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Artigos-->CHICO, O POETA DO PIAUÍ -- 04/03/2010 - 20:09 (Francisco Miguel de Moura) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CHICO, O POETA DO PIAUÍ



Eduardo Maffei*





Nos meus tempos de andejo por esses brasis afora, estive, por diversas vezes, nos anos 40, em algumas cidades do Piauí. Todas me impressionaram negativamente tanto pela pobreza material como cultural. Nesse conjunto ficaram-me entretanto algumas impressões fortes, excepcionais: as “Sete Cidades”, um estranho médico, misto de sábio e de santo, que residia em Simplício Mendes, o Dr. Isaías a quem cometi a deslealdade de esquecer o resto do nome e uma certa publicação literária de Parnaíba. Sobre as “Sete Cidades”, fiz, na ocasião, uma grande reportagem para “O Cruzeiro”, então a revista semanal de maior circulação no país. Quanto ao meu colega de Simplício Mendes – eu também sou médico – sobre ele já ouvira referências em todo o sertão, da Bahia para o Norte, de variados tipos: como médico, como homem e como cultura. Quando o conheci aconteceu-me algo parecido ao que havia Bates deparado. Há mais de um século, em 1848, navegando o Tocantins em direção às cabeceiras, esse naturalista topou, próximo de Baião, com uma aldeia de meio milheiro de habitantes dos quais a maioria de mulatos, poucos negros, alguns índios e nenhum branco. Travou relações com um funcionário público ali sediado, Soares de nome, moço, mestiço de branco e curiboca que lhe convidou a ver sua biblioteca. A casa não era casa mas sim uma choça de pau-a-pique, coberta de sapé, na margem do rio. Examinando-a não teve o enfado do galo da fábula que encontrara, ao invés de um grão de milho, uma pérola. Bates não era animal; era naturalista e pela cultura especialmente diferenciamo-nos dos irracionais. Espantou-se. Havia, entre a aparência e a pobreza do mameluco e de sua habitação e a variedade qualitativa dos livros existentes, algo insólito. Escreveria para a história: “Fiquei surpreso ao ver numerosos clássicos latinos em muito boa encadernação, e entre eles, Tito Lívio, Virgílio, Terêncio e as Epístolas de Cícero. Foi para mim um espetáculo desusado.” Eu conhecia já, desde os anos 30, essa passagem, citada por Tristão de Athayde, e foi exatamente isso que senti mais tarde ao meu contato com Isaías, um médico que faria inveja a uma Academia de Medicina. Restara-me ainda outra grande impressão, por paradoxal em relação ao atraso do Piauí, que espantaria novamente a Bates. Foi quando me tornei amigo – e seu colaborador – de um bizarro tipo de comerciante, variação parnaibana de Mecenas, Ranulpho Torres Raposo, que executou a incrível façanha de se transformar no único e mais antigo editor de um anuário de cultural do país, circulando regulamente desde 1924, o “Almanaque da Parnaíba”, com 300 páginas cada um.

Leio agora “Universo das Águas”, de Francisco Miguel de Moura, e, como Bates, voltaria a me pasmar se não percebesse que por trás de uma editora do tipo “Grupo/Cirandinha” tem que haver certa massa cultural, porque o livro é mercadoria que necessita do mais refinado mercado, daqueles que praticam um dos mais sublimes atos de liberdade, a leitura. E esse se cria, como qualidade, só através de uma sedimentação da quantidade cultural. Percebe-se, assim, que o Piauí também deu seu salto qualitativo de saber.

Nos “Diálogos Platônicos”, atribui-se a Sócrates uma gama enorme de opiniões. Dizemos que a ele se imputa porque muitos afirmam que tais conceitos são do próprio autor, seu discípulo, Platão. O marido de Xantipa externara que a palavra escrita não refletiria jamais o verdadeiro pensamento do autor. A História da antiguidade grega, durante a civilização creto-micênica, quando a escrita achou-se confinada a uns poucos escribas e era monopólio palaciano, havia sido popular e tradicionalmente oral. Além disso, Sócrates afirmava que só através do diálogo, da dialética, é que se encontra a verdade. Aliás, só haver quem atribua como de Sócrates ao que Platão escreveu e vice-versa demonstra como havia razão na afirmativa. Dizia que a escrita é como um quadro que por fixar um momento e não o processo teria necessidade, para ser explicado, da presença do pintor. (Que não diria hoje esse mestre se tomasse conhecimento dos atuais surrealistas!?) A história da cultura demonstrou o acerto de Sócrates. A mesma obra apreciada por diferentes críticos é analisada sob pontos de vista diversos e, às vezes, opostos. O bom escritor seria, assim, aquele que com um jogo de palavras grafadas desse um sentido de oralidade às mesmas através de uma plástica verbal.

Isso acontece com muita freqüência na poesia. Digo “com muita freqüência” porque só se dá com os bons poetas que situam suas produções através do fascínio, no espaço, entre escrita a estática e a fala dialogante. É por vias de concepção aparentemente idealísticas que o poeta perpetua a realidade. Esta, quando descrita, aparenta-se com a fotografia, que representa um átimo do tempo e não o processo. Paulo Bonfim disse recentemente que toda prosa bonita é poética e eu diria que o é porque atingindo a sensibilidade humana torna-se algo participante e em movimento entre quem lê e quem escreve. Por isso Homero se eternizou. Sublimando os costumes e paixões humanas deu um perpétuo sentido de presente ao passado. O poeta é o motor que exalta a palavra.

Todas essas reflexões vieram à tona porque foi dessa forma que senti “Universos das Águas”. Nele me reencontrei com os fenícios das “Sete Cidades”, com Isaías, com Ranulpho, e também com Sócrates, o mundo do feitiço do verbo. Nele, “A Rua Triste” me levou de volta ao primeiro sentimento amargo que tive na infância ao tomar conhecimento do “beco das mulheres”, em Itu. Nessa poesia a gente encontra a mesma rua que existe e existiu em todas as cidades do mundo, em todos os tempos. “Dois Soluços para Tiago” é como se Thiago de Melo estivesse presente, falando com a gente, dialogando como queria Sócrates. “Burocratismo” é uma beleza viva sobre um tema de mediocridade, demonstrando que só os poetas dão vida ao que realmente existe. “Tratado dos Marginais” é um panfleto vivo. Lembra-nos Ibn el Faridh, um poeta árabe a quem De Felice atribui extraordinário encantamento, que exerce sobre os ouvintes pela magia do verbo. Sócrates não entreviu esse dom na escrita. Foi pena. A poesia dá alma às palavras e nas de Chico a gente a encontra.



São Paulo, março de 1980.



(Publicado no “JORNAL DA BAHIA”, Salvador – BA, em 30 de março de 1980).





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*Eduardo Maffei, médico, jornalista, historiador, romancista e crítico literário, autor de “A Greve” e “Maria da Greve “, além de outros.









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