino Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um
modelo brutal. Fica boazinha, dor; sábia como deve ser, não tão
generosa, não. Recebe o afeto que se encerra no meu peito. Me
calço decidida onde os gatos fazem que me amam, juvenis,
reais. Antes eu era 36, gata borralheira, pé ante pé, pequeno
polegar, pagar na caixa, receber na frente. Minha dor. Me dá a
mão. Vem por aqui, longe deles. Escuta querida, escuta. A
marcha desta noite. Se debruça sobre os anos neste pulso. Belo
belo. Tenho tudo que fere. As alemãs marchando que nem homem.
As cenas mais belas do romance o autor não soube
comentar. Não me deixa agora, fera.


1

Este poema de Ana Cristina César foi “publicado” primeiramente em junho/julho de 1979, no livro “Cenas de Abril”. Essa “1o. edição” teve um caráter artesanal, pois foi produzido independentemente e com uma tiragem reduzida, além do fato de a autora ter sido ajudada por amigos íntimos (e também participantes do movimento literário-cultural da época), como Heloísa Buarque de Hollanda (visual e capa) e Armando Freitas Filho (um dos responsáveis pela arte final), e contado com o apoio da Cia. Brasileira de Artes Gráficas (composição e impressão). O livro em questão foi, em 1982, incluído em “A Teus Pés” (primeiro a ser lançado por uma editora comercial, a Brasiliense), juntamente com “Correspondência Completa” (agosto de 1979) e Luvas de Pelica (novembro de 1980).
A circulação alternativa de textos literários pela qual a poesia de Ana Cristina passou antes de chegar ao mercado das grandes editoras reflete um importante traço da geração de poetas dos anos 70: a marginalidade. O conceito de marginal abrange, além da questão editorial, o fato desses poetas estarem fora do âmbito comportamental, político, intelectual, estético e moral estabelecido pelo contexto repressivo da sociedade daquela época, marcada pelos anos de chumbo da ditadura militar (AI-5, censura, perseguição).
A contracultura e o movimento Tropicalista do final dos anos 60 marcaram de forma significativa os poetas “marginais”. A liberação sexual e comportamental (representada pelo movimento hippie), a experiência com drogas, o movimento estudantil de maio de 68 são alguns aspectos que influenciaram os anos 70. Heloísa Buarque de Hollanda, no seu livro “Impressões de Viagem” faz o seguinte relato: “Recusando o discurso populista, desconfiado dos projetos de tomada do poder, valorizando a ocupação dos canais de massa, a construção literária das letras, a técnica, o fragmentário, o alegórico, o moderno e a crítica do comportamento, o Tropicalismo é a expressão de uma crise”.
Entretanto, Ana Cristina César tem uma poética particular, se distinguindo dessa dicção propositalmente antiliterária e formalmente simples de poetas como Chacal, Charles, Bernardo Villena, Leila Micolis, entre outros, que forjaram esse tom marginal, a partir de um coloquialismo influenciado por Oswald de Andrade, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e Waly Salomão.
Apesar de sua escrita ser caracterizada (como a de seus companheiros de geração) pelo prosaísmo (desestruturação do verso); pela linguagem distendida e cinematográfica, marcada pela montagem de imagens e pelo diálogo com os meios de comunicação de massa, Ana C. se afasta dessa geração quando analisada sob a ótica de um aspecto vital em sua obra: a tentativa de, nas palavras de Ítalo Moriconi, “tornar literário o antiliterário, fazer do antiliterário manifestação, ainda, do belo”. Dessa forma, sua poesia dialoga densamente com a tradição literária, aprofundando questões existenciais e levando seu texto a ir além do cotidiano, atingindo um alto grau de maturidade. Tudo isso baseado numa educação literária que engloba Baudelaire, T. S. Eliot, Katherine Mansfield, Emily Dickinson, Silvia Plath, Elizabeth Bishop, Manuel Bandeira, Drummond, Walt Whitman, Clarice Lispector e tantos outros que constituíram a sua fonte de absorção e criação.
É a partir dessas influências que o poema “21 de Fevereiro” pode ser lido. Ele faz parte de uma série de seis poemas escritos como se fossem páginas de um diário (“16 de junho”, “18 de fevereiro”, “19 de abril”, “16 de junho”, “21 de fevereiro” e “Meia-noite, 16 de junho”). Dessa forma, além de uma análise de como Ana C. trabalha a linguagem poética tradicional e a intertextualidade, convém fazer um panorama sobre a criação de seus “diários mentirosos”.


2

Ana atua no limite entre a confissão e a literatura e, nessa constante tensão, se desdobra em muitas imagens. Em muitos “eus”. A poesia era a sua correspondência com o mundo e seduz o leitor por sua linguagem direta: como numa carta ou diário.
Esses “diários” são, na verdade, uma reflexão do fazer poético. A poeta dialoga com outros textos, num jogo intertextual. Há, também, uma identidade que não de define, em meio a uma ambigüidade sexual. A identidade se constrói e se desconstrói durante toda a obra da poeta, num conflito perene entre o masculino e o feminino. Ana dialoga com textos masculinos e os (re)inventa em meio a uma linguagem estigmatizada como feminina (a carta, o diário, a linguagem íntima e confessional). Dessa forma, há uma tentativa de superar esse vínculo entre literatura feminina e gêneros confessionais. Afinal, sua confissão é fingida.
Além disso, o interlocutor se envolve nesse processo de fingimento, tornando-se cúmplice de um sujeito poético fictício, fragmentado e indefinido. É nesse ponto que há uma densa ligação com a poesia maldita de Baudelaire: “Leitor hipócrita, - meu semelhante, - meu irmão!”. O jogo da sedução impera nessa relação, em que um eu poético se desnuda, se jogando aos pés do leitor e, em seguida, muda de dicção e foge do interlocutor, fazendo com que este se submeta num tempo e espaço que são descontínuos. Entretanto, o diário tem um tom marcadamente lírico, devido à sensação de intimidade expressada pelo eu poético em primeira pessoa. Silviano Santiago analisou essa questão do leitor na obra de Ana: “O poema, sem ser carta, sem ser carta aberta, abre no entanto lugar para um destinatário que, apesar de ser sempre singular, não é pessoal porque necessariamente anônimo. Singular e anônimo o leitor, ele não é todos como também não é uma única pessoa”.
Em abril de 1983, Ana C. deu um depoimento no curso “Literatura de Mulheres no Brasil” (Faculdade da Cidade), em que fala a respeito acerca de “A Teus Pés”. Os trechos abaixo ilustram essa questão dos diários:
“Então, o primeiro tipo de produção de escrita que a gente tem (carta e diário) – e isso quando a gente pensa um pouco em escrita de mulher... Mulher, na história, começa a escrever por aí, dentro do âmbito particular, do familiar, do estritamente íntimo”.
“Quando você está escrevendo um diário... Existe muito aquela expressão “querido diário”. Você está também de olho num interlocutor. Você escreve um diário exatamente porque não tem um confidente, está substituindo um confidente teu. Então vai escrever um diário para suprir esse interlocutor que está faltando.”
“A gente não sabe direito para quem a gente escreve. Mas existe, por trás do que a gente escreve, o desejo do encontro ou o desejo de mobilização do outro”.
“Aqui não é um diário mesmo, de verdade, não é o meu diário. Aqui é fingido, inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção”.
“Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela construção, ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade acerca da minha subjetividade”.


3

“21 de fevereiro” é um poema em prosa repleto de apropriações e referências, num embate que o sujeito poético trava consigo mesmo, para que não aceite a influência (que é inevitável) dos modelos da tradição literária. A intertextualidade gira em torno de Charles Baudelaire e Manuel Bandeira.
A estrutura do poema incorpora, de acordo com o explicitado pelo item anterior, a estrutura do diário, refletindo uma linguagem fragmentada, que tenta ser distendida. Porém, a suposta dicção coloquial é impedida de se concretizar completamente, pois entra em choque com os trechos incorporados de outros poemas. A estrutura de linguagem confessional tem uma influência vital no plano do significado do poema, pois ela envolve tanto o leitor quando o eu poético, num jogo de sedução liderado pelos gatos de Baudelaire.
O eu poético inicia com um conflito já em andamento: “Não quero mais a fúria da verdade”. O não querer é a negação de um desejo. Entretanto, o advérbio “mais” marca que essa “fúria” foi desejada um dia. Observa-se, a partir desse momento, duas situações distintas: uma luta do eu lírico contra a “fúria da verdade” e o início da busca, pelo leitor, de uma série de respostas que, provavelmente, não aparecerão facilmente.
Há um corte brusco na cena; de um espaço psicológico e uma reflexão íntima passa-se direto ao local físico: uma sapataria aparentemente desconexa com o poema. Contudo, essa mudança, que lembra a navalha cortando os olhos em “Um Cão Andaluz” de Buñel, é uma tentativa de encontrar a verdade e solucionar a tortuosa incerteza em questão.
Essa sapataria é metafórica, pois representa o local onde todos os modelos estão à mostra, livres para serem comprados e usados. Esses modelos representam a própria tradição literária. O eu poético tenta escapar da verdade, aquilo que Baudelaire tanto procura transmitir na sua obra. Uma verdade em fúria, que retrata a decadência, a artificialidade, o tédio, o lado negro e do caos das metrópoles urbanas e da modernidade; uma verdade que entra em conflito com a sociedade de massas; daí o caráter popular da sapataria, que além de ter todos os modelos à disposição, tem o acesso livre. Essa questão pode ser colocada da seguinte forma: sapataria ® espaço onde ocorre a “ação” do poema; é, num sentido metafórico, a mente do eu poético; sapatos ® modelos da tradição literária.
Enquanto isso, “chove por detrás”; como em Bandeira :”A chuva cai. O ar fica mole.../ Indistinto...ambarino...gris...” (Enquanto a Chuva Cai). Ao fundo, os gatos circulam. A figura do gato também é metafórica, pois esses animais são envolventes e estão circulando o eu poético, para o seduzir e não deixá-lo escapar.
O gato é um tema constante em Baudelaire; no livro “As Flores do Mal” há três poemas dedicados a esses felinos. Dentre eles, o mais claramente retomado por Ana Cristina em “21 de fevereiro” é o transcrito abaixo:

O Gato

I

Dentro em meu cérebro vai e vem
Como se a sua casa fosse
Um belo gato, forte e doce.
Quando ele mia, mal há quem

Lhe ouça o fugaz timbre discreto;
Seja serena ou iracunda,
Soa-lhe a voz rica e profunda.
Eis seu encanto mais secreto.

Essa voz que infiltra e afina
Em meu recesso mais umbroso
Me enche qual verso numeroso
E como um filtro me ilumina.

Os piores males ela embala
E os êxtases todos oferta;
Para enunciar a frase certa,
Não é com palavras que fala.

Não, não existe arco que morda
Meu coração , nobre instrumento,
Ou faça como tal sentimento
Vibrar-lhe a mais sensível corda

Que a tua voz, ó misterioso
Gato de místico veludo,
Em que, como num anjo, tudo
É tão sutil quanto gracioso!




II

De seu pêlo louro e tostado
Um perfume tão doce flui
Que uma noite, ao mimá-lo, fui
Por seu aroma embalsamado.

É a alma familiar da morada;
Ele julga, inspira, demarca
Tudo que seu império abarca;
Será um deus, será uma fada?

Se nesse gato que me é caro,
Como por ímãs atraídos,
Os olhos ponho comovidos
E ali comigo me deparo,

Vejo aturdido a luz que lhe arde
Nas pálidas pupilas ralas,
Claros faróis, vivas opalas,
Que me contemplam sem alarde.

(Tradução de Ivan Junqueira)

Nesse poema há uma minuciosa descrição do poder sedutor do gato e do quanto a sua presença e suas características deleitam o eu poético. No poema de Ana C. os “gatos amarelos” são reproduções do felino de “pêlo louro e tostado” de Baudelaire. Assim como dentro do cérebro do sujeito poético o “belo gato” “vai e vem/Como se sua casa fosse”, em “21 de fevereiro” os gatos “circulam ao fundo”, rondando a mente do eu poético para que ele não resista ao “modelo brutal”.
A ação de entrar na sapataria (na verdade, de entrar dentro de si mesmo) denota uma reação do eu poético no sentido de tentar se desvencilhar da verdade que tanto o atormenta. Assim, após imagens descritivas, há os versos que são vitais para a delimitação do par antitético resultante da tensão central do poema: “Abomino Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um modelo brutal”. A tensão consiste na decisão entre aceitar ou desprezar influências tão marcantes; o par antitético fica assim delimitado:

Embasar-se na tradição literária X Libertar-se da tradição literária

A palavra mas estabelece uma interessante relação de oposição: essa conjunção adversativa aparece logo após o sujeito poético abominar aquele ao qual, em seguida, chama de querido. Dessa forma, há uma negação do paradoxo (abominar o querido) e uma posterior afirmação de que há a efetiva procura pelo modelo literário (representado pelo sapato).
O “modelo brutal” é finalmente encontrado, pois, a partir desse momento há a incorporação não só de temas baudelarianos (como o gato), mas também de versos inteiros do poema “Recolhimento”.
Recolhimento

Sê sábia, ó minha Dor, e queda-te mais quieta.
Reclamavas a Tarde; eis que ela vem descendo:
Sobre a cidade um véu de sombras se projeta,
A alguns trazendo a angústia, a paz a outros trazendo.

Enquanto dos mortais a multidão abjeta,
Sob o flagelo do Prazer, algoz horrendo,
Remorsos colhe à festa e sôfrega se inquieta,
Dá-me, ó Dor, tua mão; vem por aqui, correndo

Deles. Vem ver curvarem-se os Anos passados
Nas varandas do céu, em trajes antiquados;
Surgir das águas a Saudade sorridente;

O Sol que numa arcada agoniza e se aninha,
E, qual longo sudário a arrastar-se no Oriente
Ouve querida, a doce Noite que caminha.

(Tradução de Ivan Junqueira)

Os trechos “Fica boazinha dor; sábia como deve ser, não tão generosa não” e “Minha dor. Me dá a mão. Vem por aqui, longe deles. Escuta, querida, escuta. A marcha desta noite” são traduções distendidas dos versos grifados no poema acima. A posição desses trechos no poema de Ana C. denota um aspecto relevante: eles têm a função de delimitar o que ocorre entre a aceitação do modelo e a concretização da compra dos sapatos (no sentido figurado da palavra, uma vez que tudo ocorre num sentido metafórico). Dessa forma, acabam sendo elementos que reforçam, semântica e estruturalmente, a impossibilidade de o eu poético fugir dessas referências.
O trecho “Recebe o afeto que se encerra no meu peito” dialoga com um verso do “Hino à Bandeira Nacional”: “Recebe o afeto que se encerra/Em nosso peito juvenil”. A letra desse hino foi composta pelo parnasiano Olavo Bilac, o que implica uma certa ironia. Ao invés da Bandeira Nacional, os destinatários desse afeto são Baudelaire e Manuel Bandeira.
Os gatos retornam quando o sujeito poético “calça decidida” os sapatos. Esses animais são envolventes e temperamentais, chegando a, muitas vezes, controlar o dono (segundo Baudelaire, “Ele julga, inspira, demarca/Tudo que seu império abarca”). Assim, demonstram afeto quando conseguem o que querem. Apenas fazem que amam. Entretanto, são eles os reais e “juvenis” e não o peito, como nos versos de Bilac. Na hora de efetivar a compra, a lembrança de ter sido uma gata borralheira remete a uma condição de espera pelo sapato que calçasse perfeitamente (“Antes eu era 36”), ou seja, do modelo estético-literário que viesse ao encontro da sensibilidade do eu poético. A aliteração do p em “pé ante pé, pequeno polegar, pagar na caixa”, denota força e explosão, numa última tentativa de resistir.
Toda essa tradição literária se debruça no pulso, ou seja, na mão que escreve. Isso leva à conclusão que o diálogo com outros poetas não se faz por simples cópia, mas por meio de uma incorporação consciente, que se transforma ao passar pela mão da poeta que pensa. E uma prova disso é a forma como Bandeira é retomado no poema em questão: “Belo belo. Tenho tudo que fere”.

Belo Belo

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.
Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo – que foi? passou! – de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.
Belo belo belo
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

(Lira dos Cinqüent’anos)

Belo Belo

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre as escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.

(Belo Belo)

Ana C. se aproxima de Bandeira no seu trato coloquial da linguagem, além de também captar, por meio de temas do cotidiano, o que há de complexo por detrás do aparentemente explícito e evidente.
No primeiro “Belo Belo”, o eu poético delimita que aquilo que ele possui condiz com os seus desejos; em oposição com tudo o que ele não quer. O segundo “Belo Belo” é a situação inversa: o eu poético não tem o que deseja e enumera, no poema, tudo aquilo que quer. Nesse sentido, ambos os poemas aproximam-se com o primeiro verso de “21 de fevereiro”: “Não quero mais a fúria da verdade” e a temática do desejo contida no poema. Além disso, há a paródia do verso “Tenho tudo quanto quero”, que se transforma em “Tenho tudo que fere”. E o que fere é dicção muitas vezes áspera do “eu” nos poemas de Ana C.(que, ao mesmo tempo, leva a uma série de reflexões), além da aproximação entre masculino e feminino, tema constante na obra da poeta. “Fere” liga-se à “As alemãs marchando que nem homem”, o que também reflete a indefinição de uma identidade.
Entretanto, mesmo que o belo não possa ser explicado (“As cenas mais belas do romance o autor não soube comentar”), o sujeito poético não quer mais que a “fera” o deixe, ou seja, o que no início do processo era desprezado de forma paradoxal, passa a ser desejado novamente. É interessante observar as frases inicial e final (que são duas negativas) remetem de maneira significativa a oposição central do poema:

“Não quero mais saber da fúria da verdade” X “Não me deixa agora, fera”

O jogo intertextual com a tradição literária e a escolha do gênero “confessional” (diário) são pontos de tensão que articulam elementos contraditórios e fazem o poema situar-se sempre no limite.
Dessa forma, o processo de escrita “confessional” leva a uma tentativa de tematizar o “eu” no mundo, por meio da solidão e do encontro consigo mesmo, além de provocar o confronto do artista com sua própria obra.





· Bibliografia


1. BANDEIRA, Manuel.Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

2. BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal (Tradução, introdução e notas: Ivan Junqueira – edição bilíngüe). Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1985.

3. CAMARGO, Maria Lúcia de Barros. Atrás dos Olhos Pardos: Uma Leitura da Poesia de Ana Cristina César. Tese apresentada na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, junto ao Departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1990.

4. CÂNDIDO, Antônio. Na Sala de Aula – Caderno de Análise Literária. 7o. edição. São Paulo: Editora Ática, 1999.

5. CÉSAR, Ana Cristina. A Teus Pés. 2o. edição. São Paulo: Editora Ática, 1999.

6. CÉSAR, Ana Cristina. Escritos no Rio. 1o. edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora Brasiliense, 1993.

7. FURIA, Luíza Mendes. “Os Suspiros Poéticos e Saudades de Ana C.”. In: “O Estado de S. Paulo” – Caderno 2 – 27/11/1999.

8. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem – cpc, vanguanda e desbunde: 1960/1970. 3o. edição. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

9. LIMA, Regina Helena Souza da Cunha. O Desejo na Poesia de Ana Cristina César (1952/1983): Escritura de T(e)s. São Paulo: Anna Blume, 1993.

10. PONTIERO, Giovanni. Manuel Bandeira (Visão Geral de Sua Obra). Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.

11. MORICONI, Ítalo. Ana Cristina César – O Sangue de uma Poeta. 1o. edição Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.

12. SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas da Letra. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

13. SÜSSEKIND, Flora. Até Segunda Ordem Não Me Risque Nada (Os cadernos, rascunhos e a poesia-em-vozes de Ana Cristina César). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui