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Contos-->Asfalto Vermelho -- 04/01/2000 - 11:38 (Ignácio Camillo Álvares Navarro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Caminha lento, olhos perdidos num ponto qualquer. A mulher lhe enrodilha o braço, amparando-se do cansaço e do desespero, rosto desfigurado mas, ainda, com traços de beleza. No outro braço, o filho de dez meses desperta, choramingando; passara o efeito da água açucarada que o dono do bar lhe dera por misericórdia. Entreolharam-se. Juntam as lágrimas no abraço e o Marcelo decide-se:
– É... não tem jeito mesmo; mendigarei, mas meu filho não morrerá de fome.
Conforta-o Magaly:
– Melhor mendigar que perecermos todos. Quem sabe conseguiremos o dinheiro para a passagem de volta!
.................................................
Sentam-se no banco que contorna a praia, Marcelo tira sua camisa suada e, com a cesta de vime achada no lixão do Shopping Center, improvisa um berço para o filho, que agora abre o maior berreiro. Reclama da fome o pequenino. Afinal, há dois dias só toma água com açúcar!
Marcelo, resoluto, põe-se a abordar os transeuntes: com a mão direita pede auxílio, enquanto a esquerda aponta para os seus. Magaly tenta de todas as formas aplacar o choro do pequeno Mauro.
Os que passam por ali não se importam com a cena – anestesiados de tanto presenciar a miséria nas ruas da cidade, nem se dignam a voltar seus olhos para aqueles mendigos. É culpa do governo, a situação está ruim para todos, não há o que fazer; comentam os ofegantes praticantes do "jogging" naquele magnífico fim de tarde no calçadão de Ipanema.
Marcelo, já não contendo seu desespero, ajoelha-se aos pés daquele casal que caminhava de mãos dadas com o filho e suplica por ajuda.
A reação da mulher foi imediata, abaixou-se e levantou o pobre homem, fitando-o nos olhos.
– Marcelo?! Você é o Marcelo, não é?
Marcelo não acreditou no que via: Helena, sua primeira namorada, ainda na adolescência, à época do 1º ano de ginásio em Belo Horizonte. Os olhos eram os mesmos: duas esmeraldas verdes e brilhantes; os cabelos, agora curtos, não tinham mais a cor dos fios de milho de outrora, estavam mais escuros. Mas era ela mesma, Helena, a voz meiga e delicada, aquela boca em formato de coração, de onde roubara o primeiro beijo!
Envergonhado com sua condição, Marcelo levanta-se, desculpando pelo incômodo, e já ia chamando Magaly quando Helena o deteve.
– Marcelo, o que houve, vamos conversar um pouco, sente-se aqui, me fale de você, de vocês!
Estendendo a mão, apresentou-se a Magaly e afagou a cabeça do pequeno Mauro.
Enquanto isso, João Paulo voltava do quiosque trazendo cachorro-quente e refrigerante para todos; e João Marcelo, seu filho, oferecia água de coco para a mamadeira de Maurinho.
Pouco a pouco Marcelo foi se tranqüilizando com a presença amiga de Helena e abriu seu coração, num misto de desabafo e auto justificativa:
– Sabe Helena, logo que terminou aquele ano lá em Belo Horizonte, meus pais morreram no acidente do DC-10 da Pan-Am que ia para a Europa, lembra? A partir daí eu fui morar com meus tios Caetano e Marta, que tornaram-se meus tutores e responsáveis pela administração de todos os bens que eu herdei como filho único. E olha que era uma verdadeira fortuna: imóveis, ações, jóias e até uma valiosa coleção de quadros dos Modernistas de 22 que meu pai recebera de meu avô que participara do movimento como cronista. Mas o tio Caetano não tinha o menor talento para finanças. Desacostumado com tanto dinheiro, meteu os pés pelas mãos, aplicou muito dinheiro naqueles fundos de investimento da década de 70 e o fez no pior momento: na alta. Logo depois começou a quebradeira e o dinheiro foi pelo ralo!
– Ah, eu sei bem o que foi isso! disse João Paulo. Meu pai perdeu muito dinheiro nesses fundos da época do "milagre brasileiro"!
– E você Marcelo, como ficou?
– Eu não sabia de nada, estava tranqüilo em Juiz de Fora, estudando interno no Grambery, até que um dia o padre diretor me chamou para uma conversa de pai para filho e disse: – Meu filho, já fazem 3 meses que não recebemos a mensalidade de seus estudos aqui no colégio. Procuramos saber o porquê e, depois de muitas cartas e cobranças, nossos advogados descobriram que seu tio deu um tiro na cabeça da mulher e depois suicidou-se! Ele fez isso por desespero, pois perdeu todo o dinheiro que tinha. E era tudo seu, não é mesmo?
- Aquilo não me emocionou como era de se esperar, mas as palavras seguintes do padre, essas sim, me deixaram em pânico.
– Dessa maneira, meu filho, não podemos mais deixá-lo estudar aqui, a não ser que você queira trabalhar na faxina e morar no alojamento do orfanato.
– O que seria de mim agora? Eu nunca havia trabalhado para ninguém; ao contrário, sempre trabalharam para mim! Aquela idéia me perturbou tanto que resolvi fugir dali.
Mas o que faz um menino de 14 anos, sozinho no mundo? Não querendo ficar nas ruas de Juiz de Fora, fui para a "União Indústria" e peguei carona num caminhão para o Rio de Janeiro. Uma pequena mala com 2 camisas, 1 calça, um par de sapatos, uma foto de meus pais e "O lobo da estepe", do Herman Hesse que já havia lido 3 vezes e sempre estava comigo.
Desembarquei no cais do porto, onde o caminhão iria descarregar, e andei sem destino, até a Praça XV. Faminto, entrei num restaurante que dizia servir a melhor peixada da região e pedi o tal prato delicioso. Comi e me deliciei até com as fatias de pão mergulhadas no que restara de molho do peixe, sem me preocupar como pagaria, já que não tinha um tostão sequer no bolso. Na hora da conta ensaiei uma corrida desabalada para longe dali mas, ao atravessar a avenida, fui atropelado por um Karman-Ghia vermelho dirigido por uma ruiva de olhos verdes. Ela foi a última imagem guardada na memória, e também a primeira que vislumbrei quando abri os olhos, ao recobrar os sentidos, quase oito meses depois, numa cama com lençóis muito brancos num quarto de pé direito alto e janelas imensas que davam para uma mata de um verde intenso. Estava em Laranjeiras, num casarão muito grande e bonito – era a casa da ruiva. Aquela mulher era viúva de um famoso comendador português que a deixara muito nova e rica nesse Rio de Janeiro. E, sorte minha (ou azar, pensando bem), ela afeiçoara-se a mim, velando minha inconsciência durante esses 8 meses.
– Marcelo! Você ficou em coma todo esse tempo! Ponderou Helena.
– Isso mesmo, e para resumir o resto da história: passei naquela casa os melhores anos de minha vida, comendo do bom e do melhor, estudando nos melhores colégios, freqüentando os melhores clubes e festas da cidade. E assim vivi, por mais quinze anos, como um príncipe herdeiro sem preocupações. Até que no fatídico 14 de julho de 1990 meu castelo desabou.
Estava com Magaly, na época empregada na mansão e minha namorada – romance que escondíamos da viúva (que não devo dizer o nome, mas você logo irá descobrir). Achando que a senhora iria passar o final de semana em sua casa de Petrópolis, eu e Magaly nos amávamos no mesmo quarto onde, mais por gratidão que amor, às vezes doava um pouco de prazer àquela carente alma solitária.
Extasiados naquele momento de paixão e amor que vivíamos, nem eu nem Magaly ouvimos quando a porta se abriu e a viúva, rubra de ciúmes, avançou sobre nós com um punhal de prata nas mãos. Consegui me esquivar protegendo Magaly do ataque e a pobre jogou-se com toda sua força sobre a cama. Para sua infelicidade e nossa desgraça, num golpe fatal enterrou o punhal em seu próprio coração. Ainda tentei salvá-la e virando-a puxei a lâmina de suas entranhas, mas era tarde. Num último suspiro ela ainda pronunciou: – Desgraçado, infiel!
Sem saber o que fazer, vestimo-nos e liguei para a delegacia comunicando a morte. Magaly, atônita, ainda tentava entender o que se passara e eu, no intuito de evitar-lhe maiores constrangimentos, mandei-a sair dali imediatamente.
Tudo inútil. Ao abrir o portão, chegava a polícia que a deteve e fizeram-na retornar ao palacete. Eu tentei explicar a situação, mas o que sucedeu daquele momento até o nosso julgamento, foi pior do que Kafka descreveu em "O Processo". Cada argumento que levantávamos em nossa defesa era intransigentemente refutado e distorcido para imputar-nos a culpa.
Ao final de três dias de júri popular fomos condenados, eu a trinta anos de reclusão e Magaly a dezoito. Cumpri 8 anos, ela 5 e saímos por bom comportamento faz 1 ano. Ah, sim! O Maurinho, hoje com 10 meses, foi concebido numa de nossas visitas íntimas, a nós permitidas após sete anos e meio de mina pena.
Pois é isso minha cara amiga. Hoje já nem sei quem sou realmente. Me sinto uma alma cativa de um corpo errante. Só tenho certeza de uma coisa: o amor que sinto por Magaly e pelo meu filho querido é o que me faz tentar viver. Mas a vida tá difícil! Ninguém quer saber de ex-presidiários. Quando saí da prisão fomos para Jordânia, em Minas, cidade natal da Magaly. Mas lá a miséria é imensa, não tem nem água para beber. Já tentamos de tudo, Magaly até conseguiu um emprego de doméstica, mas quando descobriram-na com um filho e souberam de nosso passado, foi despedida. Não adianta eu demonstrar meus conhecimentos de alemão da época do Grambery, nem mesmo meu diploma de bacharel em Letras; quando pedem referências, eu perco todas as qualificações. Viemos para a zona sul na tentativa de, mendigando, conseguir algum dinheiro para pegarmos um ônibus de volta para a terra da Magaly.
Helena, que ouvira tudo em silêncio, chamou João Paulo (que brincava na areia com João Marcelo e Maurinho, sob a supervisão de Magaly) e propôs:
– João, o que você acha de hospedarmos essa bela família em nossa casa de Itaipava?
E com o apoio de João lançou um desafio:
– E de você Marcelo, quero um presente: um livro! A história de sua vida em romance. Sou editora-chefe da Nova Pasárgada e você será meu próximo autor! Está contratado!
– O sol se punha atrás do "dois irmãos" e pela primeira vez Marcelo, com paz no coração, observou que àquela hora o asfalto da Vieira Souto era vermelho.
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Brasília, 04 de janeiro de 2000

* Pedro Wilson Rocha é contista por paixão, advogado por profissão. Os primeiros parágrafos de seu conto, Asfalto Vermelho, publicado no Jornal de Cultura em maio de 1988, serviu de mote (leitmotiv) para o desenvolvimento do conto de Ignácio Navarro que inicia-se a partir da frase: "Sentam-se no banco que contorna a praia, ..."
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