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Contos-->O território dos meninos -- 28/09/2002 - 09:23 (Maria Tereza Bickel Cançado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Eu poderia tentar contar os fatos que fazem esta história de tal maneira que, omitindo umas verdades e inventando outras, usando palavras de pouco uso, com alguma erudição, conseguisse convencer algumas pessoas importantes ou a todas elas. Longe de mim, entretanto, o desejo de convencer qualquer pessoa, importante ou não. Muito longe de mim. Embora eu seja tido vulgarmente como uma delas, e às vezes até me comporte como tal, é nos quinze minutos diários de engarrafamento que enfrento todas as manhãs, no caminho até o meu gabinete, que tomo a medida exata do que sou. Prego os olhos no teto do carro à minha frente e penso. Durante quinze minutos. É pouco, vocês podem dizer, mas há gente por aí que pensa bem menos, mesmo porque nem todo mundo tem um engarrafamento diário. E é para que eu nunca me esqueça, para que nenhum de vocês jamais se esqueça, que me proponho a contar aqui em que circunstâncias conheci o Território dos Meninos e porque, sobretudo porque, nos meus quinze minutos diários de engarrafamento, eu penso neles , com a solenidade e constancia de uma missa de domingo.
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Eu sabia fazer discursos muito bem, tinha um sorriso largo, meus dentes foram muito bem capeados para que eu pudesse rir a vontade, tanto que a minha carreira política estava garantida e ocupava já um belo posto no meu país quando, por um descuido meu e dos meus assessores diretos e sóbrios, deixei escapar ideais pouco condizentes com a minha alta posição. Dei uma entrevista maldita (foi como a chamaram depois meus dirigentes) a um jornal sensacionalista que nunca simpatizara muito comigo ou com o meu sorriso. Talvez porque eu tenha me negado a rir para um dos seus repórteres que me era sobremaneira antipático. Não devia ter-me deixado levar por emoções desta espécie, foi o que aprendi depois. Mas já era tarde. Minha carreira estava irremediavelmente perdida.
Na manhã do dia seis de outubro de mil novecentos e qualquer coisa (sei exatamente o ano, entretanto não quero aqui deixar nenhuma pista da minha identidade), acordei sem nenhuma desconfiança, nenhum sinal dos céus de que esta não seria uma manhã como as outras. O jornal chegou às minhas mãos mais cedo do que o meu café e, pelo jeito como me foi atirado, pelos olhos de quem o trouxera, eu já sabia que o mundo, ou caíra sobre a minha cabeça ou estava por cair. Por uma espécie de intuição ou pela simples e lógica observação, presumi que alguma coisa não estava bem. A camareira nem mesmo me dissera o cotidiano “bom dia”. E o meu café? Onde estava o meu café? Meio trêmulo peguei o jornal. A manchete, diante dos meus olhos estatelados, invadiu o ar e se transformou num suor frio, quase a ponto de me congelar o sangue nas veias. “MINISTRO AMALDIÇOA INVENÇÕES MODERNAS” Talvez por não ter tomado o meu desjejum - a minha visão sempre era um pouco turva antes de comer qualquer coisa - não conseguia ler o texto abaixo. Mas a foto ilustrando meia página do jornal me dava a exata medida da tragédia que ameaçava não só a minha manhã. Me entusiasmei um pouco com a aparência radiante, impecável, magnífica mesmo, daquele sujeito com o cabelo partido do lado, olhos de águia e sorriso meigo. Era eu! Sem dúvida nenhuma era de mim que falavam! Meu coração disparou.
- Pedro! - Gritei apavorado. E Pedro não vinha! Já perdera o respeito, ele, que só lia manchetes.
- Pedro Garrafa! - Gritei mais forte, impostando a voz em desespero. Acho que Pedro só atendeu pelo “Garrafa” que tanto nos divertiu numa noite de confidências, quando tudo o que eu poderia inventar era um apelido tão idiota quanto a cara de pedro que eu via, disforme, através da garrafa de wisqui. Mas vinha com muita má vontade, arrastando os pés, as sobrancelhas levantadas como quando olhava para o jardineiro. Estou perdido, pensei.
- Chamou? - Como se a minha voz não tivesse atingido todo o quarteirão.
- O que é isso, Pedro?
- O jornal.
- Não se faça de bobo. Você leu?
- Li. “Você” não?
“Você”?! Meu Deus! Eu estou perdido.
- Leia você. Eu não consigo.
Pedro arrancou o jornal das minhas penas com absoluto desprezo, encheu os pulmões de ar, fez um grande “o” com a boca, num suspense sádico, tripudiando sobre o meu desespero, sem nenhuma piedade. Leu o primeiro parágrafo num tom ambíguo de horror e desprezo. Fiz sinal para que baixasse a voz, vermelho de vergonha. Ele fez um muxoxo:
- Porque? O país inteiro já leu. “Você “não está ouvindo as risadas?
Não. Eu não estava ouvindo. Apurei melhor os ouvidos. De muito longe me pareceu que uma platéia inteira estava gargalhando.
- Todo mundo está rindo? - Balbuciei.
-Nem todo mundo. Esta risada aí é a da Tereza, na cozinha.
- Ela também já leu?
-Ela não sabe ler. Não poderia rir dessas... - apontou enojado para o jornal - está rindo das gracinhas do filho dela. Riria mais se soubesse ler.
Eu devia estar da cor de um tomate, pelo calor do meu rosto. Impostei a voz para exigir respeito, ou o que sobrara dele:
- Leia.
Alguns segundos a mais de suspense. Pedro respirou fundo e leu:
- ‘O Ministro Castanheira, afirmou ontem em entrevista a um de nossos repórteres, que a crise do petróleo não é tão séria quanto o mundo quer fazer crer. A adiantou que, se um idiota não tivesse inventado o automóvel, todo mundo poderia se mover tranqüilamente.
De bicicleta, patins ou patinetes, o que diminuiria consideravelmente a importância do ouro negro, a poluição, os engarrafamentos e as neuroses de trânsito. Não haveria prestações de carros a pagar e, todo o dinheiro poupado não só da compra como também da gasolina, juros, oficinas, e psiquiatras, poderia ser melhor empregado em enormes áreas de lazer, escolas, sorvetes e bolinhas de gude. Disse mais: que o homem seria bem mais feliz andando de patins do que preso no interior de automóveis. Mais ainda e estarrecedor: que nas próximas eleições seu slogan será: “pedalar é saudável. Troque seu carro por uma bicicleta.”.
-Mas não foi isso exatamente o que disse! - Gritei atarantado.
- Mas foi “mais ou menos” isso, não foi?
Eu não podia ficar mais vermelho do que já estava.
-Bem, não, isto é, não foi isso!
-” Você” não disse que a crise do petróleo não era tão séria quanto o mundo queria fazer crer?
-Não! Eu disse que a crise do petróleo não seria tão séria se o mundo pudesse crer numa solução. - Repetindo, a frase me pareceu meio pueril, talvez até um pouco sem sentido, mas era do meu estilo dizer coisas sem sentido, porém sonantes.
-E a solução seria todo mundo sair patinando por aí?
-Não foi bem assim. O repórter lamentou uma dor nas costas e eu o aconselhei a andar de bicicletas, Não tinha nada a ver com a crise! Mesmo porque achei que estava em off.
-E o idiota que inventou o automóvel?
- Não disse idiota! Disse com- pa- tri- o- ta!
Pedro ficou nas pontas dos pés, com o dedo esticado para o meu nariz:
-Veja como fala comigo! - Disse num tom que não deixava dúvidas de que ao primeiro deslize no meu linguajar, me partiria o cabelo ao meio. Estupefato, perguntei:
- O que foi que eu fiz?
-Me chamou de idiota.
-Não chamei você de idiota. Eu disse que não disse idiota. Disse com-pa-tri-o-ta!
-Uê! Não foi um inglês?...
-Não sei. Pouco se me dá a nacionalidade do idiota.... digo, compatriota, cidadão do mundo! É isso!
- Troque seu carro por uma bicicleta! Disse isto também, não disse?
-Não! Não disse. O que eu disse nem mesmo rimava com isto!
Inútil. Nem Pedro, nem meus superiores se convenceram da minha inocência, ainda que eu usasse toda a retórica que havia conseguido ao longo da minha vida política. Quase me convenci, a mim próprio, de que o que publicaram naquela malfadada entrevista, não era nada mais que a verdade. Fui considerado elemento altamente nocivo ao governo e ao povo, sobretudo depois das minhas tentativas de justificação, donde saíram coisas bem piores do que as da entrevista anterior. Houve até quem afirmasse que eu havia bloqueado imensos projetos industriais com o abominável objetivo de poupar algumas árvores. E a grande e última asneira; de que em cada rua deveria ser conservado um lote vago onde os meninos pudessem construir campos de futebol. Para não morrer de vergonha, saí do país, sem pompa ou circunstância, com o rabo entre as pernas, mas com a minha gravata de seda e o meu terno de casimira inglesa, os únicos sinais do respeito que me restara. Foi então que fui parar no Território dos Meninos. Não por escolha. Fora este o único país que aceitara meu pedido de asilo político. Graças a Deus.
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A princípio achei que havia desembarcado no lugar errado. Não havia nenhuma comitiva a minha espera, muito menos aquele sujeito com cara de imbecil, segurando a placa com o meu nome, próprio dos aeroportos internacionais. Não havia sequer outras pessoas desembarcando. Caí no solo. Literalmente, porque na verdade, arrancaram a escada do avião sob os meus pés - o que me fez beijar o chão que me recebia. Aturdido, acabrunhado, procurei uma viva alma que me desse a certeza de que eu não havia desembarcado em outro planeta, por descuido.
-Ôi.
Pelo menos há pivetes aqui, consolei-me. Não estava acostumado a responder cumprimento de meninos maltrapilhos, mesmo porque, no meu país, quando um garoto descalço se aproximava, era para pedir ou assaltar. Mas se era este o único sinal de vida neste país, tinha que me agarrar a ele.
-Ôi - respondi - onde estão todos?
Ele me olhou sem responder. Estendeu-me educadamente a mão.
- Sou o Ministro das Relações Exteriores. Vou acompanhá-lo.
Tinha olhos azuis, cabelos vermelhos, sardas no nariz, sete ou oito anos, não mais e um ar que me era levemente familiar. Apertei a mãozinha estendida, eu que me adaptava rapidamente a qualquer situação, numa atitude gentil, tentando parecer conciliado com a realidade que me esperava.
- Desculpe-me, ainda estou meio aturdido com a viagem. Podemos ir? - vasculhei a área com os olhos - onde está o carro? Pode carregar a minha mala?
Ele mediu-me com os olhos.
-Você é bem maior e mais forte do que eu. Pode carregar sua própria mala. Além do mais ela tem rodinhas...
Constrangido, agarrei a alça da mala.”As coisas por aqui são diferentes, pensei, tenho que me cuidar para não dar mais fiasco”. Ele não riu e nem falou muito enquanto me conduzia ao consulado. A pé, diga-se de passagem, e rapidamente vocês vão entender porque. Eu bufava e arrastava a maldita mala pelo caminho ensolarado, enquanto ele assoviava uma melodia infantil. Apesar do sol havia uma aragem fresca e cheirosa. Funguei tentando identificar o perfume. Ele ia e vinha, sutil e fugaz, como o voejar de uma saia rodada de moça saída do banho. Meus pés ardiam dentro dos sapatos de cromo alemão. O ar era tão puro que meus pulmões doíam. Até onde meus olhos alcançavam não vi sinais de civilização. O silencio, magnífico, ara salpicado de trinar de pássaros, e o som dos ventos nas árvores era um cochicho de meninas em festa. O ministro das Relações exteriores andava um pouco mais à frente. Volta e meia passava um rabo de olho para trás, conferindo a distância que nos separava. Numa dessas vezes parou, os olhinhos azuis cheios de pena, e sugeriu:
- Porque não tira o paletó? - Eu disse não com a cabeça, limpei o suor da testa, e num ato quase heróico, estufei o peito e tratei de me mostrar altaneiro, como convinha a um ministro da minha estirpe.
-Vamos! - Ele deu de ombros, diante da minha resistência e seguiu em frente. Comecei a ouvir, a princípio baixinho, um som abafado, constante, como um murmúrio.
- Falta muito? - Perguntei agoniado. Sem voltar-se, ele respondeu secamente:
-Não. É só atravessar o rio...
Ai meu Deus! Um rio para atravessar! Morro de medo de água, pavor mesmo, e nem mesmo sei nadar. E se o barco virar?
- Tem salva-vidas no barco? - Na tentativa de parecer despreocupado, minha voz saiu meio esganiçada. O Ministro olhou-me espantado:
-Que barco?
Meu suor gelou.
-Nós vamos atravessar a nado?! -Aqui a minha voz já era totalmente esganiçada. Pela primeira vez ele riu, um sorriso de poucos dentes, e eu me certifiquei de que tinha menos de oito anos.
-É só um riacho. A água não passa das suas canelas.
Aliviado, morto de vergonha, ainda tentei contemporizar:
-Mesmo assim. Pode ser perigoso. Você é muito pequeno...
Mas nós já estávamos na margem. O rio cantava. As águas eram tão claras que dava para ver cardumes de peixes vermelhos no fundo, junto com as pitangas. Havia uma pitangueira lavando as pontas dos galhos nas águas e pitangas vermelhas como os peixes, se confundindo na areia.
-Tira os sapatos. - Ordenou o Ministro, sem me olhar. - e arregace as calças. -Obedeci sem pestanejar. Estava me acostumando, pensei. De repente aquela par de sapatos não tinha lugar. Entrei na água, erguendo os braços, tentando evitar que molhasse os meus dois pés de cromo alemão.
- Deixe aí na margem.
- Os meus sapatos de cromo alemão?!
- Os peixes vão gostar. Deve servir para fazer ninho...
-Mas são de cromo alemão!
- Faz mal não. Eles não se importam.
Indignado, ainda tentei salvar meus sapatos. Só me dei por vencido depois de escorregar numa pedra e me estatelar entre os peixes, o que deixou o Ministro roxo de tanto rir, e o meu paletó de casimira inglesa encharcado. Esbravejei pela primeira vez no dia, o que, convenhamos, chegava a ser uma prova cabal da minha paciência sem limites. Perdi a compostura. O pequeno Ministro me olhava com os olhinhos arregalados e a boca aberta como se estivesse vendo um monstro. Congelado de pavor, com água até a cintura, chorava silenciosamente, como se temesse que qualquer ruído seu pudesse exacerbar o instinto assassino do monstro, que berrava palavrões insanos e gesticulava os braços dentro d’água, como um helicóptero desgovernado. Desmontei. Não sabia o que fazer das suas lágrimas. Subitamente calmo, arrastei-me até ele enquanto meus sapatos de cromo alemão rolavam rio abaixo. Ele recuou um pouco com um breve tremor.
-Desculpe-me, Sr. Ministro, por favor, desculpe-me. Tem-me acontecido tantas coisas nos últimos tempos... perdi a calma. Olhe para mim: já não estou nervoso. - Tentei sorrir - Sou só um homem meio perdido. Tenha paciência comigo.
Ele tinha parado de chorar e me olhava com as sobrancelhas cerradas.
-Eu não devia ter insistido para o Sr. deixar seus sapatos para os peixes.
-Sapatos? Que sapatos? Olha só como eles descem felizes o rio. Se os peixes não se importarem de ser cromo, podem dar bons esconderijos. Quem precisa de sapatos? - Eu o pegara nos braços e tentava desfazer a imagem monstruosa de minutos antes. Girava-o no ar, como fazia com meu sobrinho Lucas, fazendo palhaçadas, até vê-lo rir gostosamente. Depois, sentados a margem do rio, com os pés dentro d’água, num silêncio constrangido, eu olhava meu paletó de casimira inglesa pendurada num galho de ingazeiro.
-Você está triste por causa dos seus sapatos e agora, até o seu paletó... - disse ele penalizado. - Vocês são mesmo muito estranhos. Aqui já houve um caso muito triste com estas questões de adultos.
- Mas eu não estou triste. Estou gostando muito de ter meus pés em liberdade. - Para provar o que dissera, movia os pés dentro d’água sem muita intimidade. - Quanto ao paletó, vou deixá-lo aí até secar. Faz muito calor aqui. - O Ministro não parecia convencido, mas olhava encantado para a minha gravata.
- Bonita... - disse.
- E é inglesa. - Respondi, orgulhoso. - Cheio de súbita ternura, arranquei a gravata do pescoço e solenemente lhe estendi:
- Tome. Fique com ela.
Os olhinhos dele faiscaram
-Para mim? Puxa! Obrigado!
-De nada.
-Para que serve?
-Para que serve? - Ora, eu nunca tinha pensado nisto. Não tinha a menor idéia.
-Não tenho a menor idéia. - O ministro olhava a minha gravata de seda com curiosidade e eu via, com um pouco de tristeza, as águas entrarem nos bolsos do meu paletó de casimira inglesa. A mala afundando na areia. O sol na minha cabeça. Meus pés gelados na água. E aquele ministro menino do meu lado, encantado com uma gravata que não servia para nada. Estou sonhando, é isto. Vou acordar deste pesadelo, calçar os meus sapatos, vestir meu paletó, pegar um trânsito infernal até o ministério, e fazer o que faço há milhões de anos.
-Agora falta pouco. Está cansado? - Perguntou ele, erguendo-se e me estendendo a mão.
-Nem um pouco. - O incidente dos sapatos parece ter-nos aproximado. Ele parecia mais gentil e já me olhava nos olhos, francamente. Apontou para o horizonte.
-Olha lá o prédio do consulado. -Um edifício de mais ou menos 20 andares, soberano, imponente, destoava inteiramente das pequeninas e coloridas casas que começavam a despontar entre as árvores. Quase corri em direção ao prédio.
- Moram muitos adultos ali? - perguntei, cheio de esperanças.
- Uns dois ou três.
- Mas porque um prédio de tantos andares?- Ele deu de ombros e me olhou como se esperasse ele a resposta.
-E eu sei? Vá se entender os adultos...- e me devolveu a pergunta:
- Porque é que vocês gostam de morar assim?
- Porque é mais prático, mais econômico. O perigo de assaltos é bem menor. As pessoas se juntam mais, têm menos solidão... - Ele arregalou os olhos, depois fechou um deles bem apertado, não sei se pelo sol ou por desconfiar das minhas palavras.
- Mas eu tenho notícias de pessoas que moram em prédios de 20 andares, ali juntinhas, que não sabem nem o nome umas das outras. E aqui mesmo já houve um caso muito triste...
Era a segunda vez que me falava neste caso muito triste. Calou-se. O elevador tinha chegado. Beijou-me o rosto e despediu-se.
-20º andar. 1ª porta à direita. Vocês vão se entender.
Pareceu-me uma ofensa, mas a porta do elevador fechou, deixando o Ministro das relações exteriores do lado de fora, e eu não pude ter certeza.
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Sentado comodamente numa poltrona do tempo do império austríaco, o cônsul fumava um charuto mal cheiroso. Tinha um ar bastante respeitável e gordo, de tal maneira que me sentia pouco à vontade com os meus pés descalços, minhas calças úmidas arregaçadas até as canelas. Minha mala encharcada eu tinha deixado no hall de entrada.
Me olhava com um vago ar de desprezo. Ele lia jornais, tinha certeza. A consulesa tinha os olhos pregados nas cinzas do charuto.
- Olha o tapete. - Murmurava de vez em quando.
O cônsul bateu nervosamente as cinzas num vaso de samambaias. A consulesa suspirou profundamente e empalideceu. Todo o tempo que passei ali a amorosa mulher não tirava os olhos do marido. Havia uma espécie de angústia naquele olhar que percorria todos os gestos do Cônsul, numa manifestação quase maternal de atenção e desvelo. Fiquei emocionado. O cônsul andava em círculos, muito preocupado, uma das mãos para trás, a outra segurando cuidadosamente o charuto que invadia o ar com uma fumaça espessa e nauseante. Não falou muito e delicadamente evitou tocar no assunto que me levara àquele lugar. Deu-me o número do meu apartamento e insistiu em me alertar contra o perigo de deixar a portaria aberta. Consolou-me de certa forma, dizendo que eu teria três aparelhos de televisão no meu quarto.
- Não há muito o que fazer por aqui. É bom ter mais de uma televisão. Vai que uma estraga...
Um grito de pavor me fez saltar da cadeira. Apavorado, vi a consulesa cair devagarinho, muito pálida, uma das mãos no coração. O cônsul pegou o jornal com a minha foto, abanando-a delicadamente. Diante do meu espanto, ele tentava justificar:
- Não se preocupe. Isto sempre acontece. A culpa é minha. Sou muito distraído, fumo mecanicamente e jogo as cinzas por todo lado. Não tenho jeito mesmo. A culpa é minha.
A consulesa abriu os olhos.
-Está queimando alguma coisa...- murmurou, fraquinha.
- O tapete! - gritei. A ponta do charuto acesa fizera um buraco no tapete, como um olho escuro e acusador. A consulesa teve um outro desmaio.
“- Deve ser Persa,” pensei .Havia dezenas de cinzeiros espalhados pela sala. Depois disso, acabrunhado, jantei com os meus anfitriões. Uma tensão constante me fazia perder o apetite, e quando , depois do café, o Cônsul acendeu um charuto novo, na primeira baforada, me despedi atabalhoadamente e saí quase correndo.
Não liguei a televisão. Fiquei parte da noite da janela da minha nova morada, vislumbrando, do alto, o Território dos Meninos. A Lua começava a encher, e espalhava uma luz pálida sobre árvores, como leite derramado. O silêncio perturbava os meus sentidos e achei que podia ouvir o sangue correndo nas minhas veias. Meus ouvidos zumbiam, desacostumados. O ar tinha aquele perfume indefinido, agora mais intenso. As risadas dos meninos brincando nas ruas, tinham rareado. Minhas pálpebras pesavam e, antes da meia noite eu já dormia profundamente, como há muitas noites não conseguia. E nem sequer sonhei.
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O sol entrou pela fresta da janela, meio fraquinho, de maneira que soube ser quase madrugada ainda. Fazia um pouco de frio, embora fosse verão. Mais uns dias e eu saberia que, aqui, o ar é sempre fresco nas madrugadas e no anoitecer. Eu mesmo preparei o meu desjejum, se é que posso chamar de desjejum, um pedaço de pão, café e uma goiaba quase verde. O Cônsul havia me avisado que, se quisesse ter refeições decentes, teria que andar um quilômetro até o restaurante à saída do território. De resto, o que eu teria seriam guisados à moda dos meninos, ou que eu mesmo preparasse a minha comida, o que, confesso, me tirava todo o apetite. Estranhamente entretanto, me sentia muito bem disposto. Havia estendido as minhas roupas molhadas e amarfanhadas, na noite anterior, num varal improvisado no banheiro, com as gravatas que não serviam para nada, de sorte que, pudera escolher uma daquelas roupas com as quais jogava tênis nos sábados. Nos pés, uma sandália franciscana muito elegante que eu usava raramente. Só quando íamos ao sitio do Ministro do Interior. Desci cheio de curiosidade. Se eu tinha que passar algum tempo neste estranho território, estava disposto a conhecê-lo bem.
Tive que andar um pouco até encontrá-los. Parece que os meninos mantinham a distância do prédio. Nada pessoal, acredito, era um consenso geral, sem palavras, aquela coisa de “cada macaco no seu galho”. Encontrei-os em bandos, como pardais, barulhentos, corados e descalços. Eu tinha a impressão de já conhecer alguns deles, não sei porque. Pareciam-me familiares, como uma menina de tranças que me olhava sorrindo, e quando virei as costas, me atirou uma mamona na cabeça. Voltei-me irritado, mas quando vi a carinha um pouco triste, desisti da retaliação. Procurei agoniado o Ministro de Exterior. Nele eu podia confiar. Saí perguntando, a todo menino que encontrava, onde estava o Ministro de olhos verdes e cabelos vermelhos.Aquela menina risonha atrás de mim, com um cacho de mamonas nas mãos! Ela ia acabar comigo, pensei. Era muito pequena. Talvez não tivesse mais do que cinco anos, mas tinha um olhar determinado. Eu me escondia atrás dos bandos de meninos, ela me cercava por todos os lados, e vez ou outra uma mamona raspava a minha cabeça.
- É covardia! - Gritei. - Estou desarmado!- O som da minha voz me trouxe de volta. O que eu estava fazendo? Uma menina de cinco anos me ameaçava com um cacho de mamonas, e eu...eu... enlouqueci! É isto, pensei, devo ter ficado doido.
- Quer parar? - Gritei com a minha voz possante.
A menina me olhou com o mesmo olhar do Ministro de Exterior, no incidente do rio. Fez beicinho, como se fosse chorar. Desta vez não amoleci.
-Não tem compostura? Não pode sair por aí atacando as pessoas com um cacho de mamonas.
-Porque não?
- Porque não, ora essa! Não são modos de uma menina.
- O que são modos de uma menina?
Eu não sabia. Havia me esquecido ou nunca soubera. Ouvira isto muitas vezes e só estava repetindo. Eu conhecia aquela menina, tinha quase certeza.
- De onde conheço você?
- O que é compostura? - Olhei em volta buscando socorro. Vi com alívio, os cabelos vermelhos do ministro de Exterior, como uma labareda ao vento.
- Graças a Deus! - Sorri o meu sorriso largo - Esta pirralha está me atacando com mamonas.
- É minha irmã. - Disse ele, meio azedo. Devo ter ficado vermelho.
- Desculpe-me. Mas ela estava me atacando mesmo!
-É o jeito dela se aproximar. Não faz por mal. - E virando-se para a menina - Este é o Ministro... aquele...- e para mim - como é mesmo o seu nome?
- Kako. - Não sei porque me lembrara do apelido que eu tinha quando menino e o dissera com orgulho.
- Ôi, Kako... respondeu ela com um sorriso maroto. - Meu nome é Lucia.
- Ôi, Lúcia. Tenho certeza de que te conheço...
- Eu só tenho cinco anos e ainda não me esqueci de nada. Nunca te vi mais gordo, nem no mercado vendendo quiabos.
-Que diabos ela está dizendo? - Perguntei para o ministro.
- Eu não disse diabos, eu disse “quiabos”. - Frisou ela, com um olhar estranho.
- “Ai meu Deus! Outra vez não.”.
- Sabe que estamos em guerra?
Quase caí das minhas sandálias. Olhei aturdido para menina que me dizia, com um grande sorriso, um absurdo daquele tamanho. O ministro do Exterior me olhava em silêncio.
- Quem está em guerra? Meninos não fazem guerra.
Ela ergueu as mãozinhas cheias de mamonas.
- Nunca fez guerra de mamonas?
-Não é de guerra de mamonas que ela está falando. - Disse o Ministro de cabelos vermelhos. Ela está querendo te desorientar.
- E consegue. Meninos não fazem guerra. - repeti e ele riu.
- Os meninos também têm as suas diferenças.
Apurei os ouvidos. Onde os alarmantes sinais da guerra? Havia um absoluto rigor na calma desta manhã ensolarada. Como numa eternidade estonteante, o tempo parecia ter parado, pesado e morno, de tanta paz.
- Cadê a guerra? - Perguntei meio aparvalhado.
- No campo de batalha. Onde mais poderia estar?
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Pela chaminé das casas coloridas saia uma fumaça azulada, fininha. Havia cheiro de café com leite no ar. Meninos de bicicleta carregavam sacolas cheias de pães e frutas, com os cabelos arrepiados pelo vento. Nem um tiro de canhão. Nenhuma pessoa correndo, em busca de abrigo. No céu, bandos de andorinhas, no lugar de aviões. No lugar de mísseis, mamonas. Recebi um tiro certeiro na testa. Meu coração disparou. Passei a mão rapidamente no lugar e olhei: não tinha sangue. A risada da menina quicava no ar, como uma bola de ping- pong no cimento. Ela se escondeu atrás de uma enorme secoia. Rindo amarelo, eu disse para o Ministro do Exterior:
-Decididamente ela não foi com a minha cara.
-Ela foi com a sua cara.
Foi então que me lembrei de perguntar pelo exército e pelas armas.
- Exército? Armas? Para que?
- Bem, no meu país quando a gente declara guerra por qualquer motivo, convoca-se o exército - são homens treinados para matar-e usam-se bombas, mísseis, aviões, etc.
Pala cara do pequeno ministro, eu contava um filme de horror.
- E o presidente? E os ministros? - perguntou assombrado.
-Ora, eles ficam em casa esperando notícias.
- Então quem luta é o povo?
- De certa forma sim. Nós somos uma democracia.
- Então, quem declara a guerra é o povo?
- De certa forma também. O governo declara a guerra pelo povo. Nós somos uma democracia.
-O povo gosta de guerra?
-Claro que não. Há fome, mortos e feridos. Até mutilados.
-Mas então porque ele declara a guerra?
- Mas não é ele quem declara a guerra. É o governo.
- Mas você disse...
Eu estava ficando confuso. Não entendia mais nada de guerra ou democracia. O ministro tinha os olhos arregalados e estava branco como um papel, de tão assustado.
- Mas você disse... - ele estavas visivelmente irritado e quase gritava.
- como é que vocês podem ser tão burros?
- Nós não somos burros!- Bradei furioso- nós somos adultos! Nós sabemos leis de física, nós curamos doenças, nós... nós inventamos muitas coisas úteis, como por exemplo...por exemplo...nós já fomos à Lua!
-Ah, é? Você já foi à casa do seu vizinho? Você sabe quantos são os desertos da Lua, mas aposto todas as minhas bolinhas de gude como não conhece um só dos desertos do seu vizinho. Nem o banheiro dele você sabe como é. Vocês aprendem leis de física para destruir. Criam suas próprias doenças. É claro que têm que aprender a curá-las. primeiro vocês destroem e depois procuram um jeito de salvar o que destruíram. Sabe porque vocês inventam? Porque não sabem descobrir. Burros! Vocês são burros!
Eu olhava em volta, atormentado, com medo de que alguém nos ouvisse. Mas se ouviam, não faziam fé. O ministro estava quase roxo de raiva. Um menino de cabelo arrepiado parou na nossa frente, deu um saco de pipocas para o Ministro e sorriu para mim.
- Não ligue. Ele não tem muita paciência com os adultos.
Indignado virei o rosto para o outro lado. O ministro comia pipocas nervosamente e me passava uns rabos de olhos de vez em quando. Sem me olhar estendeu o saco de pipocas em minha direção. Agradeci secamente. Continuou com a mão estendida e eu tirei a primeira pipoca, a segunda, a terceira e acho que acabei comendo meio saco.
- Estão muito boas...- arrisquei - Ele riu. A paz estava restabelecida entre o ministro e eu, graças à Deus.
Estávamos à sombra de uma aroeira, num silencio meio constrangido, destes que acometem as pessoas depois que fazem as pazes. Com muito cuidado, perguntei:
-Posso me sentar na grama?
- Para que serve a grama se você não pode se sentar nela? - Perguntou-me fazendo esforço para não parecer hostil. Eu estava ficando mestre em risos amarelos. No meu país, quanto mais bonita a grama, menos possível é pisar nela, pensei. Mas não disse nada. Desta minha observação poderia advir uma nova e calorosa discussão. Lucia separava as mamonas do cacho, em silêncio, a alguns metros de distância. Olhava os gestos lentos, a cabeça tombada para a frente, o halo dourado dos cabelos trançados, e tive certeza de que já vira esta menina antes. Entretanto eu estava bastante curioso a respeito da guerra e não queria deixar passar a oportunidade de saber mais detalhes. Mas foi ele, o ministro do Exterior quem perguntou:
- O seu país está em guerra?
-Não. Felizmente não. Aliás, o nosso povo é bastante pacífico.
-O seu governo, você quer dizer, já que é ele quem declara a guerra.
-Não vamos voltar a este assunto. -pedi, quase acanhadamente. Ele fez uma carinha triste e murmurou:
- Este seu país é realmente muito estranho. Concordei em silêncio, com ar sério. O garoto que nos tinha oferecido pipocas, voltava correndo em nossa direção. Parou, tentando recuperar o fôlego, antes de dizer, quase dramático:
- Está acabando. Não dura mais de dois lances. Estamos perdendo.
Olhei para o Ministro do Exterior. Estava triste. pensei ter visto seu queixo tremer.
- O que está acabando?
- A guerra. - E apontando para o menino de cabelos arrepiados, apresentou-me.
- Este é o Ministro da Justiça.
O Ministro da Justiça olhou-me da cabeça aos pés.
- pensei que fosse mais alto, pelas fotografias.
- Era truque.
-Porque?!
- No país dele as pessoas mais altas são mais respeitadas.
O menino riu levemente.
- Que país mais esquisito!...
Aquele pirralho zombava do meu país e eu não fazia nada. Creio até que fiz aquela cara séria de quem concorda em silêncio. A notícia da guerra e do fim dela me chegaram quase ao mesmo tempo, e não me parecia adequado perturbar aquelas crianças, já sucumbidas, com defesas patrióticas.
- Se eu puder ajudar... falei quase sem sentir. - Quando começou?
- Hoje de madrugada.
Uma guerra que durasse algumas horas não poderia ter resultados tão catastróficos. Nós tivemos a Guerra dos Cem Anos, a Segunda Guerra Mundial, a guerra do Vietnã... eu não me deixaria abater por tão pouco. Para consolá-los, comecei a dissertar sobre as guerras que eu sabia, das que eu tinha ouvido falar na escola, das que eu vira na televisão, da segunda Guerra Mundial. Aí eu já estava muito envergonhado, mas não tive como parar. Um bando de meninos, surgidos de todos os lados, se acomodara ao nosso lado.
- Então, um homem chamado Hitler, achou que poderia dominar o mundo se acabasse com os judeus.
- Acabasse como? - perguntou uma vozinha saída do meio da multidão.
- Acabasse, ora essa, matasse...- murmurei.
Eles riram alto.
- Você está inventando isto.
- Não estou. Hitler matou seis milhões de judeus!
Houve um silêncio acabrunhado.
-Sozinho?Você quer dizer que um homem matou seis milhões de judeus, sozinho?!Ninguém mata seis milhões de pessoas sozinho.
Eu já me fizera esta pergunta antes, havia muito tempo.
- Claro que não. Ele dava as ordens. Todos passaram a perseguir os Judeus.
- Todos quem? Você também?
- Não. - Respondi aliviado - eu nem tinha nascido nesta época. Foram os Nazistas.
- E ninguém fez nada? Deixaram um louco matar seis milhões de judeus e não fizeram nada? Ninguém viu?
Como é que eu ia dizer a estes meninos que uma nação inteira passava a odiar seu vizinho só porque ele tinha, por um acaso, nascido judeu? De que maneira explicar que um homem era premiado por matar seu irmão, como nas temporadas de caça, quando o caçador recebia um troféu por ter assassinado mais raposas que os outros? Que quanto mais judeus matasse, mais honorável se tornaria?
-Foram seis anos de guerra -desconversei. -seis terríveis anos. A Alemanha ficou destruída. Meio mundo foi destruído.
Havia um murmúrio abafado entre os meninos. Eles não estavam acreditando em mim, e eu não os culpava. Era preciso ser adulto para entender esses horrores. Lucia vomitava. O Ministro do Exterior segurava a sua cabeça entre as mãos.
- Ela vomita sempre que houve coisas desse tipo. - Me disse com um leve tom de censura. Eu conhecera alguém que vomitava sempre que via filmes de terror, mas não conseguia me lembrar. Sabia ter sido há muito tempo.
- E depois? - Um menino muito magro, à minha direita, perguntou com um leve temor do que ouviria como resposta.
- Bem, as tropas aliadas invadiram a Alemanha e acabaram com a guerra. -Bem que eu gostaria de terminar a minha terrível dissertação com um “e nunca mais a humanidade cometeu a tolice de fazer guerras, e o mundo viveu em paz para sempre”. Eu era político, mas não era tão mentiroso assim e silenciei, aumentando o desconforto que se instalou entre os meninos e eu. Lúcia estava pálida e me olhava com horror.
-Eu devia ter te jogado um cacho de mamonas!... - Disse com os olhos cheios de lágrimas. Tentei me justificar:
- Mas eu não tenho nada com isso! Só contei o que aconteceu.
-Você tem “tudo”com o que aconteceu. E eu também. - e começou a chorar ruidosamente como se o mundo tivesse sido de repente invadido por monstros.
- Eu preferia ser uma lagarta, uma formiga, um elefante, qualquer coisa. Mas eu vou crescer e vou ser como você!- Eu nunca me sentira tão ofendido em minha vida e não fui capaz de me defender. E o que é pior, eu começava a entender o que ela estava sentindo.
- Eu também, muitas vezes, preferia ser uma lagartixa ou qualquer outro bicho. Mas eu não sou. - Tentava me aproximar dela - Eu sou um homem e não quero me envergonhar disto.
-Vou vomitar em cima do seu pé! - Disse ela, entre os dentes, mas eu não me intimidei.
-Eu não vou me envergonhar da minha condição humana. E nem você.
Eu não sabia muito bem porque tinha dito isto, mas haveria de me lembrar. Refeitos - os meninos se refazem rapidamente - eles se dirigiam para o campo de batalha, onde uma guerra que começara de madrugada estava prestes a acabar. Eu os seguia, de mãos dadas com a menina que, minutos antes, ameaçava vomitar no meu pé.
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Atravessamos o rio e eu vi, sem nenhuma tristeza, o meu paletó de casimira inglesa ainda pendurado no galho do ingazeiro. Comemos guisado de abóbora e geléia de amoras de sobremesa, porque já fazia hora do almoço e, nem mesmo em guerra, meu apetite esmorecia. Nem o dos meninos, pelo que pude ver. Eu me incumbi de lavar os pratos, porque até então, nunca soubera sequer, acender um fogo. Muito menos num fogão de lenha. Era a cozinha do Ministério, numa casa grande, com muitas janelas escancaradas, Se você foi menino um dia, e a maioria das pessoas foi, há de saber do que estou falando. Todo mundo tem na memória uma casa grande com muitas janelas e um quintal com um pé de mangas. Ou de araçás, quem sabe. O Ministro da Defesa tentava tirar um espinho do calcanhar. Olhou-me com grandes olhos negros.
- Quer ajuda? - perguntei, solidário.
- Tem um canivete?
Por um acaso eu tinha. E me orgulhava muito dele. Talvez fosse a única lembrança dos meus tempos de menino. Tinha 11 ou 12 anos quando meu tio Gaspar, no Natal, me surpreendera com o melhor presente da minha vida. Era o canivete dos meus sonhos. Ia se desmembrando em mil e uma utilidades e, curiosamente, jamais o usara, embora sempre o tivesse no bolso, como garantia não sei de que. Talvez porque me tivesse chegado no limiar da adolescência , tudo o que eu pudera fazer com ele fora guardá-lo como se, ao senti-lo no bolso das minhas calças de homem feito, eu pudesse ter uma estranha ligação com o menino que eu havia perdido.
Sem muita habilidade, consegui tirar o espinho do calcanhar do pequeno Ministro. Lúcia, que acompanhara toda a operação com evidente curiosidade, pediu:
- Me empresta um pouquinho?
- Meu canivete? Mas de jeito nenhum!
- Só quero ver de perto - resmungou ela.
- Te conheço muito bem! Depois não sabe onde deixou...- Ela não parecia surpresa com o meu “não” tão peremptório. Continuou insistindo, a princípio meigamente, como fazem as meninas, depois com raiva.
- O que é que tem? Acha que vou comer seu canivete?! Só quero ver de perto! - Gritou.
- Já disse que não!
O Ministro de Exterior ouvia a nossa discussão atentamente. Não disse nada. Apenas me olhou de uma maneira que me enterneceu e eu cedi.
- Ta bem. Mas vou ficar olhando. -Ela arrancou o canivete das minhas mãos, como se temesse que eu mudasse subitamente de idéia. E eu ali, olhando fixamente, como se temesse que ele desaparecesse, ou que ela resolvesse, num ímpeto, joga-lo pela janela, só para me irritar.
- Bonito. - Disse, satisfeita, me estendendo de volta o canivete. Aliviado, coloquei-o no bolso. Havia algo de estranho no meu comportamento, mas eu não estava vivendo um momento razoável, da maneira como qualquer pessoa adulta entenda por razoável, portanto nada poderia me intrigar mais que já intrigara.
O sol ainda estava alto quando chegamos ao campo de batalha, mas os meninos não pareciam sentir o calor que começava a me deixar meio zonzo. Adultos e crianças se misturavam do lado de fora do campo, não homogeneamente, é claro. Pareciam mais óleo e água num mesmo recipiente. Mas era divertido. O alarido das crianças se misturava com as vozes dos adultos, de tal maneira que eu não ouvia os sons da batalha. Nem poderia, porque os “soldados”estavam em absoluto silêncio, como convém a jogadores de xadrez.
- Mas é só um campo de xadrez! - gritei para o Ministro da Justiça que me olhou com desdém.
- Você não esperava ver bombas, mísseis e aviões de guerra. Ou esperava? - Zombou.
Eu olhava admirado para o imenso tabuleiro de xadrez com peças humanas, meninos e adultos. A guerra fora dura, porque quase não havia peões no campo, nem adultos, nem meninos. Estavam do lado de fora, e alguns confabulavam entre si, com gestos largos e alguma gritaria. Mesmo dos adultos, o que não chegava a me surpreender. Eu tentava me posicionar no estranho jogo, tentando descobrirum jeito de dar palpites.
- Aquele peão moreno está mal posicionado. Poderia avançar uma casa... - Sussurrei no ouvido do Ministro do Exterior.
- Se fizer isto vai deixar a dama em maus lençóis. E um peão prefere cair a deixar sua dama numa situação constrangedora. A guerra está perdida.
- Ainda não. Vai ver! - Falei tentando entusiasmá-lo.
- De que lado você está? - Voltei-me ao ouvir a voz feminina atrás de mim. Uma jovem mulher me olhava com desprezo e arrogância. Como eu tinha me habituado a este tom de desprezo!
-Não do mesmo lado que você, espero. - Devolvi com súbita coragem o que fez meu amigo ministro sorrir admirado. Uma gritaria de vozes adultas me fez perder a coragem e não olhei para o campo de xadrez. Os meninos estavam perdendo uma guerra que não durara mais que 12 horas e alguns minutos, e não deixava nem mortos nem feridos. Só uma profunda tristeza nos olhinhos infantis.
O Rei menino, sentado na última casa à direita, chorava. A dama adulta, na 3º casa à sua direita, consolava o bispo que suava por todos os poros. O Rei adulto tinha se aproximado do Rei menino, na verdade perigosamente próximo, gritava com alvoroço.
- Xeque mate! Xeque mate!
Começava a anoitecer no Território dos Meninos. A balbúrdia do final da guerra tinha se transformado num suave murmúrio. Os adultos, pouco a pouco deixavam o lugar e, alguns até me pareceram consternados, como se lhes pesasse a vitória. Lúcia, que tinha virado um rabicho atrás de mim, não mostrava sinais de grande interesse no que estava acontecendo. Talvez por ser muito menina ainda.
- Mas afinal, porque lutaram? - Perguntei ao ministro da Justiça, enquanto nos dirigíamos de volta ao ministério. Ele não me respondeu logo. Esperou que chegássemos e me indicou uma cadeira, pequena demais para mim, achei. Mas não foi difícil encaixar-me nela. Eu não era tão grande quanto parecia ser nos jornais. O Cônsul e a consulesa também estavam presentes, o que me deixou meio perplexo. É verdade que estavam comodamente assentados nas poltronas do império austríaco e um dos meninos disse-me a meia voz, que fosse onde fosse, eles sempre carregavam as suas poltronas. Ele notou o meu pesar e disse:
- Já houve um caso bem pior aqui...
Foi aí que eu fiquei sabendo da história que tanto perturbara os pequenos ministros. O Cônsul anterior tivera uma crise histérica, oito dias depois de chegar ao território, porque a companhia de transportes desaparecera com o seu aparelho de televisão. Contam os meninos que ele passou dias e noites vasculhando todas as casas, até que alguém o viu, correndo pela estrada com o aparelho na cabeça, desesperado em busca de uma tomada. Depois disto, nunca mais o viram.
- Puxa vida! - Consegui murmurar, para parecer tocado, embora essa história fosse bastante comum no meu país, e não mais sensibilizasse quem quer que fosse.
-”A coisa deve ser séria “- pensei, olhando o cônsul que acendia o maldito charuto. Os olhos da consulesa se fizeram pura angústia. - “para eles estarem aqui...”
Um silêncio estranho tomou conta do ministério. Acomodados nas pequenas cadeiras, de um lado os meninos e eu, do outro, o Cônsul e a Consulesa em suas poltronas austríacas. Com o ministro do Exterior de um lado e Lúcia do outro, achei que deveria fazer uma cara compungida, como é muito usado em meu país, em circunstâncias semelhantes, mesmo que você não saiba o motivo de tanta tristeza. Eu precisava saber o que estava acontecendo. Antes que ousasse fazer a pergunta ao meu amigo ministro, o Ministro da Justiça fez cessar o murmúrio e declarou solene:
-Sr. Cônsul, perdemos a guerra. O Território dos Meninos agora é dos adultos.
- Mas porque?! Perguntei horrorizado. Todos os olhinhos se voltaram para mim, em silêncio, e comecei a entender. Para consolá-los disse baixinho:
- Eu tinha um pé de araçá no fundo do quintal, uma boiada de tomates verdes, um curral de palitos de picolés... eu tinha muitas coisas!
Os meninos tiveram pena de mim, mas fui eu quem chorou. Naquela noite não houve risadas nas ruas, e a lua cheia se escondia atrás das árvores, para não ver os rostinhos pálidos.
Tivemos ainda um mês antes de deixar o território. Foram os trinta dias mais urgentes da minha vida. Enchia os pulmões de ar até ficar tonto, na esperança de levar comigo um pouco daquele perfume. Pisei todas as gramas que pude, olhei todos os peixes do rio e, sobretudo, fiquei colado nos meninos dia e noite, na maior e mais segura certeza de estar aprendendo o essencial. Foi assim que, inebriado, desembarquei no meu país. Minha irmã me esperava no aeroporto. Estava bonita e tinha um olhar que me encheu de saudades. Abraçamo-nos como nunca ousamos, cheios de ternura. Seu olhar determinado e hostil, agora me parecia simplesmente triste. No caminho de volta para casa, nenhum de nós falava. No meio do trânsito, parados no sinal, perguntei:
- Você ainda vomita quando vê filmes de terror?
Ela riu. Sua risada quicava no ar como uma bola de ping-pong no asfalto.
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O TERRITÓRIO DOS MENINOS






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