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Contos-->O Tonel -- 23/08/2002 - 11:10 (Gerson Espindola serpa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Minha animação se arrefecera um pouco após aquela querela que, embora não tenha sido das mais graves, sem altercações ou esconjuros, aplacou-me de certa forma o espírito que, naquela manhã, em especial, despertara entusiasmado e confiante.
Ela, que se limitara simplesmente a ressentir-se, agora assistia à novela, amoada, melindrada, fazendo beicinho e evitando me olhar nos olhos. No romance televisivo, a trama chegara ao paroxismo duma sensibilidade pueril e aquela serena lágrima que lhe acariciava a face não me esclarecia se provinha das recônditas emoções que plangem a alma feminina nessas ocasiões de encontros ou se tratava de uma queixa pro-testando contra a rejeição do nosso desencontro.
Arrumava as bandeiras, as cornetas e a camisa, tentando não dar maiores atenções aos seus caprichos. Caprichos? Sim, tanta manha só poderia ser classificada como capricho; além do mais, o que é que tem um homem casado ir assistir a um jogo de futebol? Será que toda vez que quiser ir ao estádio será esta lenga-lenga? Na verdade, por serem tão integrais, as mulheres só se consideram amadas se o forem integralmente, incondicionalmente, exclusivamente e parassempremente. Mas eu preciso do campo aberto, dos gramados verdes e amplos; necessito jogar sem marcação com o mundo para que, face aos contrastes, retorne para casa entusiasmado e confiante. Necessito da, igualmente pueril, auto-afirmação da confirmação: é, realmente eu fiz a escolha certa!
Somos, cada um ao seu jeito, extremamente infantis.
Necessito da tensão que antecede a partida, fazendo trincar os dentes e beijar o escudo da camisa; da inquietação que transforma o coração em brasa, quando da pressão do adversário; careço, intensamente, dos minutos decisivos, que se revestem de extrema urgência e relevância nesta hora; das vozes que, emanadas de um velho radinho de pilha grudado aos ouvidos, esclarecem-me os lances e me incitam as emoções. E, somente após este ritual mágico, masculino, telúrico, é que vem o gol, o êxtase, o orgasmo...
Já minha jovem esposa necessita acompanhar, dia após dia, o enovelar-se dos acontecimentos; analisar, chorar e debater, cena após cena, o porquê de tão cruel atitude do vilão ou o sofrimento imérito da mocinha; enredar-se, capítulo a capítulo, nos sentimentos do mocinho, no afã de descortinar-lhe os legítimos interesses, desenredar-lhe os novelos circuncêntricos da personalidade. Por fim e isto após longa inspeção take a take, é que vem o desenlace, o remate, a entrega final. No entanto, trata-se de uma entrega tão integral, tão intensa que torna-se particularmente inadmissível que o idiota prefira assistir ao jogo de futebol à permanecer ao lado dela o resto da vida.
Somos realmente duas crianças à procura de carinho, respeito e segurança e, o que é mais difícil, um no outro.
Não consigo imaginá-la como era na infância – já a conheci com vinte e cinco anos – mas acredito que não mudou muito de lá prá cá. Nem eu. Parece que foi ontem que um menininho gordinho e lentiginoso burlava a confiança da mãe para ir, escondido, com os amiguinhos, ao grande e cinqüentão Mário Filho.
O Maracanã exalava, a quilômetros de suas imediações, uma forte emanação volátil de festa, comemoração. No seu interior e por todo seu entorno, via-se as cores tricolores e rubro-negras. Uma grande festança se avizinhava e eu, por méritos dos deuses do futebol, era um dos convidados. O clamor da torcida ensandecida, a cada nome que aparecia no placar eletrônico, ensurdecia aquela tarde de sublime manifestação. (Li recentemente, numa revista especializada que o público oficial na ocasião era de umas cinqüenta mil pessoas, mas eu nunca admiti, nas conversas com os amigos, menos que cem mil; tão pequeno ficara o maior estádio do mundo para o tamanho da minha excitação).
Tudo era uma festa, uma manifestação onírica, quando, aos vinte ou vinte e cinco minutos do segundo tempo, alguém gritou: "Vamos lá para as arquibancadas. É muito melhor e é só pular o muro da sede náutica."Tenho, até hoje, a impressão de que se nos incitassem a pular da marquise do Maracanã, nós o faríamos de muito bom grado. Tudo era festa e todos éramos um único bloco, compacto, monolítico: se um for, todos vão! Fomos. Mas em meio ao caminho, junto às dependências do estacionamento, fomos surpreendidos por uma tropa de choque que rechaçava os invasores. E entre eles, entre aquela massa compacta de aproximadamente cinqüenta pessoas, eu. A tropa de choque vestia uma farda cinza escuro, um cassetete desproposital e um sorriso sádico sob o capacete. Traziam ainda, cada um deles, cães pastores que, agitados pela multidão e movimentação, mais pareciam Cérberos à caça de almas, sem saber ao certo em quem desferir a primeira mordida. Incitava-os ainda mais os agentes da lei que denotavam profunda satisfação no cumprimento de suas obrigações. Fomos acuados junto a um muro de uns dois metros. Olhei em derredor e só vi duas árvores a minha direita – duas laranjeiras ou duas limeiras, impossível precisar – e, a minha esquerda, um velho tonel de óleo de duzentos litros. E, enquanto eu me mijava nas calças, via atônito, um a um, todo o grupo pular aquela barreira com extrema facilidade; como se um muro de dois metros fosse um pequeno criado-mudo. Com as mãos levantadas para o muro, com as calças completamente molhadas e com um desespero aterrador nos olhos, lutava pela fuga impossível, forcejava por seguí-los. Todavia, sendo um adolescente cheio de espinhas na cara e acima do peso como eu era, todo esforço se demonstrava inútil. Dirigi-me às arvores e, ao tentar escalar uma delas, uma dor aguda nas palmas das mãos laivou-as de sangue. Fechei os olhos e chorando de raiva e de medo, ajoelhei-me junto ao murro. Ainda nas trevas, escutei um som surdo e ritmado, um som tenebroso que me assombraria ainda por muitas noites: puf, puf, puf...Um soldado que não mais corria e vinha lentamente em minha direção, batia com o imenso cassetete na palma da mão: puf, puf, puf...Havia entregue o seu pastor-alemão a um colega e agora, a poucos passos de mim, divertia-se com o meu desespero, meu medo, minha incapacidade e covardia. Estacou, de repente, a minha frente, perlustrou-me, fez-se sério e, apontando com o cassetete, indicou-me o tonel a minha esquerda. Levantei-me do chão, subi no tonel e, muitíssimo mais fácil do que poderia imaginar, pulei o muro...
Um prantear débil e inconformado libertou-me da apreensão que sentia só de recuperar estas reminiscências da memória. Larguei a bandeira e a corneta em cima da cama e fui a sala. Ela ainda chorava timidamente, com as cabeça sobre as mãos e, estas sobre as pernas. Apiedei-me com a cena.
- Ô, meu amor, não fica assim! Ela neste momento parou de chorar e enxugava as lágrimas sentidas com as costas da mãos. Eu não vou mais, tá bom? Eu ligo agora mesmo para o Carlos e agente desmarca, tá bom?
Ela me olhou com aqueles olhos molhados, tão apaixonados, tão suplicantes...
- Não é isso que quero! Disse-me com a voz ainda embargada pelas lágrimas represadas. Eu quero que você se divirta!...Mas gostaria de participar da sua vida, gostaria de compartilhar das suas alegrias...
- Mas, meu amor, você nunca quis ir ao estádio comigo antes. Respondi-lhe agora com o coração enternecido.
- Você nunca me convidou...
Fomos de mãos dadas. Ela com a camisa do meu clube e eu com uma satisfação idiota nos olhos: "Por que não fiz isto antes?"
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