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Discursos-->A ESPERANÇA REDESCOBERTA -- 29/12/2001 - 22:51 (CARLOS MÉRO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Eis que quando agora chego a esta Casa, vendo-me afinal entregue ao estimulante convívio com os seus ilustrados membros, o que explode em minha memória, por mais curioso que venha a parecer, é logo a imagem agreste de D. MARIA SALU, cujo patronímico já não guardo ou talvez de veras nunca existiu.
Ela que, naquelas horas mortiças de pós-poente, quando PENEDO mal se despedia da luz e já bocejava o tremeluzir das estrelas recém-natas, arrumava os quartos largos na beira da calçada, esticava o rabo da saia até que lhe tocasse os calcanhares estriados pelas rudezas da roça, deitava os peitos murchos por cima das curvas dos joelhos e maravilhava a meninada, que não dava um pio, sequer, a declamar histórias do tempo da carochinha.
E eu, que no muito já havia vencido meia-dúzia de primaveras, pois que nascido em abril, sob o signo de Marte, com o Sol em Áries e a Lua em Câncer, a bem dizer ficava ali, de beiço caído, em tudo e por tudo convencido do quão veraz seria o universo de estripulias dos bichos que pensam e falam como gente, mas que também sabem ser bondosos ou cruéis, leais ou dissimulados, sinceros ou invejosos como se gente fossem.
E eu, que ainda carregava a inteireza da inocência, pois que dela ainda me sobram restos que por vezes me abismam nas surpresas da hipocrisia, ficava de olhos engessados no rumo da gestualidade dizente da mulher, ciente e consciente de que as bruxas existem, mas de que as fadas-madrinhas prevalecerão, de que os dragões existem, mas de que os guerreiros de bom coração contra eles reinarão.
Convencido, ainda, de que a pureza existe, aquela que diz com a fidelidade ao destino aceito ou escolhido, aquela que rima com a dignidade dos propósitos, aquela que se encanta pela sedução dos ideais, e, mesmo que possa ser induzida a coma pelos alfinetes peçonhentos da intolerância, da prepotência, da vaidade malfazeja ou da inaceitação das vitórias alheias, um certo dia, quando menos se esperar, surgirá o príncipe valente que, devastando os espinheiros que a sitiam, será finalmente desperta pelo doce ósculo do reconhecimento.
Mas quando agora escorrego as vistas por através do meio-século que ficou para trás, o que me espora o juízo é o espanto de que quem, como se deu com D. MARIA SALU, tenha cumprido a infância nos terreiros bem varridos da Sucupira Torta, consumido a mocidade agarrada ao cabo da enxada nos cultivos da Boacica, percorrido o outro tanto da existência no descampado do alto da Santa Luzia, lá bem acima da Baixa da Lama, a quase mais não fazer que fazer barriga, a parir todos os anos, a operar os milagres de multiplicação de mãos-de-farinha e de minguados pedaços de charque, pudesse carregar na mente e na imaginação tantos exemplos que incorporavam as experiências da aventura humana.
De quem, afinal, nunca tendo podido enterrar os olhos pelo detrás das letras, nem jamais posto os pés fora do estreito mundo em que sempre viveu, pudesse saber dessas coisas que desvendam a civilização inteira, se bem que traduzidas na dicção fantasiosa de quem rejeita a história oficial ou de quem não teve tempo ou oportunidade de bebê-la, de quem não se deixa atrair pelo dizer nada dos fatos pontuais ou do rigor da cronologia ou tem a certeza de que as lições do tempo não se afeiçoam a lugares, pessoas ou coisas, firmando-se, isso sim, através das mensagens que varam o caminhar da história.
Será que por bênção dos divinos viventes do Olimpo, ou talvez por prodigalidade da própria Mãe-Natureza, foi-lhe escancarado um sacrossanto portal que a fez invadir a consciência universal? Será que, mesmo não singularizada entre os mortais pela obra dos prodígios, teria a sua não cultivada, porém luminosa inteligência, edificado-lhe imprevistas pontes que lhe permitiram sorver da tradição a memória nela embutida? Ou será que, com a consciência protegida contra o bombardeio das informações orientadas, e, assim não enceguecida pela escolaridade tantas vezes deformante, valeu-se do espírito liberto para enxergar, com o sem-freios dos não comprometidos, o magistério que imprimiu a corrente das eras, dia após dia, no fio das lembranças que se espalham pelo milagre genético?
Confesso não saber dizer.
Mas o fato é que, por debaixo das alegorias por vezes ingênuas que visitavam as fábulas que lhe povoavam a inspiração, assim como por sobre as empolgadas versejações epopéicas dos latinos e dos helênicos, ou ainda das eruditas composições literárias que se nutrem de tramas labirínticas, pulavam os símbolos em que se amoitam os temores e as esperanças humanas, a realidade de ontem, que é a de hoje, que é a de sempre, em que se debate o homem na procura do conhecimento salvador, aquele que lhe aponta o caminho da superação das suas próprias limitações, aquele que lhe dá o norte do alcance da felicidade, esta cuja construção é seu fim primeiro.
Afinal de contas, bem sopesadas as direções que nos são legadas pela memória da humanidade, ao sabor das experiências vivenciais e convivenciais que se foram acumulando, mesmo quantas não registradas pelas crônicas, até porque são os anais quase sempre ditados pelas conveniências do instante, o alerta que nos sacode não é aquele do sem-jeito, mas sim o da celebração da esperança redescoberta a cada passo, certeza que, vezeira no fabulário de D. MARIA SALU, levou JOÃO AZEVEDO a proclamar que: “ Há sempre uma grande esperança. A história do homem é feita de esperança”.
O mesmo JOÃO AZEVEDO que, debruçado sobre o empenho de ir Em Busca do Amanhã, não conseguiu nem tentou deslembrar, mas antes cuidou em testemunhar, ao se verticalizar na sua Oração do Mestre, que aprendeu ensinando aos pobres com os olhos na esperança.
Daí por que chego a tomar por certo, mesmo correndo o risco de me plantar em terreno de duvidosa solidez, que a história que se faz ciência, aquela coada pelos rigores metodológicos e domada pelo compromisso criterioso do registro crítico dos fatos, salta-nos como testificadora dos eventos e dos seus entrelaçamentos, revelando, através da avaliação de um ou de alguns, o pressentido sentido da corrente da existência coletiva.
A tradição, contudo, na medida em que ventrando a interpretação livre dos próprios agentes da história, faz-se depósito das conclusões que assistematicamente recolheram, esta se ergue em autêntico testemunho da experiência humana, muito mais, por certo, enraizada na permanência do aprendizado que emerge dos fatos, que na precária circunstancialidade dos eventos.
Ouso dizer, portanto, que enquanto nos dá a história convencional o elaborado perfil da evolução humana, mercê de um exercício reflexivo quase sempre deslocado do núcleo temporal dos acontecimentos, dão-nos os ditados e as lendas, as gestas e o cordelismo, os mitos e as fábulas, os arquétipos e os enigmas, enfim, que se cravaram no mundo da fantasia popular, o panorama real das convicções que, sorvidas das experiências do ontem, firmam-se nas expectativas do sempre, constituindo-se, no metafórico dizer junguiano, no rizoma, na centelha invisível que é o único impulso capaz de gerar novas paisagens no suceder dos fenômenos históricos.
De feito, não é na diversidade dos dias que se somam que se encontrará a janela que se abre para o desbravamento do mistério da história, mas é sim através das pisadas da história, aquelas impressas na torrente dos dias, que o sentido das realidades destes poderá ser finalmente descoberto.
Que se não desprezem, portanto, os ensinamentos que nos reserva o esforço racional da historiografia, mas que também não se menoscabe da profundeza da sabedoria popular, até porque já se tendo dito que a história é a mestra da vida, é na vida, por certo, que foi ela buscar a consciência que lhe esteia o magistério.
Sabença, demais disso, em que se escora a autoridade moral da coletividade, aquela realidade psíquica que somos naturalmente compelidos a enxergar mais rica e mais consistente que a nossa, a ponto de, no pensar de DURKHEIM, perante ela nos inclinarmos como se inclina o crente perante a divindade.
E ninguém mais do que JOÃO AZEVEDO, por detrás dos olhos de ximbra que, na memória poética de ARRIETE VILELA, iluminavam-lhe as faces por vezes afogueadas, deixou-se tão enterradamente seduzir por esta verdade, a ponto de sentenciar que: “Um povo não morre quando as gerações vão compreendendo seu passado e daí assumem sua alma”.
Convicção, reconheça-se, que mesmo por vezes traduzida com a incisividade dos que nunca dão trégua, nem mesmo de vez em quando, ao compromisso com a franqueza que por vezes incomoda, deixou colorisse o seu semear de professor, o seu operar de administrador público, o seu criar de cultuador das letras, o seu peregrinar, enfim, de homem acorrentado aos valores sorvidos da experiência vivida ou recolhida.
Tanto assim é, que, mesmo ainda de longe enxergando a morte, que para ele consubstanciaria a transmudação da vida, guardava o sonho de que, chegada a hora, tivesse a ventura de olhar para a trás e descobrir-se sempre a construir caminhos, pois que o só abri-los é já desmanchar-se na celebração da esperança.
E foi assim que, mercê do seu exemplo de vida e não do delírio do poder, findou por fazer valer o respeito dos coevos e o reconhecimento dos pósteros, o que dá razão a HONORÉ JOSEPH MÉRO, quando, ao oferecer à Madame La Contesse de Noailles o seu épico Cosme de Médicis, Grand Duc de Toscane , foi firme ao recordar-lhe que:

“Il ne suffit pas, pour s’attirer l’hommage des hommes, d’occuper un rang éminent, il faut encore savoir s’y distinguer par son propre mérite (...) “ (Paris, Gueffier, 1774)

E mais :

“S’il est beau d’être loué, c’est lorsque l’éloge, loin d’être le tribut de la grandeur, est le prix d’une vertu solide (...)“(idem, ibdem)

Sim, JOÃO AZEVEDO, ratificando a lição do poeta, afirmou-se pelo brilho dos seus méritos pessoais e não pela solenidade dos cargos relevantes em que se viu investido. E se é louvado, é da louvação dignificante que se faz destino, pois que inspirada na confirmação dos seus talentos.
Enfim, é mais do que certo que ele nunca nem viu D. MARIA SALU, e ainda bem mais induvidoso que jamais abarcou-lhe a sabença debulhada em histórias de trancoso.
Mas também não tenho dúvidas de que, nos anos em que ainda inflamadas as feridas abertas pela demência do penúltimo anticristo, quando JOÃO ainda esperava o tempo de se ver taludo, escutou ele, de beiço caído, sem nem piscar os olhos, histórias que mesmo declamadas por outra mulher do povo, embora que sem o sal da figura agreste de D. MARIA SALU, dos seus quartos largos, dos seus peitos moles repousados sobre as curvas dos joelhos, do rabo da saia que esticava até roçar os calcanhares estriados pela crueldade do chão em brasa, diziam das mesmas memórias que se enterraram na corrente das eras, construindo a alma que percorre as gerações.

Discurso de Posse na Cadeira nº 8 do Instituto
Histórico e Geográfico do Estado de Alagoas,
Proferido em 27 de novembro de 2001.
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