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Artigos-->A SÍNDROME DE ASPERGER E A LITERATURA -- 27/07/2009 - 16:33 (Alzira Chagas Carpigiani) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
INTRODUÇÃO



Muito embora o transtorno autista tenha sido identificado, pela primeira vez, há mais de sessenta anos, por Leo Kanner, ainda hoje – na prática clínica – chegar a um consenso que estabeleça parâmetros para uma separação significativa entre o autismo propriamente dito e a Síndrome de Asperger não tem sido uma tarefa muito fácil, segundo alguns estudiosos.

Enquanto as principais características do autismo apontam para um transtorno com “um marcado e permanente prejuízo na interação social, alterações da comunicação e padrões limitados ou estereotipados de comportamentos e interesses” (KLIN, 2006),



"a Síndrome de Asperger caracteriza-se por prejuízos na interação social, bem como interesses e comportamentos limitados, como foi visto no autismo, mas seu curso de desenvolvimento precoce está marcado por uma falta de qualquer retardo clinicamente significativo na linguagem falada ou na percepção da linguagem, no desenvolvimento cognitivo, nas habilidades de autocuidado e na curiosidade sobre o ambiente. Interesses circunscritos intensos que ocupam totalmente o foco da atenção e tendência a falar em monólogo, assim como incoordenação motora, são típicos da condição, mas não são necessários para o diagnóstico." (KLIN, 2006)



É justamente por tratar dessa temática, ainda um tanto confusa no meio científico, que o autor inglês Mark Haddon surpreendeu ao publicar seu livro O Estranho Caso do Cachorro Morto, no qual explora as relações sociais, a comunicação e o comportamento de Christopher, uma personagem portadora da Síndrome de Asperger, que no livro é interpretada como “uma forma de autismo”.

O objetivo desse trabalho é possibilitar um simulacro de diálogo entre a ficção e a ciência, com o intuito de compreender melhor a linha de raciocínio e o “funcionamento” do cérebro de Christopher, cujas ações parecem tão reais em virtude, principalmente, da verossimilhança sugerida pela narração em primeira pessoa.



Breve resumo da história: Christopher John Francis Boone é um adolescente, que mora com o pai numa pequena cidade chamada Swindon. Seu objetivo durante quase toda a narrativa é encontrar o assassino de um cachorro chamado Wellington, de quem gostava, e que pertencia à sua vizinha, a Sra. Shears.

Christopher vive em harmonia com a ordem e a rotina diárias de seu mundo até o momento em que descobre que seu pai, em quem tem absoluta confiança, além de lhe contar graves mentiras sobre sua mãe também se revela o assassino de Wellington.

A mentira que desencadeia todas as transformações na vida da personagem: o pai havia dito a Christopher que sua mãe – que abandonara a família para ir embora com outro homem – morrera de um problema no coração. Quando o menino descobre que sua mãe está viva, muito bem de saúde e que mora em Londres, ele resolve fugir de casa e ir ao encontro dela – sozinho.



A LÓGICA SEDUTORA



Uma pessoa portadora da Síndrome de Asperger pode desenvolver “habilidades incomuns como cálculos de calendário, memorização de grandes seqüências como mapas de cidades, cálculos matemáticos complexos, ouvido musical absoluto, etc”. ¹

Os cálculos matemáticos complexos e a imensa capacidade de memorização se configuram nos dois principais focos da atenção de Christopher. Logo no início da narrativa, é assim que ele faz a sua apresentação: “Meu nome é Christopher John Francis Boone. Sei todos os países do mundo e suas capitais, e todos os números primos até 7.507”. Quando se refere à própria idade, ele diz que tem – no dia em que encontra o cachorro morto – “15 anos, 3 meses e 2 dias”.

Outro detalhe que chama a atenção do leitor desde o início da narrativa é o modo como os capítulos do livro são organizados. Eles são numerados de acordo com os números primos, iniciando-se pelo número 2 seguido dos 3, 5, 7, 11, 13 “e assim por diante porque gosto de números primos” – justifica-se a personagem.

A razão para esse livro ser escrito, surge a partir do momento em que Christopher encontra o cachorro Wellington morto com um forcado – uma ferramenta usada em jardinagem – enfiado em seu corpo. A mente lógica da personagem busca então respaldo na mente lógica de Sherlock Holmes para desvendar o crime e encontrar o matador do animal.

Mas como poderia alguém com tanta dificuldade de interação social fazer uma investigação desse porte? Investigar significa desenvolver algum tipo de comunicação com outras pessoas, coisa que um Asperger tem muita dificuldade para fazer. Mas parece que uma das mensagens que o romance tenta passar é que um Asperger não precisa necessariamente ser uma criatura “engessada”, condenada a viver presa dentro das limitações de sua imensa solidão. Um Asperger pode ter – como qualquer outro ser humano – inúmeras possibilidades de desenvolvimento desde que o meio e as pessoas que o cercam sejam facilitadores disso.

Nesse sentido, Christopher representa um modelo muito positivo de Asperger a ser observado, uma vez que ele consegue traçar um plano de ação em seu cérebro, pôr esse plano em prática e alcançar êxito na realização do mesmo.



O MEIO E A AGRESSIVIDADE



Christopher estuda numa escola que atende alunos com necessidades especiais e não tem amigos lá – aliás não ter amigos é outra característica marcante do autismo. O contato mais freqüente que ele mantém no seu espaço escolar é com Siobhan, sua professora. O papel que ela representa na história é de fundamental importância para nortear a vida social de Christopher. Com foco numa teoria de aprendizagem comportamental, Siobhan procura capacitá-lo para lidar com as próprias ansiedade e agressividade, e desse modo estabelecer uma convivência mais equilibrada com o outro.

Vejamos a seguir alguns trechos em que a ocorrência da agressividade, seja branda ou severa, aparece no romance:



"Eu me estendi de bruços na grama, outra vez, pressionei minha testa no chão novamente e fiz o barulho que o Pai chama de gemido. Eu faço este barulho quando tem muita informação entrando na minha cabeça vindo do mundo de fora. É como quando você está aborrecido e aperta o rádio no ouvido e o sintoniza entre duas estações, assim tudo que sai é um chiado, que nem um barulho vazio, e então você aumenta o volume, aumenta muito, para só ficar ouvindo o chiado e então você sabe que está seguro porque não pode ouvir mais coisa nenhuma.

O policial segurou meu braço e me pôs de pé.

Eu não gostei dele, me pegando daquele jeito.

E foi aí que bati nele." (p. 17)



"Siobhan entende. Quando ela me diz para não fazer uma coisa, ela me diz exatamente o que eu não devo fazer. E eu gosto disso.

Por exemplo, ela uma vez disse:

&
9472; Você nunca deve dar um soco em Sarah nem machucá-la seja como for, Christopher. Mesmo se ela machucar você primeiro. Se ela machucar você de novo, afaste-se, agüente firme e conte de 1 a 50, então venha aqui e me diga o que ela fez, ou conte a um dos outros membros da equipe.

Ou, por exemplo, como ela disse uma vez:

&
9472; Se você quiser brincar nos balanços e já houver gente neles, você nunca deve empurrá-los para fora. Você deve pedir a eles para brincar um pouco. E então você deve esperar até que eles tenham terminado." (p. 49)



"Conversar com estranhos não é uma coisa que eu costumo fazer. Não gosto de conversar com estranhos. Não é por causa do Perigoso Estranho, de quem falam na escola, que é um homem estranho que oferece doces ou convida você para dar uma volta no carro dele porque ele quer fazer sexo com você. Eu não me preocupo com isso. Se um homem estranho me tocar, eu bato nele, e eu consigo bater nas pessoas bem forte, de verdade. Por exemplo, quando dei um soco em Sarah porque ela tinha puxado meu cabelo, eu a deixei inconsciente e ela teve uma concussão e a levaram para a Emergência no hospital. E, além disso, eu sempre carrego meu canivete do exército suíço no bolso e ele tem uma lâmina serrada que pode até cortar os dedos de um homem." (p. 55)



"Mas o Pai me interrompeu e agarrou o meu braço, muito forte.

O Pai nunca tinha me agarrado daquele jeito antes. A Mãe me machucou, umas vezes, porque ela tinha um temperamento muito esquentado, o que quer dizer que ela ficava irritada mais depressa que qualquer outra pessoa, e ela gritava comigo com mais freqüência. Então, fiquei muito surpreso quando ele me agarrou.

Eu não gosto que as pessoas me agarrem. Nem gosto de ser surpreendido. Então bati nele, como bati no policial quando ele segurou meus braços e me botou de pé. Mas o Pai não me largou, e ele estava gritando. E eu bati nele de novo. E então eu não sei o que eu fiz mais." (p. 115)





DÉFICIT EMOCIONAL





Lidar com emoções, na maioria das vezes, implica em fazer uma leitura do que o outro está querendo nos dizer, das expressões faciais que o outro apresenta ao tentar se comunicar conosco ou ainda da maneira que o outro reage à determinada situação que possa nos envolver, mas para um autista esses procedimentos corriqueiros tornam-se mais complicados, visto que ele só consegue fazer uma interpretação literal daquilo que vivencia e, portanto se vê desprovido de alguns recursos indispensáveis para captar as sutilezas da vida social e, quando algo assim acontece, ele quase sempre se sente confuso, como demonstra o exemplo a seguir:



"Eram 17h54min quando o Pai voltou para a sala. Ele disse:

&
9472; O que é isto? &
9472; Mas ele falou muito tranquilamente e eu não percebi que ele estava irritado, porque ele não estava gritando.

Ele estava segurando o livro na sua mão direita.

Eu disse:

&
9472; É o livro que estou escrevendo.

E ele perguntou:

&
9472; Isto é verdade? Você conversou com a senhora Alexander?

Ele disse isto numa voz muito calma também, então eu ainda não tinha percebido que ele estava irritado.

E eu respondi:

&
9472; Sim.

Então ele exclamou:

&
9472; Puta merda, Christopher! Como você pode ser tão estúpido?

Isto é o que Siobhan chama de uma pergunta retórica. Tem um sinal de interrogação no final, mas não se espera que você a responda porque a pessoa que está lhe perguntando já conhece a resposta. É difícil reconhecer uma pergunta retórica." (p. 113-114)



A ativação da amígdala cerebral de um autista é pequena e é bem provável que essa disfunção seja a causadora de suas dificuldades emocionais e também de sua indiferença frente às situações de risco.

No romance podemos encontrar vários momentos relacionados às citadas dificuldades emocionais e alguns outros relacionados às situações de risco, às quais Christopher, muitas vezes movido pela ansiedade, acaba se expondo.

Apesar de a personagem conhecer e gostar muito do cachorro Wellington, sua descrição mecânica da cena em que ele encontra o animal morto, não expressa nem uma reação emocional:



"Passavam sete minutos da meia-noite. O cachorro estava deitado na grama, no meio do jardim da frente da senhora Shears. Os olhos dele estavam fechados. Parecia que ele estava correndo de lado, do jeito que os cachorros correm, quando acham que estão atrás de um gato, num sonho. Mas o cachorro não estava correndo nem estava adormecido. O cachorro estava morto. Havia um forcado de jardinagem atravessando o cachorro. As pontas do forcado deviam ter varado o corpo do cachorro e se cravado na terra, porque o forcado não tinha caído. Concluí que o cachorro devia ter sido morto com o forcado porque não consegui ver outros ferimentos no cachorro e não acho que alguém ia enfiar um forcado de jardim num cachorro se ele já tivesse morrido de alguma outra causa, como câncer, por exemplo, ou um acidente de carro. Mas não podia ter certeza disso." (p. 9)



O fato de não expressar emoção não condiz, tudo indica, com o fato de sentir emoção, porque um pouco mais a frente, lemos: “Eu gosto de cachorros. Fiquei triste de ver que o cachorro estava morto.” (p. 15)

Ainda com relação à dificuldade de expressar suas emoções, observamos no trecho a seguir, quando Siobhan – após ler o rascunho do livro de Christopher – toma conhecimento do relacionamento amoroso da mãe dele com o marido de uma vizinha, a Sra. Shears.



"E ela perguntou:

&
9472; Você vai falar com seu pai sobre isto?

E eu respondi:

&
9472; Não.

&
9472; Isso é bom. Acho que é o melhor que você tem a fazer, Christopher. &
9472; E então continuou. &
9472; Você fica triste por ter descoberto isto?

E eu perguntei:

&
9472; Descoberto o quê?

&
9472; Você fica aborrecido por ter descoberto que sua mãe e o senhor Shears tiveram um caso?

E eu disse:

&
9472; Não.

&
9472; Você está dizendo a verdade, Christopher?

&
9472; Eu sempre digo a verdade.

&
9472; Eu sei, Christopher. Mas algumas vezes nós ficamos tristes com algumas coisas e não gostamos de dizer a outras pessoas que estamos tristes. Queremos guardar segredo. Ou, às vezes, ficamos tristes, mas não sabemos realmente por que estamos tristes. Então dizemos que não estamos tristes. Mas estamos.

E eu repeti:

&
9472; Eu não estou triste.

&
9472; Se você começar a ficar triste por causa disto, quero que você venha conversar comigo sobre o assunto. Porque acho que conversar comigo ajudará você a se sentir menos triste. E se você não está se sentindo triste, mas somente quiser conversar comigo, tudo bem, também. Você entendeu?

E eu falei:

&
9472; Entendi.

&
9472; Bom, então.

&
9472; Mas eu não me sinto triste por causa disto. Porque a Mãe está morta. E porque o senhor Shears não está mais por aqui. Por que então eu estaria me sentindo triste por alguma coisa que não é real e que não existe? Isso seria estúpido." (p. 105-106)





A POSSIBILIDADE GENÉTICA



Segundo Jerusalinsky, em seu texto "Gotinhas e comprimidos para crianças sem história", no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), de 1994, houve um deslocamento do autismo infantil precoce “do campo dos problemas psíquicos para o dos transtornos invasivos do desenvolvimento e se declara que é uma doença de origem genética”.

A ficção parece concordar com essa possibilidade. Apesar do afeto e do cuidado evidentes, tanto o pai quanto a mãe de Christopher são pessoas de “pavio curto”, que também têm muita dificuldade em lidar com a própria agressividade.



"&
9472; Eu gosto muito de você, Christopher. Nunca se esqueça disto. E eu sei que, de vez em quando, perco a cabeça. Sei que fico zangado demais. Que eu grito. E sei que não deveria fazer isso. Mas é só porque eu me preocupo com você, porque não quero ver você metido em problemas." (p. 121)



"O Pai esfregou o rosto com suas mãos, empurrou o queixo para baixo com os dedos e olhou para a parede. Eu podia vê-lo pelo canto do olho.

Ele continuou:

&
9472; Eu matei o Wellington, Christopher.

[...]

E você sabe como aquele maldito cachorro ficou depois da operação. O merda virou um esquizofrênico. [...] Talvez se eu tivesse dado apenas um pontapé, ele teria fugido. Mas, que merda, Christopher, quando aquela droga daquela nuvem vermelha cobre minha vista... Meu Deus, você me conhece. Nós não somos tão diferentes, eu e você." (p. 164)



(trecho de carta da mãe para Christopher) "Eu disse que eu também não conseguia fazer diferente, e que eu tinha perdido a cabeça, só isso. E ele disse que se ele conseguia se controlar, então eu também devia poder controlar meu maldito temperamento." (p. 148)





CONSIDERAÇÕES FINAIS



A plasticidade cerebral é de uma adaptabilidade surpreendente. As sinapses neurais geram novas conexões, que direcionam o cérebro para novas aprendizagens. E isso é passível de acontecer no cérebro de todas as pessoas, sejam elas portadoras de síndromes ou não.

Então há que se pensar na possibilidade de futuro para os Aspergers no que diz respeito “a conseguir um bom emprego, independência e o estabelecimento de uma família” (KLIN, 2006) mesmo que não exista “nenhum estudo disponível que tenha estudado especificamente o desfecho no longo prazo de indivíduos com Síndrome de Asperger” (idem, 2006).

A ficção, por sua vez, usa tintas mais coloridas para pintar o futuro de sua personagem Asperger, que encerra assim sua aventura:



"E então, depois disso, vou para a universidade em outra cidade. Não será em Londres porque eu não gosto de Londres e há universidades em muitos lugares e não só em grandes cidades. Daí, vou poder morar num apartamento com um jardim, e com um banheiro direito. Eu posso levar Sandy², meus livros e meu computador.

Eu vou conseguir o Título de Honra Primeira Classe e vou virar um cientista.

Eu sei que posso fazer isto porque eu fui para Londres sozinho, porque resolvi o mistério de Quem matou o Wellington?, encontrei minha mãe, sou corajoso e escrevi um livro, o que quer dizer que eu posso fazer qualquer coisa." (p. 283)























NOTAS:

1 – Informação retirada de slide elaborado pela professora Simone de Oliveira Barreto.

2 – Sandy é o nome do novo bicho de estimação (um cachorro) , que Christopher ganha de seu pai no final da narrativa.

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