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Contos-->O Cruz -- 07/10/2002 - 02:14 (Patrick Augusto Azevedo de Abreu) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O professor Cruz não era um homem ruim. Só estava perdido em sua pretensão de ser poeta. Nada demais. Todo mundo tem esse direito: perder-se na pretensão do que acha que pode fazer. Uns alcançam o sucesso porque de fato podem e sabem fazer, e fazem bem feito; outros conseguem porque são falsários e aí está o mérito – saber enganar; já alguns passam a vida na bovina alegria de que são bons em algo (estes também têm o mérito de enganar, pero que a si próprios).

Talvez o Cruz fosse desta última classe. Digo talvez, pois sua grande obra não teve leitor e certamente não terá. Mas já o chamavam de poeta os seus colegas professores e uns alunos, mesmo tendo alguns deles nunca visto uma linha sequer escrita por ele. Muito estranho. E os que diziam ter lido falavam que “é algo assim meio parecido com... digamos... bem... só você lendo mesmo, e aí então... você vai chegar à mesma conclusão que eu!” Muito estranho.

Mas, lembrando do Cruz, até que ele tinha uma aparência de poeta. Como se poeta tivesse aparência, você olha e diz “aquele é poeta, aquele outro também, não, esse não”, um padrão estabelecido da imagem de um poeta, coisa assim senso comum, boba, besta mesmo, tão besta quanto quem toma para si esses padrões ou qualquer outro, e tão estúpido quanto quem os inventa, onde já se viu?, cara de romancista, cara de dramaturgo, cara de pintor, de desenhista, de videomaker, cara de jogador de futebol, cara de músico, só mesmo um cara de cu! Mas o Cruz incorporou o personagem. O Poeta. A Lenda. Ele era muito alto e muito magro, os cabelos longos presos num rabo de cavalo, fumava um cachimbo dizia dado de presente a ele por ninguém menos que a Hilda; andava devagar, como que contando os passos, e falava baixo, como que pesando as palavras. Daria até para angariar algum respeito. Mas adorava as árvores e era vegetariano. Levava sempre vários livretos e papéis na mão. Não tinha muita preocupação com as roupas que usava, os óculos, ensebados, viviam marcados de dedos, e ele nunca limpava. Dizia ter horror a excentricidades pedantescas; preferia a exclusividade da reclusão e sua força criadora. Como se isso não fosse uma excentricidade pedantesca, visto que ele gastou preciosos minutos de uma aula para explicar seus curiosos hábitos de produtiva introspecção. Mas era pacífico e tranqüilo; era incapaz de fazer mal a alguém.

E aqui chegamos ao mote da história. Embusteado e crente também no embotamento do julgamento dos outros, propalou para os mais íntimos, e destes assim veio ao grande público, que viria ao mundo a sua grande obra, a máxima experiência temática e estrutural dos sonetos e das figuras de todos os tempos, seus melhores feitos desde que aprendera o bê-á-bá. E meteu-se então no maneirismo de certas atitudes. Tudo pela garantia de que iria sim sofrer, como os verdadeiros poetas sofrem, pois só os piores e verdadeiros sofrimentos produzem as mais belas obras, aquelas que por muito tempo são lembradas e jamais esquecidas, poderia até passar a vida anônimo, saberia que depois de morto sua cabeça seria coberta de louros. Ah, o Cruz! Passou a andar aéreo, pensativo, a mirar os sapatos e o cachimbo, o semblante franzido, misto de preocupação e tristeza, diziam que a essa época passava as noites em claro, e que nelas já não procurava a mulher. Não respondia mais aos bilhetinhos da Anita, a moreninha, a mais calada da turma, com quem ficou tirando várias dúvidas ao final de várias aulas e por vários meses. Não queria mais saber de nada. Tudo pelo sofrimento. Tudo pela arte.

Deixou de ir às aulas. Uma semana, um mês. Certa noite, sentei num bar e pedi uma cerveja enquanto esperava o pessoal chegar. Olhei ao redor pra ver se eles já estavam lá e me deparo com uma figura não muito estranha sentada no fundo do bar, na penumbra, várias garrafas de vinho ao pé da mesa. Estava só. O Cruz! Estava muito diferente, os cabelos, soltos, cobriam o rosto, a barba crescera, poderia jurar até que engordara alguns quilos. Observei-o por longos minutos e, durante isso, não se moveu um centímetro sequer; olhava fixo para o copo na mesa. Até que, de súbito, levantou como um raio, como se tivesse esquecido algo muito importante em algum lugar, e saiu. Passou rápido pelas minhas costas, não me viu. Logo depois apareceram o Nunes, o Cortez, a Nina, a Carol, e até a Anita – ela começava a se soltar, a Anita. Perguntei se viram o Cruz saindo do bar, eles disseram que não. Zombaram de mim, mas sei que foi a última vez que vi o professor.

Até hoje ninguém sabe, mas só há uma versão da história. Contam que, em sua frenética busca por inspiração para seus versos, largara a cátedra e também não ia à casa. Deus sabe lá onde o homem gastava os dias. Nesse delírio, passara-se quase quatro meses. Uma noite o Cruz, fantasma, voltava para o lar, talvez pra pegar mais dinheiro, talvez pra tomar banho, fazer a barba, talvez para voltar à realidade. Abriu a porta da sala, a casa estava escura, subiu as escadas, devagar como sempre, e chegou ao seu quarto. A porta estava entreaberta; entrou, acendeu a luz, viu sua mulher na cama, nua, de quatro, preparando-se para ter as pregas arrebentadas por um negro, este mais espantado que excitado, um homem que nunca vira antes na vida - como se o contrário fosse fazer diferença, - e, com a mão ainda no trinco, virou-se e ia saindo do quarto, naturalmente, quando a mulher o chamou.

- Não, Cruz! Volta!
- ...
- Volta e senta aí! Quero que você veja tudo!

Cruz, calmamente, voltou-se e sentou (o rapaz – as más línguas contam que não passava dos vinte e um – não entendeu patavina, mas começava a se acalmar). Havia uma cadeira no quarto, ao lado da cama.

- Quero que sente ali na frente, anda!

Obedeceu a mulher. Acomodou-se na cadeira, tirou o sobretudo, acendeu o charuto e prendeu os cabelos no característico rabo-de-cavalo. Cruzou as pernas, limpou os óculos na camisa e perguntou:

- Não querem que apague a luz?
- Não... - respondeu a mulher.
- Quer a vaselina?
- Não, porra, já tá aqui!
- Tá bom...
- Cala a boca agora! Você não queria isso? Han? Não era isso que queria? Pois hoje você sai daqui com dois volumes desses teus sonetos malditos, caralho!

No dia seguinte, todos já sabiam. Aqueles seus colegas e aqueles alunos que juravam ter lido seus poemas nunca mais tocaram no assunto do livro ou sequer mencionavam seu nome. A Anita passou a ser a mulher de todos na turma. Descobrimos que amava o Cruz de verdade. Era uma garota muito boa. Dizem que aquela noite foi longa. Não se sabe se deu o fruto esperado: nunca mais ouvimos falar no professor. Por um tempo fiquei entrando nas livrarias e vendo os últimos lançamentos, imaginando se algum deles era a obra do Cruz. Ele sumiu; desde então, não se ouviu mais falar nem dele, nem de seus famigerados poemas.

Também fico pensando: ele até que poderia fazer relativo sucesso editorial. Não são de todo ruins seus versos. Acabei descobrindo uns por acaso nas gavetas do quarto dele. Dona Joana, a mulher, deixou que eu ficasse com alguns. Por falar nisso... Ela está me esperando agora. Tenho que ir. Talvez um dia eu resolva publicar a obra do mestre, pra tentar fazer um pouco de justiça. Pobre do Cruz! Com uma mulher dessas em casa eu não faria tanta questão de ser poeta; me contentaria em ser publicitário.

***

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