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Discursos-->A IDENTIDADE NAS DESSEMELHANÇAS -- 08/01/2002 - 16:09 (CARLOS MÉRO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Só agora, quando já não há mais remédio para a minha atrevida pretensão de ser e de estar aqui, é que me dou conta do privilégio do me ter sido dado vir, mas também da responsabilidade que me pesa por ter vindo.

De feito, chego ao inspirador convívio de que, faz muito pouco, desfrutou meu pai, Ernani Méro, de quem já disse ter sido a sutil encarnação da alma das correntes. Chego, por outra, para ter assento no lugar que ocupou Aloísio Costa Melo, ele, como meu pai e eu mesmo, namorado das ladeiras, dos becos, dos casarios, das esquinas e dos campanários do Penedo, e, muito mais, ainda, dos crepúsculos que ensangüentam as águas buliçosas do Rio São Francisco.

Ernani apaixonou-se pelos arrojos da gente penedina, pelas bravuras contadas e recontadas pelas lendas e pela crônica, pelos registros dos Livros de Tombo, pelo formigante desabrochar e ficar das igrejas coloniais, pelo trânsito, enfim, da história oficial ou oficiosa. Aloísio, este enrabichou-se pelas contingências do dia-a-dia, pelas paixões transitórias ou permanentes, pelo ciclo das horas, pelas verdades, mesmo que triviais, pelas paixões e pelos desastres de todos e de cada um.

E eu, degredado filho de Eva, deixei-me seduzir por um e por outro, deixei-me levar pelos sonhos e pelas vocações que lhes deram identidade.

Ernani, meu pai, enraizado nas memórias firmadas pelos anais, convencido pelas verdades crivadas pelo que se fez escrito, hipnotizado pelos registros que quase já mais não se guardam, e, se se guardam, quase já não mais são abertos aos olhos da posteridade. Aloísio, comprometido consigo mesmo e com quantos o rodearam, com as suas visões e as suas reflexões, com as suas experiências e as suas decepções, com os seus anseios e com os seus desânimos, com as suas convicções e com os seus desvarios, enredado pelos caprichos do sentimento.

Ernani, o poeta, o descritor do que se vê posto, do que dão testemunho as escrituras e as inscrições. Aloísio, o denunciador do sonhado, o declarador do vivido, o desvendador de segredos guardados a sete chaves.

Ernani, estendendo as vistas para os silêncios contritos de Ipuarana, para a reflexão dos claustros, para o concerto das idéias que apontam para os ideais seráficos, para a esperança dos crentes, para o mistério da eternidade, sempre acorrentado aos desígnios da aceitação. Aloísio, a esticar os olhos para a Maceió dos namoros furtivos, para a Capela do aconchego das origens genéticas, para o Camartelo das dissimuladas aventuras de alcova, sempre desperto para as limitações humanas, sempre atento aos descompassos que se insinuam na harmonia aparente.

Ernani, o tolerante, o compassivo, o venerador da crônica, o esperançoso da revelação divina, o recolhedor da aventura que se cristaliza na história. Aloísio, o observador, o retratista, o perseguidor dos instantes, o registrador das vacilações, dos anseios, das decepções e das esperanças de cada dia, o contador de estórias.

E eu, aqui, a síntese malcomportada de um e de outro.

Ernani, definitivamente embrenhado nas letras quando já cumprido meio século de peregrinações pelos anos. Aloísio, acordando a caneta quando despertado para a sétima década da sua caminhada de vivente.

Ernani, contaminado pelo ar úmido das sacristias, pela introspeção exalada pelos missais, pela elevação das preces e do cantochão, pela caminhada teimosa no rumo da integração com o sempiterno. Aloísio, transportado pelo cheiro forte das ruas, pelo suor das vias encharcadas de calor, pelos corpos incendiados pelo desejo, pela humanidade deslembrada de si mesma, pelo ritmo por vezes fatigado da procura da razão de viver.

Ernani, o temente. Aloísio, o tímido. Ernani, o testificador. Aloísio, o narrador. Ernani, o historiador. Aloísio, o memorialista.

Ernani cuidou das procissões, das novenas, das matinas e das vésperas, dos sermões quilométricos e das missas intermináveis, dos mistérios da Virgem, das revelações da Paixão. Aloísio cuidou dos bailes, das quermesses, dos desjejuns regionais e das feijoadas apimentadas, do oco da solidão e do renovar dos novos amores, dos folguedos carnavalescos e das bebedeiras de fim-de-semana.

E eu, mais uma vez, malpronto aprendiz das lições que talharam, a me deixar enganar pelos descaminhos da vida.

Ernani tratou das caravelas, dos fortes e das fortificações, dos pregadores e dos penitentes, dos governantes e dos governados. Aloísio tratou das usinas de açúcar, dos latifundiários e dos sem-terras, dos feitores e dos cambiteiros, dos dominantes e dos dominados.

Ernani preocupou-se com os reinóis e com os colonos, com os lusos e com os brasílicos, com as sotainas e com as tonsuras, com as confrarias e com os compromissos, com as bulas e com as encíclicas, com a fé e com os cismas. Aloísio preocupou-se com o ter e com o querer, com o pretender e com o fazer, com o sonhar e com o ser, com o amar e com o odiar, com o riso, com a dança, com o amar sem ser amado, com os desejos que se completam no dar sem se dar, com as paixões que se enfiam pelo tempo afora.

Ernani cantou Sabino Romariz, o poeta do lírio, da redenção de Judas, o poeta dos símbolos e das dores. Aloísio recontou Fortunato, baiano amulatado de bucho descendente, provedor das gulodices e das cervejadas dos dias claros de domingo. Ernani cantou Antônio Pedro, pincel das cenas bíblicas, formão do refazer dos modelos barrocos. Aloísio restaurou Pilinha, louco por ser diferente, diferente por não conhecer convenções. Ernani cantou Cesário Procópio, o cinzel que moldou Cristo das entranhas do madeiro que dava corpo ao cavalinho do carrossel. Aloísio ressuscitou Pedro Amâncio, seu pai, senhor de engenho, coisa nenhuma, nômade, bodegueiro, comerciante remediado, cronista da sua própria crônica.

Ernani, enfim, reconstruiu a história da cidade que pelo rio se fez, que no rio se planta e que para o rio converge. Aloísio reescreveu a história dos homens que do rio se nutrem, que no rio caminham, que apesar do rio são homens.

Ernani, o sonhador. Aloísio, o experimentador. Ernani, o colhedor das lições do passado, que apontam para os caminhos do futuro. Aloísio, o perscrutador das impressões do ontem, que firmam a identidade no hoje. Ernani, o homem. Aloísio, o homem.

E eu, aqui e agora, a querer fazê-los reviver pela lembrança, quando muitos diriam que é o estarem vivos na lembrança que mais lhes atesta o enigma da passagem.

- Mas não há de ser nada - diria Aloísio Costa Melo.

- O homem põe, Deus dispõe – proclamaria Ernani Méro.

E eu, com essa mania de acreditar que a energia se transforma mas não se extingue, só gostaria de lhes dizer, a um e ao outro, que basta ter sido para se ser sempre, mesmo quando a memória já não nos guarde um só traço.

Principalmente eles, que apesar de abafados pelos rigores da permanente luta pela subsistência, que apesar de mais não terem que a si mesmos para empurrá-los pelo caminho das letras, construíram-se sobre os alicerces de suas próprias esperanças.

Mas, para falar a verdade, do que mais precisariam.

Afinal de contas, não é no poço da obsessão da glória, mas no prazer da realização, que de veras se esconde o impulso indomável da criação artística.

Do mesmo modo, não é na canseira da procura, mas na floração do talento, que seguramente se guarda a explosão do artista.

Por isso mesmo, bastaram poucos anos da juventude para garantir a imortalidade a Rimbeau, a Radiguet, a Castro Alves, enquanto que uma vida inteira de carinho pelas notas musicais e pelos compassos, de procura dos sons, de produção incansável, não perenizaram a virtuosidade de Salière, cuja inveja, diz a lenda, crucificou e decepou o gênio de Mozart.

Também não tenho a ilusão de que o apego permanente ou episódico ao próprio mundo, a fixação e a revelação da realidade próxima, condenem o artista a deplorável insulamento, contaminando de provincialismo as criações do seu espírito. Até porque Lautrec não se desfez das imagens do dia-a-dia da Paris do seu tempo, Garcia Marques não se desgrudou dos assombros e dos mistérios de Macondo, nem Jorge Amado se despregou das crendices e da jovialidade, dos fuxicos e da musicalidade, dos escândalos e das virtuosidades do universo baiano.

A poesia surpreende ao poeta, não é surpreendida por ele.

A criação artística é ou não arrebatadora pela expressão que a revela e não pelo sacrifício da busca.

A universalidade do autor não se mistura com a universalidade dos seus temas, mas se nutre da intensidade das suas reflexões.

Não é a madureza calçada no tempo que edifica o escritor, mas sim a consistência da sua inspiração e o aprumo da sua mensagem.

A singularidade na interpretação do mundo, finalmente, não flui do alongado debruçar-se sobre ele, ou da necessária coleta de evidências distantes, mas sim da profundidade do mergulho na realidade vivida ou pressentida.

E é justo em fazendo esta profissão de fé, que mais em mim se assanha o meu compromisso em honrar Ernani Méro, em honrar Aloísio Costa Melo.

Eles foram grandes em sendo simples, porque na simplicidade conseguiram desvendar a grandeza, tarefa que só aos iluminados é dado exercitar. Eles ficaram, mesmo tendo partido, porque não se descuidaram de que, repercorrendo os seus passados e os de suas gentes, firmaram definitivamente as suas identidades.

Que me seja dado, portanto, tomá-los por modelos. E que assim sendo, que eu chegue aqui, como chegaram eles, para contribuir, para participar, para dar de mim, para estar junto.

Muito obrigado.

( Discurso de Posse na Cadeira nº 02 da Academia Alagoana de Letras, pronunciado na noite de 17 de setembro de 1999 )
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