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Contos-->Despejo -- 23/06/2000 - 16:44 (Magno Antonio Correia de Mello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Calor sufocante, corpo moído, desânimo. Esperara angustiada por Andréia Maria. Quando a amiga chegou, faltou-lhe coragem, permaneceu calada.

Em silêncio continuou longos, medrosos minutos. Afinal decidida a quebrá-lo, murmurou:

- E então? Como foi?

Andréia nem ameaçou responder. Luísa não insistiu. A voz de Andréia Maria se misturou à pasmaceira:

- O almoço tá pronto?

- Gelado.

Andréia apanhou um prato, ajeitou as panelas e acendeu o fogão. Muda feito um planeta, guardou a caixa de fósforos e se encostou na geladeira.

Cinco minutos depois, apagou as chamas, mas não se serviu. Acomodou-se na poltrona, sem o mínimo apetite.

Luísa, inerte, fitava o teto, ou lugar algum. Cada pedaço do conjugado era como um membro que lhe cortariam. Corroía-se de autopiedade. E invejava o sangue frio de Andréia.

Andréia Maria... Sobressalto, seguido de pânico maluco, pavor de não poder mais apalpá-la, beijá-la, fazer amor com ela... Correu para junto da amiga, agarrou-a com força, por milagre não a esmagou.

A outra não reagiu. Luísa se conformou com o fracasso. Sentou-se à mesa. Andréia Maria escorou as mãos nos ombros da amiga.

- Come. Amanhã, nem sonhar com essa mordomia.

Luísa apertou as pálpebras e repeliu os dedos da companheira. Andréia Maria desaprovou a rejeição batendo os braços na cintura. Irritada, pegou uma das panelas e começou a devorar o conteúdo com uma velocidade imprudente.

Suportou inúmeras garfadas até um vômito que veio sem lhe dar tempo de alcançar o banheiro. Terminada a obra, o chão imundo, baixou os olhos, temendo enfrentar a desaprovação de Luísa. Cega, num quarto escuro, pintado de preto, amaldiçoou-se pela milionésima quinta vez no dia.

- Eu limpo - quis tranqüilizá-la Luísa. - Num segundinho.

Um sorriso se esboçou nos lábios de Andréia. Era o primeiro em semanas.

- Precisa não. Quem preparou a forca que se esgane.

E, enquanto cumpria a sentença:

- Você me ajudaria se deitasse e dormisse: não pregou o olho, essa noite... Na hora de ir eu te chamo.

Luísa acatou os conselhos da companheira. Depois de três passos de cortejo no sentido da cama, despencou nela como um túmulo na cova. O cheiro de vômito piorava a morbidez. A janela aberta aumentava a vontade de morrer.

Luísa tentou ficar de bruços. Desejou chorar e nada. Tornou a se mexer: de lado, de costas, segurando o travesseiro, sempre a mesma insatisfação, a mesma ansiedade, o mesmo desassossego.

Roeu as unhas, encheu o cabelo de cachinhos, mordeu a camisola. Exausta, tensa, no ponto limite entre a sanidade e a loucura, o leve tic-tac do reloginho de parede, as gotas d água pingando na torneira, tudo soava como um estrondo terrível na sua consciência insone.

Andréia Maria não aparentava notar o padecimento de Luísa. De um tombadilho alagado, comandava o navio afogando-se em si mesma. Não lhe importavam Luísa ou o barco. Inquietava-se com seu próprio desengano, sensação de esvaziamento, cansaço. Luísa se danasse.

A quem pensava enganar? Luísa se danando, Andréia também se danaria. Impossível imaginá-las desse modo, separadas. Nada lhes era exclusivo. Possuíam quatro braços, quatro pernas, dois pares de olhos. Cada uma delas era uma parte a mais do corpo da outra. E a dor de Andréia doía em Luísa, gerando novas dores em Andréia, atingindo Luísa e retornando a Andréia, num círculo vicioso enervante.

Passadas quase duas horas sem sombra de sono, Luísa resolveu tomar banho. Despida, transpôs com extremo sacrifício a distância entre a cama e o banheiro. Até a água do chuveiro provocava-lhe dores nas costas.

Concluído o banho, vestiu-se e deixou-se derrotar pela irreversibilidade da catástrofe. Sentia-se doente, em coma, sopro de vida mantido através de aparelhos.

Negativo. Basta. Chega de se lamentar. Seria forte. Venceria os inimigos, os bandidos, os carrascos, sobreviveria.

Ou saltaria da janela, cada vez mais escancarada.

- Andréia, fecha a droga dessa janela, fecha!

- Com esse calor, preta?

- Fecha, amor, senão eu me mato! Eu me mato! Eu me mato!...

Andréia Maria não se alterou.

- Larga de besteira e senta aí.

Luísa cedeu. Verdadeira estátua, apenas aguardava. Andréia mantinha a iniciativa de gestos e palavras.

- Cadê o pente?

- Em cima da cama.

Burrice suicidar-se. Matar um defunto? Atirar num cadáver?

- Idéia mais sem pé nem cabeça! De onde você tirou essa tontice, Luísa?

Era Andréia quem penteava seus cabelos? Como descobrir? Tudo lhe parecia distante, nebuloso, intocável. Há pouco, havia chão sob seus pés, agora...

Andréia Maria estalou os dedos.

- Benzinho, falei com você.

Luísa acordou. Arrancou o pente das mãos de Andréia, colocou-se em ordem num piscar de olhos. Ágil, abriu a bolsa procurando por batom, revistou-a em busca de Luísa e não estava lá.

- Perdi!

- Perdeu o quê?

- Perdi a Luísa...

Andréia Maria aproximou-se da companheira. Cobria o rosto dela com as mãos quando perguntou:

- E a mim? Você me perdeu?

A troca de olhares em seguida foi a senha para que se beijassem com sofreguidão. Pouco depois, deixaram o conjugado sem que uma única palavra lhes saísse dos lábios.

Chegaram à rua na mesma mudez. Eram uma ilha de silêncio num oceano transbordando de tumulto e confusão. Os letreiros anunciavam desesperos, os ambulantes vendiam desatinos, os mendigos esmolavam desvarios.

Como de hábito, a multidão se acotovelava, tangida por uma inexplicável necessidade de chegar não se sabe onde, de lutar por sabe-se lá o quê. Luísa e Andréia não passavam de dois insetos a caminho do esmagamento.

Em frente ao sinal vermelho, diante de uma fila de automóveis parados, Luísa escolheu um deles e acertou-lhe uma bolsada no pára-brisa. O motorista sequer se interessou em saber do que se tratava. Ao abrir o semáforo, colocou o carro em movimento e fez com que a segunda investida de sua agressora golpeasse o vento.

Luísa desabou na calçada. Andréia Maria ficou furiosa.

- Bonito, hein? Que papelão...

Entretanto, comovida com a expressão desorientada da companheira:

- Foi nada não, pequeninha. Levanta daí. Deixa pra lá...

Ergueu a amiga com desvelo, cuidado, enorme carinho. Luísa era a razão que lhe restava para existir.

- Te amo, Luísa, te amo muito! Fica assim não!...

Luísa esfregou o dorso da mão esquerda na testa e recolheu os cacos de suas forças. Voltou a ser grão de areia no deserto superpovoado.

Caminhavam escorraçadas. Perseguidas por cada pedestre, atropeladas por todos os veículos, humilhadas por uma conspiração infame de edifícios. Covardia. O universo contra duas pessoas.

Apitos, britadeiras, buzinas, um inferno. O demônio, sentindo-se em casa, estendido com todo conforto no sofá, pernas em cima da mesinha de centro, ordenava: "Jarbas, meus chinelos!" Bastardos e submissos, Jarbas ou qualquer passante, ninguém vacilaria em buscá-los.

Andréia Maria estacou perto de uma lanchonete. Desnorteada, pretendeu entrar. Luísa puxou-a a tempo.

- Com que dinheiro?

Andréia não se agüentava em pé.

- Sobrou não, preta? - um abraço de Luísa evitou que caísse.

- Vem, te apóia em mim. Dá pra alcançar aquele banco?

- Não sei. Parece - Andréia replicou, tentando focalizar a Luísa certa.

Eram milhões de Luísas. Em jejum forçado desde o café da manhã do dia anterior, Andréia perdera a capacidade de distingüir uma joaninha de um hipopótamo. Se pelo menos não tivesse vomitado o almoço...

Uma das Luísas arrastava-a para um banco de praça:

- Pega sanduíche pra você. Tem um monte na minha sacola.

Custoso filtrar a voz da amiga. Um labirinto de sons embaralhados saltava entre seus tímpanos como se fosse uma bola de tênis rebatida com intensidade cada vez maior. Andréia esticou os braços e apanhou os sanduíches com uma avidez de mendiga.

Luísa apiedou-se dela. Menos, porém, que de si própria. A idéia de suicidar-se não a deixava em paz um só minuto.

No local em que se encontravam, tudo parecia mais fácil. Bastava fitar com ódio os prédios ao redor da praça. Não demorariam a desabar. Aniquilariam Luísa e, como brinde, levariam uma infinidade de cafajestes junto. Bando de cretinos. O castigo seria bem merecido.

Andréia deixou pela metade o quarto sanduíche.

- Eh, preta! - reclamou, reparando no desconsolo da amiga. - Pára com isso! Que cara mais triste!

Luísa recostou a cabeça no colo de Andréia.

- Cansaço - explicou. - Nem lembro quanto tempo sem dormir.

- Tenta agora. Quem sabe você não sonha comigo?

- Seria tão bom...

Não demorou muito, Luísa adormeceu. Sua expressão angustiada entrou numa breve calmaria, intervalo entre tempestades.

Andréia alisou-lhe o rosto. Voltara a confiar no futuro. O martírio não era interminável. Viveriam felizes como antes. Como sempre.

Luísa não repousava sob seus seios agora, mas durante o resto de suas existências. Acariciava as bochechas da companheira não por dois segundos, mas pela eternidade. Não a venerava até o dia seguinte: perpetuamente, perenemente, definitivamente.

Andréia era uma mulher decidida. Sob a aparência franzina, escondia-se uma couraça de jabuti, uma tenacidade de leoa, um destemor de onça. Encarava as pessoas em volta tomada do desprezo com que as majestades desdenham seus súditos. Tentavam subjugá-la. Seriam vencidos.

Afastou a cabeça de Luísa com cautela, sem ruídos ou movimentos bruscos. Levantou-se, ergueu os ombros, empinou o pescoço.

Era de aço. Distanciando-se de Luísa, pôs-se a percorrer os quarteirões como se fosse a última habitante de uma cidade arrasada. Um quarteirão. Dois quarteirões. Três quarteirões.

Os quarteirões terminaram por levá-la de vez para longe da amiga. Não faria sentido prosseguir sem Luísa. As frações de segundo do alto do primeiro viaduto até o asfalto foram suficientes para rever a companheira pelas mil e duzentas últimas vezes.

Recolheriam Luísa ao hospício três quartos de hora mais tarde. Andava em círculos, repetia palavras sem nexo, jurava amor eterno a um poste de luz.
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