Em conferência proferida no recente fórum social mundial, o conhecido sociólogo português Boaventura dos Santos, o ex-Prefeito Raul Pont, um representante líbio e outro mexicano enfrentaram o tema “democracia participativa” sem qualquer referência à necessidade de integração entre a população e os Parlamentos. Minto. Em seu discurso, o ex-Prefeito da cidade que sediou o evento chegou a mencionar indiretamente o Poder Legislativo, instigando o descumprimento de normas legais que embaraçam a participação do povo nas decisões adotadas pelo Executivo.
A abordagem causa preocupação. Não pela indiscutível autoridade dos dois conferencistas aqui citados, mas pela visão de mundo que desvenda. A esquerda, salada à qual provavelmente pertencerei até o fim da vida, possui, descontadas as exceções confirmadoras da regra, uma irresistível inclinação para desprezar o papel dos órgãos legislativos, até como forma de segregar em pólos contrários os conceitos de democracia participativa e democracia representativa.
O resultado de tudo é um grande engano, não obstante certas premissas em que se funda esse raciocínio pareçam consistentes. Não há como negar o fato de que nenhum Parlamento, em nenhuma democracia formal conhecida, possui legitimidade para desempenhar a função que lhe é destinada. Seus integrantes – sem nenhuma exceção – nunca são o retrato dos eleitores que deveriam representar. Empresários correspondem a uma parcela ínfima das populações nacionais e ocupam mais de noventa por cento das cadeiras em todos os Legislativos. No Brasil, negros, pobres e mulheres, a levar em conta o número de Deputados e Senadores que elegem, não existem, ou não passam de minorias insignificantes.
Partir de uma verdade e alcançar uma mentira não chega a ser incomum, mas, no caso, as conseqüências são mais graves que de costume. Ao invés de procurar corrigir essas distorções, prefere-se jogá-las para debaixo do tapete, como se a solução pudesse ser encontrada no afastamento do Legislativo do jogo político. O conceito de democracia participativa passa a representar um conjunto de medidas que não só despreza como enfrenta e confronta o papel do Parlamento.
Há uma contradição intrínseca nesse pensamento. O Executivo, em regra, também não é o retrato das tensões demográficas. Fernando Henrique Cardoso não defende além do interesse de um punhado de barões da indústria, do comércio, do setor financeiro, da bandalheira verticalizada e institucionalizada. É um lamentável equívoco supor que no Executivo, contra todas as evidências, a participação popular pode surtir efeito. A eleição da esquerda configura quase um acidente de percurso, uma verdadeira e não pressentida legitimação das vitórias conservadoras.
Além disso, não se tem como evitar o risco de que se chegue, no extremo, ao mais puro e ultrapassado caudilhismo. É melhor que se introduzam instrumentos destinados a garantir a representatividade efetiva do Legislativo. Parece bem mais sensato que não possam, Deputados, Senadores, Vereadores e congêneres, apertar impunemente botões que contrariam a vontade de seus eleitores. O que se conclui, de tudo, é que a restrição ao alcance do poder e a limitação de sua estrutura não resultam em nada melhor que a Argentina, país há poucas décadas caracterizado pela prosperidade e hoje mundialmente conhecido por ter uma única indústria lucrativa: a de panelas.