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Contos-->Templo dos Morcegos -- 21/10/2002 - 17:53 (Noemia dos Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


_Abençoa, Senhor, este alimento...
A voz de minha tia se perde sob o barulho da chuva. Todas as noites a mesma rotina. Ela se planta na cabeceira da mesa e faz as orações antes do jantar. É quando as seis mulheres reúnem-se, todas caladas, todas de luto. Meu tio Léo, que ocupava a outra cabeceira, morreu há três anos. Mas tia Eloá não tira o vestido preto, o xale preto, a expressão vazia e infeliz. O último lugar à direita de minha tia, em frente ao meu, também está vago. O único filho homem, o primogênito, fugira com uma cigana já fazia seis anos. Tia Eloá vestia luto eterno pelos dois únicos homens de sua vida.
_...a fome de nós todas, amém.
Olho minha tia e não sei se sinto ódio ou compaixão. Pobre mulher! Minha mãe se casara com o irmão dela e viera tirar-lhe o comando da casa. Mamãe, segundo me contam as primas, era belíssima e muito alegre; conduzia os trabalhos da casa com perfeição e estava sempre bem-humorada. Mas o marido não sabia apreciar as virtudes da mulher, era um bronco mal educado. Então minha mãe conheceu o Holandês. Ninguém gosta de me contar a história toda, mas desconfio que os dois devem ter se amado muito. A barriga começou a crescer e o marido ficou eufórico: um filho! Eu nasci, o marido olhou-me nos olhos e gritou: É filha do Holandês! Não houve meio de mamãe dissuadi-lo, ele a esmurrou e saiu pra nunca mais voltar. Meu avô espancou a filha até a morte. Dois dias depois chegou o Holandês, olhos azuis iguais aos meus:
_Vim buscar minha filha. Vocês vão matá-la como mataram a mãe.
Dizem que saíam chispas dos olhos do meu avô. Ele botou meu pai pra fora e disse que em sua neta ninguém tocava. Levou-me para sua casa e cuidou de mim durante seis anos. Lembro-me dos olhos cheios d’água quando eu perguntava por meus pais.
_Estão mortos.
Quando ele morreu, trouxeram-me para a casa de tia Eloá, a única parenta viva. Ela me recebeu com uma expressão de cinismo e desprezo:
_A bastardinha vai morar conosco?
Tio Léo ainda estava vivo e proibiu que me chamassem de “bastardinha”. Em seu enterro, ao ver o caixão coberto de terra, chorei em silêncio, um choro doído e desesperado. Sentia-me desamparada, definitivamente. Aos oito anos de idade o mundo desabava sobre minha cabeça.
Tenho onze anos mas me sinto como se já tivesse vivido séculos, tal a tristeza que me acompanha. Acho que herdei a tristeza deles, meu avô, minha mãe e talvez meu pai. E ela se multiplica conforme passam as estações. Estamos no verão, o calor sufocante do dia é abrandado à noite quando vem a chuva, violenta. E quando chove é que fico mais triste. Minha prima Sépia diz que eu nasci num dia chuvoso, cinza e triste; por isso minha vida vai ser sempre desgraçada. Às vezes acredito nela.
_Hei, não escutou? Hoje é seu dia de lavar a louça.
Todo dia é meu dia de lavar a louça. É sempre assim, eu lavo a louça faça chuva ou faça sol. Mas minhas primas mais jovens, Rosa e Amora, sempre me ajudam. Rosa, divina e graciosa, a mais bela, fez dezesseis há dois meses. É a que mais parece com tio Léo: o mesmo jeito explosivo, a mesma energia. Amora, com quatorze anos, a mais doce. Está sempre calma, sempre quieta. As duas me falam de minha mãe com carinho, apesar de terem-na conhecido muito pouco. Malena, de 17 e Sépia de 18 anos lembram melhor dela mas não gostam de falar. Tia Eloá não gosta nem de mencionar-lhe o nome.
_A bastardinha vai demorar muito?
Não é compaixão, é ódio mesmo. Minha tia sabe como ser cruel. Sob sua aparente frieza deve haver um vulcão de ressentimentos e frustrações. Tio Léo merecia virar santo depois de ter vivido por dezessete anos com esta mulher. Acho que foi a convivência que o matou; dividir a mesma casa, o mesmo quarto, a mesma cama com tia Eloá deve tê-lo contaminado com um vírus mortal e implacável.
_Pronto, Seara, podemos ir dormir.
Engraçado como Rosa pronuncia meu nome. Seu modo de falar dá um quê de poder a ele, como se lhe transmitisse a força que emana dela própria. Fora meu avô quem me dera o nome; minha mãe não tivera tempo e meu pai, oportunidade. Meu avô depositava suas esperanças em mim. E me desesperava saber que eu não era capaz de atender-lhe as expectativas. A cada dia eu me sentia mais longe de qualquer ideal que ele tivesse sonhado para mim. Meu pobre avô me imaginava um enorme campo pronto a suprir cidades inteiras e eu não passava de um mísero pedaço de terra inútil e estéril.
_Quer que eu conte uma estória?
Amora contava-me estórias quase todas as noites. Heróis, vilões, princesas e príncipes ganhavam alma e cor em sua voz. Mas hoje não quero estórias. Estou por demais intrigada com algo que achei, ou melhor, roubei do quarto de tia Eloá. Pela manhã, ao arrumar o quarto, encontrei um pacote de cartas. Mas só duas me chamaram a atenção: endereçadas a minha tia, as duas traziam no envelope, com letra grande e bem definida, um nome que eu não conseguia ler. Pensei logo que fossem notícias interessantes, de gente de muito longe. Guardei-as no bolso para lê-las mais tarde. Tia Eloá provavelmente não sentiria falta delas, no dia seguinte eu colocaria de volta.
Esperei que todas se recolhessem e a casa ficasse em silêncio. Peguei a primeira carta, escrita há dois anos. Era curta, dava conta da mudança do remetente para a capital, com o endereço bem explicado e com pontos de referência. Ele voltara da Holanda naquele ano e pedia permissão para falar com tia Eloá. “É meu pai!” Imaginei logo. Só podia ser ele. Anotei o endereço com cuidado e guardei-o no bolso. A segunda carta era bem recente, menos de um mês, e muito agressiva. Cheguei a ler até a metade. O tal remetente parecia furioso com a negativa de minha tia, provavelmente ao seu pedido para falar com ela. Ele dizia coisas como “falta de compaixão”, “ressentimentos por assuntos do passado”. Que assuntos do passado ligariam meu pai a tia Eloá? Teria continuado a leitura até o fim não fosse um pequeno imprevisto.
_Está fazendo o quê acordada até esta hora? O que você está escondendo aí?
Tia Eloá sempre dormia feito uma pedra e nunca acordava no meio da noite. Só que, nesta noite, ela acordou e viu a luz do meu quarto acesa. Tomou-me as cartas e me deu violenta bofetada, totalmente possessa:
_Sua bastarda insolente! Vai ficar de castigo no porão a noite inteira!
Apesar dos protestos de Rosa e Amora, minha tia foi me arrastando escada abaixo e só não me largou no escuro porque uma afável e irreconhecível Malena veio me trazer uma vela e um cobertor. Passou a mão em minha cabeça e disse que a mãe havia exagerado. Nunca havia visto um gesto de carinho vindo dela, espantei-me deveras. O porão era área proibida da casa, ninguém punha os pés lá há anos. Era um típico porão de casa velha, coberto de teias de aranha e poeira por toda parte. Estranhamente o porão me pareceu a tia Eloá, tão cheia de segredos, envolta em mistério. Tia Eloá parecia mesmo era uma casa velha, enorme e vazia, povoada de fantasmas, cheia de quartos escuros, labirintos, passagens secretas.
Apalpei o bolso do vestido para certificar-me de que o endereço de meu pai ainda estava lá. Talvez pudesse encontrá-lo, seria bom ouvi-lo pronunciar o próprio nome, ilegível para mim. Se ele queria falar com tia Eloá certamente estava à minha procura. Ele não sabia que eu morava com ela! Amanhã, quando sair daqui, fujo e vou procurá-lo. O melhor agora era mexer nas caixas espalhadas pelo cômodo. Muitas estavam lacradas, uma pena. Mas havia uma muito empoeirada, cheia de retratos. Desde que cheguei a esta casa nunca vi um retrato na sala, nem mesmo nos tempos do tio Léo, tão fotogênico com aquele sorriso de boca inteira. Tia Eloá deve ter guardado todos os bons momentos do passado nesta caixa na esperança de preservar a felicidade dos dias em que era jovem, bonita talvez. Tirei todos os retratos para ir guardando na ordem. Se ela percebe que mexi em alguma coisa, é capaz de manter-me aqui por uma semana...
Os primeiros estavam muito velhos e amarelados, os antepassados da velha Eloá. Muita gente feia e desconhecida. A foto do casamento! Tia Eloá nunca fora bela, coitada, nem quando jovem. A beleza das meninas vinha de tio Léo, bem se vê. Muitas fotos das meninas ainda pequenas, sempre com tio Léo. Uma foto de um menino, deve ser o Inocêncio. Olhos azuis? Em outra foto, mais nítida, percebo a semelhança de seus traços com os meus. Definitivamente não é ódio, é compaixão. Pobre tia Eloá... Este então era o seu segredo? O primogênito fora renegado pelo pai e criado como filho por outro homem. Eu, então, era a única bastarda? Minha mãe fora a única a envergonhar a família? Pobre tia Eloá! Não suportou ver meu pai apaixonado por outra mulher. Rejeitada pelo homem que amava acabou se tornando esta criatura sombria, amarga, sinistra. Pobre tia Eloá!

E o que se ouve na noite é a gargalhada da menina, espantando morcegos.







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