O que você faria se precisasse operar um torno industrial que nunca tivesse visto na vida? Se você fosse desvairado e tivesse pouco amor pela vida, apertaria de chofre os botões até que as engrenagens e os circuitos combinassem comandos e dessem vida ao equipamento. Isso seria, no mínimo, temerário, e poderia chegar a ser desastroso. Já que eu sei que você não é louco e quer seguir inteiro por mais tempo, posso afirmar que sua iniciativa primeira diante de tal tarefa inusitada seria questionar-se sobre as suas aptidões para operar equipamentos que exigem coordenação motora, raciocínio rápido e preditivo, concentração e visão perfeita. Caso se considerasse capaz, seu próximo passo seria tornar-se um perito na operação de tais máquinas através de cursos práticos e teóricos e de muito treino em oficinas ou laboratórios. Você faria isso porque sabe que operar qualquer equipamento mecânico, elétrico ou eletrônico sem aptidão e preparo pode matar.
Essa postura que você certamente teria no caso hipotético do torno, falta quando o equipamento em questão é um carro. Você, primeiramente, nunca se perguntou se a direção de um automóvel é uma atividade que suas capacidades permitem. A pergunta não é descabida e pode ser ampliada: quem foi que disse que dirigir um veículo que pode chegar fácil aos 160 quilômetros por hora é para qualquer ser humano? Ao contrário, se o cuidado que se tem com a operação de um torno fosse adotado quando o assunto é conduzir automóveis, uma porcentagem diminuta de pessoas seria aprovada para o trabalho. Nem todo mundo pode operar tornos. Nem todo mundo pode dirigir carros.
Ainda assim, faz parte do ritual da maioridade a matrícula numa autoescola. Conto nos dedos da mão esquerda do Lula quantas pessoas conheço que não têm carta de motorista por se considerarem inaptas para a atividade ou que, mesmo tendo o documento que as autoriza, preferem se abster para evitar o pior. O padrão, porém, é associar a autonomia e o direito de ir e vir à habilitação. Resultado: de forma indistinta, aptos e inaptos, com maior ou menor número de reprovas em exames de trânsito, cedo ou tarde, terão o direito de dirigir um carro do mesmo jeito que operariam um torno numa sala escura com as mãos amarradas, já que as autoescolas ensinam a passar no exame, mas não ensinam a dirigir.
Se ainda não deixei clara a minha tese, posso textualizá-la: 70% dos motoristas não são motoristas coisa nenhuma. Quem teria coragem de ficar ao lado de uma pessoa armada com um AK 47 sabendo que o indivíduo tem apenas a letra C na sua autorização para atirar, ou seja, é apenas um atirador amador? Se essa ideia parece absurda, pense que a maior parte dos motoristas brasileiros tem esse tipo de autorização para levar seus carros para cima e para baixo. São amadores com suas armas legalizadas. Como há muita, muita, muita gente incapaz de jogar Pac Man no Atari dirigindo SUVs pelas ruas, o trânsito é isto: um ensaio do inferno.
Acredito pouco na mudança dos critérios para entrega de habilitações. Carros precisam ser vendidos. Quanto mais pseudomotoristas, melhor. Depois é só aperfeiçoar a outra indústria, a das multas, e estamos conversados e faturando. Por aí, nada vai mudar. Como sempre, chega-se a conclusão de que a única solução para esse impasse, e para todos os outros, é a conscientização do indivíduo. Cada um de nós deve mudar o que puder na relação com os meios de transporte. Se temos dúvidas sobre nossas habilidades, compremos uma bicicleta, andemos a pé, peguemos carona. Além de ser mais seguro para todos, é mais saudável e ecologicamente correto. Soluções tão ingênuas que chegam a ser desconcertantes. Devo confessar que até eu fico constrangido com a minha ingenuidade. Todo mundo acha que dirige bem. Quem vai parar de dirigir? Que tolinho! Por que não escrevi sobre o goleiro do Flamengo? Oras! Vou até parar por aqui. A gente se vê num engarrafamento de tornos amanhã. Inté!
*Publicitário, professor e diretor do Núcleo Cassiano de Língua Portuguesa. É a favor das ciclovias, do metrô de superfície e do Smart for Two como veículo padrão para as áreas urbanas.