DO JEITINHO QUE O DIABO GOSTA (I I)
(por Domingos Oliveira Medeiros)
De repente, as coisas começaram a desandar. Tudo dava errado. Uma queda, na calçada, logo pela manhã, ao sair de casa. Um dos pneus do carro estava arriado. Algum desocupado não tinha o que fazer ontem a noite. Ou nesta madrugada. Por isso, cheguei atrasado no trabalho. O tempo mudava de repente. Começou a chover. Chuva grossa. Chuva de verão. Levei um banho de lama, bem próximo à entrada no escritório. Tive que trocar de roupa. Ainda bem que costumo guardar um muda no trabalho como prevenção.
Sentado à mesa de trabalho pude ver. Lá estava o envelope. Uma carta de cobrança. Malcriada e ameaçadora. Não me lembrava que tinha sido fiador. Saí à s pressas. Duas horas na fila de banco e a surpresa: saldo devedor: Cortaram meu cheque especial. Motivo: cheques sem fundo. depositaram os pré-datados antes do tempo. Reclamei. Ficaram de resolver amanhã. Não dava mais tempo. O expediente no banco já havia encerrado.
Voltei para o trabalho desconsolado. O chefe me olhava entre desconfiado e zangado. No outro dia, lembrei-me do Carlos, um amigo vidente. Por telefone, ele me disse, após ouvir minhas reclamações: - É coisa dele! Dele quem? Do Coisa Ruim. Você precisa se cuidar! Muita reza, e reza forte! Não pensei duas vezes. Decidi encarar o problema de frente. Cara a cara. De homem prá homem; quer dizer: de homem pro Coisa Ruim!
Procurei seu telefone no catálogo e, claro, não achei. Nem na letra C, e muito menos na letra D; o Coisa Ruim ou o Diabo, como queiram, só poderia estar num desses inferninhos. Fui até lá. No mais conhecido e frequentado. Ele não estava. Mas consegui o número do celular. Liguei.. Expliquei tudo. Cada detalhe. Mas ele ponderou. Apelou para o bom senso. Disse-me que não ia ficar bem se ele resolvesse atender à s minhas reivindicações. Que achavam até justas, mas, por questão de ética, nada poderia fazer. Seria um duro golpe em sua má reputação.
Tentei mostrar-lhe as vantagens da minha proposta. Que ele poderia encarar aquele fato como um desafio. Talvez pudesse enriquecer seus métodos de trabalho. Ele acabou cedendo. Marcamos um encontro. Disse-lhe que o que ele vinha fazendo ultimamente era muito sem graça. Coisa superada. Coisa de criança. Gozação e perseguição aos outros, sem motivo aparente? Nada a ver!! Disse-lhe que o mundo estava noutra. Em busca da paz e da harmonia. Guerra já tínhamos de mais.
Ponderei que ele precisava mudar de vida! Que essa história de viver perseguindo os servidores aposentados, ameaçando cobrar duas vezes a contribuição previdenciária, a bem da verdade, mais ajudava ao governo do que, propriamente, atrapalhava os aposentados. E que não ficava bem para um diabo ajudar o governo. Qualquer governo. Até mesmo um governo ruim. Questão de concorrência desleal. Lembrei-lhe que o verbo ajudar não deveria constar do dicionário de um diabo. Pelo menos de um diabo experiente.
E mais: lembrei-lhe que aquela história do apagão ficou muito mal contada. Mas que foi um trabalho de mestre, lá isso foi! Não sei como você conseguiu aquilo. Mas a verdade é que o presidente teve um lapso de memória, e não fez investimentos para ampliação da nossa matriz energética. O fato é que tudo aconteceu como você esperava: sobrou para a população, como sempre, que se virou como póde. Desligou o freezer, trocou làmpadas, proibiu o uso do ar condicionado, diminuiu o banho quente, colaborou de várias maneiras. Mesmo a contragosto. E o consumo de energia acabou caindo.
Resultado: prejuízo para as empresas distribuidoras. E o que fez o presidente? Aumentou o preço da energia para manter o lucro das empresas. E vieram as chuvas. E os aumentos também. Um golpe de mestre! Só da cabecinha privilegiada de um diabo como você poderia sair esta pérola de malvadeza.
Igual a esse só aquele do painél eletrónico do Senado. Você deve ter se divertido um bocado. E a greve dos professores? Ninguém se entendia; não se sabia quem era o mais prejudicado. Se o governo, se os professores, se os alunos, se os pais ou se a candidatura do Ministro da Educação, que foi pro brejo, junto com os mosquitos da Dengue. Nessa você pegou pesado!
E tem mais: a gozação com a correção da tabela do imposto de renda, é de arrepiar. Tabela, aliás, que não se corrigia há sete anos. De repente, você sopra nos ouvidos dos parlamentares que aprovam a correção pela metade, sem falar nos atrasados. Golpe duplo: no governo, que deixou de ganhar mais um pouco; e na população, que passou a perder a correção.E quando todo mundo pensava que o assunto estava encerrado, vem você e inventa uma história de que o presidente iria vetar o projeto e, na mesma hora, encaminhar medida provisória, aumentando o tamanho da facada. Sobrando, desta vez, para os pequenos empresários.Você não tem mesmo jeito! Não se contenta com pouca coisa.
A flexibilização da CLT foi outro grande golpe. De uma só tacada você começou a apagar a Era Vargas, sem precisar morrer para entrar para a história. Suprimiu direitos dos trabalhadores - com o apoio de sindicalistas - e, de quebra, iniciou o processo de desgaste e desmonte da Justiça do Trabalho. Só que, também nesse caso, a ajuda ao governo pegou mal. O que é que você está armando ? De olho nas eleições ? ou pretende ser nomeado para a uma vaga de conselheiro do Tribunal de Contas ? Teve dedo seu na candidatura da Roseana ? Vê lá o que vai arrumar com o Serra!.... Aliás, prá ser sincero, você já está aprontando com ele. Só pelo fato de ele estar sendo apoiado pelo Fernando Henrique, e tentar um discurso de oposição, que vai mudar tudo, caso seja eleito, já é uma grande piada. De mau gosto. Logo com o Serra, que parece um homem bom. Incapaz de matar um mosquito.
Mas por favor! Pára com isso! A confusão que você armou para as eleições, com esta tal de coligação única, foi demais. Você exagerou. Virou tudo de cabeças para baixo. Está confundindo todo mundo. É muita maldade!
Primeiro, você arranjou um jeito de o Lula entrar na onde dos marqueteiros. Virou sabonete de propaganda. Você conseguiu colocar o Lula de paletó e gravata, de barba bem cuidada. Limpo e cheiroso. Fala mansa e bem educado. Incapaz de insultos ou ironias. Nem contra o candidato do governo. O grande Lula, o sindicalista que fundou um dos maiores partidos de oposição neste país, parece um padre pedindo votos para construção de um igreja. E até já está junto com o PL E o vice de sua chapa é um empresário. Do lado do capital. Grande jogada de marketing. O Lula agora tem a fala mansa, tolera o Maluf, aceita o Orestes Quércia, o FMI, tudo numa boa, como dizem a rapaziada. O importante é chegar lá. Você é competente e maldoso!
E o Ciro Gomes? Você conseguiu o impossível. Arrumou um candidato muito parecido, de fisionomia claro, com o Collor. E conseguiu o apoio do Brizola. Depois andou espalhando que ele era igual ao Collor. Chegou ao cúmulo de convencer grande parte da opinião pública de que o Ciro era o representante da "direita conservadora". É muita sacanagem! Só porque o ACM resolveu apoiar o grupo da chamada força trabalhista. Não tem nada a ver. Mas a sua trama parece que vem dando resultados.Tem gente, inclusive do PT, que pensa que isso é verdade. E faz campanha contra o Ciro. Com isso, o que acontece? Preservam a candidatura do Serra, que, tudo indica, é mais fácil de ser vencida no segundo turno. E combatem o Ciro Gomes que, também parece, é bem preparado e bem mais difícil de ser combatido num eventual segundo turno. Conclusão: indiretamente, você está ajudando o governo, mais uma vez: fazendo tudo para que, no final, tenhamos a reprise: Lula e o candidato oficial do governo. Aí não tem jeito. A grana é pesada. A turma vai jogar duro. E o Lula não vai suportar a barra. Você é um gênio! Do mal.
Quer um conselho? Vocês, diabos, não são burros. Isto já está mais do que provado. É só lembrar o caso das duas torres em Nova York. Acho que é hora de você mudar de vida. Você deveria, inclusive, submeter-se ao vestibular para o Curso de Direito, numa faculdade lá do Rio de Janeiro. Isso mesmo, igual ao padeiro analfabeto, lembra?. É fácil passar na prova. Aprendi vendo um programa de televisão muito famoso. Basta marcar, na sequência, as alternativas A, B, C e D, até o final da prova. Depois, nem precisa participar da prova de redação. Já pode ser considerado universitário.
Depois, é só apelar para seus amigos influentes - que são muitos - na Càmara e no Senado. Alguns, até, sangue do seu sangue. Seus parentes. É mamão com mel. Você assume qualquer cargo comissionado, em qualquer ministério; E não precisa comprovar experiência e nem participar de concurso público. Também não precisa comprovar escolaridade. Tudo dentro da lei. Vai ganhar um excelente salário e assentar as bases para sua candidatura. Logo estará no Senado ou na Càmara dos Deputados. Poderá, também, concorrer a qualquer cargo eletivo. E quem sabe, um dia, será um Senador Vitalício? Ministro da Fazenda e, quem sabe, Presidente da República? O importante é estar no poder.Mas, depois de refletir no que tinha dito, acabei ponderando: presidente não, menos o cargo de Presidente da República. Ninguém iria suportar tanta maldade junta!
Despedimo-nos neste ponto. Confesso que não senti muita firmeza da parte do Coisa Ruim. Cheguei a desconfiar do seu olhar triste e compenetrado. Em todo o caso, nunca é demais lembrar que seguro morreu de velho; é bom estar de olhos bem abertos. Eles andam soltos por aí e prometem tudo! Até dinheiro para a campanha que ninguém sabe de onde saiu. E do jeito que andam as eleições, verdadeiro mercado de produtos descartáveis, com propaganda enganosa, correremos sempre o risco de comprar produtos de má qualidade ou com validade vencida, sem poder trocá-los, pelo menos, durante quatro anos. Do jeito que o diabo gosta. Boas eleições e bons votos. Isto é, se até lá ainda sobrar algum candidato. Depois que o Coisa Ruim apresentar todos os seus dossiês..Do jeitinho que o diabo gosta. - Domingos Oliveira Medeiros - 05 de agosto de 2002
Domingos Oliveira Medeiros
17 de março de 2002 - com atualização