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Artigos-->Breve Apreciação do Teatro de Contrera -- 22/06/2009 - 07:28 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Somente uma pequena prova de amor: breve apreciação do teatro de Rodrigo Contrera



Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior





1. Introdução





Esse texto busca analisar a peça Somente uma pequena prova de amor, de Rodrigo Humberto Léon Contrera, dramaturgo chileno-brasileiro. Nossa hipótese é que a peça contém exibe e dramatiza, através do debate exacerbado a respeito de fatos políticos e sociais recentes, um determinado núcleo que a organiza: experiências traumáticas que marcam a memória de uma geração em torno de um evento significativo que afeta a existência de muitos seres humanos.

Supomos que Contrera trata de um fato central, o onze de setembro, (o setember eleven dos norte-americanos), mas a partir dele arrola outros fatos tão dramáticos e marcantes como aquele: a ditadura militar brasileira e chilena, a morte de Ayrton Senna, os atentados na Espanha, a morte de Jean Charles de Menezes, a Guerra do Iraque. Tais fatos passam, então, a organizar uma narrativa crispada que busca o sentido da existência humana, tendo como pano de fundo: 1) a possível inexistência desse sentido e o imenso cansaço que deriva de produzi-lo; 2) a dificuldade em acreditar em quaisquer conteúdos ou explicações a um destino comum coletivo para a humanidade ou para o Brasil; 3) a coisificação crescente do ser humano, que aparece como um desafio a ser vencido.

A última apresentação do texto, escrito e redigido por Rodrigo Contrera, ocorreu em vinte e quatro de maio de 2008, no ECAL (Espaço Cultural Alberto Levy). O elenco contou com Rycardo Moreno, Brunno Almeida, Rafael Fabrício e Rodrigo Contrera. Foi a estréia na direção e palco de Rodrigo Contrera, autor que já fez "Onde você estava? Fugindo", texto apresentado no festival Satyrianas de outubro de 2007. Num mundo em que "a bagunça invade nossa experiência a cada momento" (Beckett), e em que a morte se anuncia menos pelo choque e mais pela indiferença, o ser humano enfrenta o século XXI carente de crença e de afeto. Contrera postula que, menos do que acreditar em Deus, o homem não acredita mais em si mesmo; menos que aos outros, o homem recusa-se a amar a si mesmo. Esse é um dos temas de Somente Uma Pequena Prova De Amor, que o autor define como “exposição em quatro atos” e que traz quatro "personas", sem nome e sem rosto, que ainda insistem em estender a mão sem pedir nada a ninguém. Em comum a todos, o descaso para consigo mesmos. Em comum a todos, a aposta em que mantendo a palavra tudo se consegue.

Jornalista por profissão, ou seja, inicialmente treinado para narrar os fatos, Rodrigo dedica-se parcialmente ao teatro desde o ano de 2006. Recentemente, está pesquisando sobre clown e apresentou a peça O Nascimento do Palhaço. Rodrigo Contrera escreve crônicas e artigos para inúmeros sites há vários anos, tendo publicado bastante em sites na web tais como Usina de Letras. Ao entrar em contato com Gerald Thomas, Contrera descobriu-se dramaturgo. Thomas foi, por assim dizer, seu “pai” no teatro.



2. Rodrigo Contrera, encenador de si mesmo



A influência de Gerald Thomas em Contrera pode ser notada na peça Somente uma prova de amor pelo fato de encenar não o autor ou diretor, mas por desconstruir a onisciência no palco: em cena, o autor-personagem, encenando a si mesmo. Contrera oscila da máxima objetividade (coisificação e visão de si mesmo “de fora”, como uma coisa ou um outro) para a máxima subjetividade (Contrera cita a esposa, encena a si mesmo, suas emoções pessoais, tornando-se, ao montar a peça enquanto ator, personagem de si mesmo, encenador que encena a personagem do “diretor teatral”). Enquanto o conteúdo do texto oscila entre esses dois pólos, a linguagem busca ser a mais referencial e impessoal possível, linguagem nua de jornalista reportando a queda do World Trade Center. Contrera não acredita na identificação como forma de conhecimento, e sente ao mesmo tempo enorme repulsa pelo narcisismo em qualquer uma de suas manifestações.

No primeiro ato, a influência do Gerald é muita clara: o personagem/autor/diretor sendo questionado por uma desconfiada e provocativa voz off, que me parece, a projeção da consciência desse mesmo personagem/autor/diretor. Por isso, o espelho serve como metáfora pra essa sabatina do artista com ele mesmo.

Esse ato foi feito a pedido de Gerald Thomas, para apresentação em 15 minutos. A pequena peça deveria ser encenada nas Satyrianas de outubro de 2007. Na primeira versão, o ato consistia num diálogo entre o autor (Contrera) e Gerald Thomas. O espetáculo chamava-se Onde você estava? (Fugindo), Brunno Almeida ficou a cargo da direção e Rafael Fabrício e Renata Becker, das atuações. O Brunno - que na versão inicial estava elencado para o papel, e que deixou a cargo do Rafael - depois iria fazer o papel do homem, sob direção de Rodrigo Contrera. Este espetáculo virou "Somente uma pequena prova de amor" (o nome foi inventado por Contrera, no improviso, quando combinava a encenação, por volta de março ou abril de 2008).

O texto foi feito apresentado numa peça de Gerald Thomas pelo autor, duas vezes. A origem do texto é uma pergunta do Gerald a Contrera: "Do que é que você foge, Contrera?" Naquele dia, Gerald pediu-lhe um texto. Então ele fez o texto o Fugindo, como resposta: é simplesmente sua apresentação ao público e ao mundo, como um homem que foge de si mesmo.

A vida (e não a obra de arte, como para Gerald Thomas) na visão de mundo de Contrera, não tem sentido, é um acaso total. Sua peça organiza-se com base na ideia de que os grandes acontecimentos moldam as mentes e a percepção das pessoas, gerando muitas vezes enorme sofrimento, mas isso tudo é degradado pela coisificação que aniquila o sentido. A peça não tem preocupação em ser a estética do acaso total nem em ter “aura”: Rodrigo não teme se assumir um amador, abdicar de qualquer seriedade de sua peça. Adota uma atitude impassível, como se observasse como o espírito fora de si em projeção astral, assim como, por ser demasiado crítico, pode também recusar e refutar violentamente quaisquer considerações sobre qualidade.

Tendo no passado simpatizado com o mundo do heavy metal e se formado ouvindo bandas como Iron Maiden e Motorhead, Contrera não se preocupa em excesso com beleza, harmonia ou status de artista (embora a trilha sonora de sua peça seja somente música erudita do Leste Europeu, segundo nos pareceu; sua expressão é o grito de Munch, é protesto individual incomunicável como um grito parado no ar. Ele é muito consciente de tudo o que acontece ao seu redor, mas sua objetividade muitas vezes faz com que ele pareça afastado de si mesmo, desalmado ou frio.

Sua sensibilidade comporta quebras bruscas no sentido: de repente, Contrera se desanima e as coisas ao redor perdem em importância. Ele tem algumas iluminações, como se de repente compreendesse que algo expirou ou ele retirou daquela experiência todo o sentido possível, podendo encerrá-la.

Contrera, em sua peça, demonstra seu impulso para sentir visceralmente sua criação, vivenciá-la até a exaustão e o desespero. Seus textos são para serem lidos, vividos e seu maior horror são as masturbações mentais de literatos fracassados, daí sua tendência à “exposição”: a experiência teatral permite que um texto de Contrera seja “vivido por dentro” por ele mesmo diante do público e junto aos atores.



3. O Amor, morte, música, engenho de dentro: uma exposição de quatro atos



Contrera é um diretor extremamente detalhista, um verdadeiro demiurgo que deseja, obsessivamente, mesmo que por alguns minutos, reorganizar o mundo à sua imagem e semelhança e à sua maneira. A peça é resultado dessa organização, que ele mesmo sabe que é quente como um fogo fátuo. Enquanto organizador de seu mundo particular, a cujos cacos deseja dar sentido, Contrera pensa tudo: luz, som, palavras e gestos de seu personagem são minuciosamente pensados nessa peça que ele sente, profundamente, como uma exposição de seu eu mais profundo. Ele coloca as seguintes anotações sobre luz, cenário, música e “sujeitos” como preparatórias para montar a cena onde se passa o ato 1:



Cenário: (palco vazio. cadeira simples, de madeira, de espaldar reto, no centro do palco. espelho no fundo do palco, de aproximadamente 1,5m de altura, cobrindo praticamente lado a lado.) sujeitos(1: homem. não muito alto, não muito baixo. magro, muito magro. camiseta listrada horizontal, mangas curtas, de listras grossas de cor preta/branca. sentado numa cadeira de madeira comum, com espaldar simples, reto, bem no centro do palco. olha para a platéia, fixo. praticamente não se mexe. pernas paralelas, pés plantados no chão. praticamente não mexe os braços, que contudo não permanecem presos à cadeira) . (2: voz. homem. sem expressão, a não ser quando especificado) (...).(CONTRERA, 2006).



Embora radicando na primeira pessoa, Contrera fala também de uma consciência de geração: a lembrança do onze de setembro de 1973, dia em que o presidente Salvador Allende foi derrubado por um golpe militar, mesmo dia do ataque que destruiu, em 2001, as Torres Gêmeas do World Trade Center. O personagem, então, experimenta o roubo e sofre com ele, dando a entender que todo texto é intertextual, é produto de fragmentos roubados a outros textos. Logo, logo ele estará fazendo a pergunta fundamental que se fazem os que participam de uma mesma geração:



1 (tom mediano. fala inexpressiva. conta como se fossem fatos) eles me roubaram o 11 de setembro. hoje todo mundo lembra das torres. eu me lembro das bombas, lá no chile. disso, ninguém lembra. mas lembram do pinochet. (fade off repentino da luz). 2 (sem luz, voz que surge de algum lugar, de trás, dos alto-falantes, mas não de uma pessoa. tom inexpressivo, NÃO INQUISITÓRIO) o que você estava fazendo quando as torres caíram? (Grifo nosso). 1 (a luz forte reaparece de repente. tom inexpressivo) dormindo, desempregado. liguei a tv, vi aquele negócio em chamas. veio um avião bateu, ninguém falava nada. de repente, o negócio tremeu e caiu. na hora eu ri. não sei por quê (...) (CONTRERA, 2006).



Embora os fatos históricos sejam desdramatizados e contrastados sob a luz ultra-violeta da banalidade e do cotidiano, Contrera fez a pergunta fundamental que uma geração se faz quando encontra outros membros dela: “onde você estava quando o fato X aconteceu?” O fato “X” pode ser a crucificação de Jesus Cristo, a derrubada do presidente João Goulart, a Segunda Guerra Mundial ou o festival de Woodstock, mas a resposta vai definir quem é que está falando e qual sua posição diante da história. O personagem de Contrera não tem uma interpretação dos fatos históricos e coloca-se diante deles como um marginal ou quase autista. Ao responder a esses eventos, ele não gera sentido e sim cai nos abismos da subjetividade.

Para entender a peça, deve-se tratar do resgate do conceito de "geração" que impõe a consideração da complexidade dos fatores de estratificação social e a convergência sincrônica de todos eles; o conceito de geração não dilui os efeitos de classe, de gênero ou de raça na caracterização das posições sociais, mas conjuga-se com eles, numa relação que não é meramente aditiva nem complementar, antes se exerce na sua especificidade, ativando ou desativando parcialmente esses efeitos.

Rodrigo Contrera não se pretende porta-voz de nenhuma geração, apenas se define como autor bissexto, autor e intérprete-amador. O teatro, como toda prática social coletiva, implica uma dupla presença, essa dos atores de uma parte e a dos espectadores-ouvintes de outra parte. O reencontro, a conjunção e a troca entre essas duas presenças se inscrevem em um espaço. A arte de organizar esse espaço é a cenografia. O que acaba de ser dito serve para esconder que essa dupla presença que, dada em separado, não precisa ocorrer entre os atores e os espectadores. Em outras palavras: se os atores partem da obviedade dessa dupla presença, eles acabam se preparando necessariamente para atuar, para representar. Já os espectadores, se partem dessa dupla presença, tomada em separado, preparam-se, aprontam-se para presenciar essa representação. O espaço nessa medida é repartido ao meio: entre palco e platéia. E dessa forma - e só dessa forma - ambos grupos partem do pressuposto do espetáculo: do palco em que se representa para a platéia.

A dramaturgia de Contrera fundamenta-se no questionamento de que se realmente existe necessidade de se separar palco e platéia, de ambos os grupos se prepararem para os outros. Suas peças visam partir de um todo, abolindo a indistinção entre palco e platéia. Na primeira - Somente uma pequena prova de amor - a disposição do interrogatório com o espelho ao fundo visa colocar a platéia sob julgamento, algo que o texto também visa invocar.

Na segunda peça realizada por Contrera, O teatro é isso (Nascimento de um palhaço), quem se coloca à frente, no palco, onde também permanecem os espectadores, não é um ator, mas é o próprio autor, que brinca com sua própria imagem, colocando-se sob ridículo. O texto também invoca uma presença, chamando a atenção para o fato de que o autor está aí, mas qualquer um poderia estar. Ele defende a posição de que essa distinção entre palco e platéia foi construída, e nessa construção passou a ser utilizada para defender cisões: seja entre real e imaginário, seja entre teatro e vida, seja entre profissionais e espectadores, em suma, cisões que fazem do palco um lugar por excelência daquele que se dedica à representação, mantendo afastados os outros, que são ditos amadores ou que são mantidos à distância com o intuito - na melhor das hipóteses - de defender a integridade desse espaço - do palco, da arte - face à vida.

Na dramaturgia de Contrera, a enorme agilidade da luz e da música irá contrastar com os personagens relativamente parados, empenhados na luta contra contra a angústia de verem a si mesmos e ao mundo como objetos observáveis sem identificação afetiva. A peça finaliza sem deixar nada que se pareça com uma moral da história. Sobre esse ponto, citaremos um trecho de Torquato Neto, poeta com o qual Rodrigo Contrera apresenta algumas semelhanças estilísticas (estilo confessional, obsessão pelo não-sentido da vida):



A literatura tem a ver com a moral individual e a moral individual não interessa – não existe mais, nossa época exige a descrição de painéis e o close-up tende a não interessar nem como psicologia. Não precisaremos retornar ao teatro de máscaras porque, se queira ou não se queira, a massa onde praticamente nos perdemos já é máscara, já nos abriga e revela, é a supra-máscara. Planos gerais. Painéis. O homem moderno não existe como indivíduo, mas como tipo – e esses tipos não são tantos como todos nós. São relativamente poucos. Somente me interesso pelo tipo e cada tipo, classe, nas diversas sociedades massificadas, obedece a comportamentos mais ou menos standards, interesso-me por compreendê-los (estudá-los) e abandoná-los (TORQUATO, 2003, p. 327).



A peça de Rodrigo intenta discutir a noção de cenografia em espetáculos em geral e em seus espetáculos, em particular, visando chegar a questões que ele possa trabalhar aos poucos no palco. O teatro é por essência efêmero. Mas, seja ele uma cerimônia religiosa, como na Antiguidade grega e na Idade Média, ou um divertimento, como em Roma e na Itália renascentista, o teatro é a expressão de uma civilização, de uma cultura, de um pensamento. Essa expressão é em meio a um código de representação, inteligível para todos num determinado tempo e lugar. Voltando à temática de geração, verifica-se que os fatos marcantes se sucedem, seguidos de seus reflexos no eu do autor-intérprete:



2 (tom inexpressivo) onde você estava quando o ayrton senna morreu? 1 (a luz reaparece de repente) assistindo a um campeonado de karatê. dava para ver que tinha algo errado. ninguém falou nada na hora. eu não gostava muito do senna. mas foi difícil para todo mundo agüentar (...). (fade off da luz) onde é que você tava quando começou a primeira guerra no Iraque, em 92 (a luz reaparece) num hotel no interior de são paulo, a serviço. Trabalhava numa revista de assuntos rurais. eu me lembro: estava batendo uma punheta (...). Onde é que você estava quando estouraram aquelas bombas em londres e madri? 1 não tenho a menor idéia (pausa). Mas eu lembro onde eu estava quando mataram aquele brasileiro no metrô de londres. eu estava viajando, com a cris, no interior de são paulo. comprei o jornal, abaixei a cabeça, chorei um pouquinho e fui em frente (...). (CONTRERA, 2006).



Contrera oscilou, portanto, entre a contemplação não emotiva do onze de setembro, que somente faz o personagem-autor rir e a morte injusta de Jean Charles de Menezes, imigrante de origem mineira, que o toca: sua arte se faz na luta entre ceder à coisificação, integrando-se à reificação reinante e a lutar contra ela. A reificação, ou coisificação, é o contrário do reconhecimento social. Os sujeitos que vivem imersos no processo de reificação resultante de sociedades capitalistas perceberiam os elementos de uma dada situação somente sob o ponto de vista do benefício que eles poderiam conseguir para seu próprio cálculo utilitário egoísta. Isso ocorre porque, na troca de mercadorias, a tendência é ver o mundo circulante como “coisas” potencialmente lucrativas, onde seu parceiro de interação social é mero “objeto” de uma transação rentável. Os próprios recursos dos seres humanos passam, também, a ser “recursos” objetivos para o cálculo das oportunidades de lucro. A coisificação vira uma segunda natureza com a qual o autor-personagem precisa lutar. Até suas personagens não possuem nomes: são descritas no texto como “1” e “2”.

Mas o que seria uma visão não reificada do mundo? Seria um interesse pelo que mundo que fosse acompanhado pelos laços com os demais indivíduos. O teatro de Contrera deseja tirar o espectador dessa posição de mero contemplador indiferente da peça e da própria vida. Ele trata, a seguir, da escravidão, ou melhor, da fuga dela, o que equivale a uma fuga da reificação onipresente:



Fugindo eu consigo entrar e sair e sair e entrar. Fugindo eu posso ficar. Fugindo eu posso ir embora. Quem foge não precisa ser aceito. Quem foge pode tudo. (começa a andar, a passos lentos, aproximando-se do lado esquerdo de 1, que está fumando) Os escravos fugiam em direção ao litoral. Quem não podia ficava no caminho e fazia seu quilombo. Quem foge não pede remorsos. Quem foge olha pra frente. Quem teme olha pra trás. Quem foge fala manso. Quem foge bate forte. Eu fujo porque não tenho mais nada a perder. E sempre ganho porque só me resta fugir. (mais forte) O homem é livre e vive preso, diz Rousseau. Estou preso e vivo livre, digo eu. Preso a mim mesmo, de quem não consigo fugir (CONTRERA, 2006)



Paralelo ao procedimento de lutar contra a reificação, ainda que sentindo-a sempre muito presente em si mesmo enquanto necessidade de viver em sociedade sem crises de consciência nem tanto sofrimento, existe a linguagem metateatral que se evicenciou a seguir. Outro elemento ao qual Contrera recorre é citar que “vai colocar em minha peça” algo que, por ser nomeado naquela circunstância, já está dentro da peça. O metateatro foi um procedimento ao qual Pirandello deu grande evidência e pertinência no início do século passado. O ator questiona sua falta de lugar, pois no palco não se sente à vontade como ator, assim como platéia fica desejando subir no palco:



(Aproxima-se da borda do palco. senta-se, encarando os espectadores, um a um) (por volta de 2’34”, a música sobe, é preciso fazê-la descer, de forma a não encobrir a fala) Fico no palco para fugir da platéia. Fico no palco sem ser ator. Fico no palco e fico lá fora. Vocês me vêem agora e nunca mais. Pois quando me canso saio fora. E quando vou embora não digo adeus. E quando volto não digo: ói eu aqui, esperando um abraço. (levanta-se) Eu vou e volto. E como posso tudo sentem que fico. E como posso tudo sentem que vou. Um dia eu vou, para sempre. (anda em direção ao fundo do palco. a luz esmaecida não incentiva que o acompanhem com o olhar) Fujo sem parar adiantando esse dia, quem sabe. Fujo sem parar para morrer e ressuscitar, quem sabe. Fujo quando calo, quando falo, quando olho, quando viro o olhar. (pausa longa. sem expressividade) Só queria mesmo um amigo. (3’43”) Mas os amigos aparecem quando eu fujo. Porque eu fujo de mim (...). Todo mundo aceita quem não consegue fugir de si mesmo (...). (Ato 4 (música: 01 01 Faixa 1, de Msa Glakolskaya, de Leos Janacek, extremamente forte) (luz forte que inclui a platéia e os sujeitos, apenas por um instante. 1 vira a cadeira face o espelho, sentando-se frente a si mesmo. 3 vira-se para o outro lado de si mesmo. os movimentos, extremamente rápidos, não chegam a se completar, quando a luz desaparece. fim) (CONTRERA, 2006).



A intenção, conforme vemos acima, é criar um teatro sem artifícios e efeitos. A verdade da criatura humana é inalcançável, conforme podemos ver ilustrado acima, nos textos de Contrera, mas seus personagens teriam uma essência que, vista de fora, se aproximaria da caricatura. Se um homem não se revela totalmente a outro, por que a personagem se desnudaria para o intérprete? Na dramaturgia, esse conceito, ao invés de fechar a personagem em obscuridade, abre-a para uma série infinita de possíveis, sem o risco de a dissolução decompô-la em fragmentos identificáveis. O fluxo da vida, mostrado acima através dos eventos históricos (Pinochet, Lula, atentados na Espanha, morte de Jean Charles de Menezes) não fixa os personagens numa realidade fixa e imutável, ainda que eles prossigam numa mesma linha direcional.



4. Conclusão



Concluímos essa breve exposição verificando que Contrera iniciou sua carreira de dramaturgo dispondo de um universo muito próprio e raro de referências e obsessões, tendo realizado um espetáculo bastante ligado ao texto, o que lhe deu um quê de “leitura dramática”: espera-se, no futuro, que ele se emancipe um pouco do texto, tal qual faz Gerald Thomas, preocupando-se também com a cena e dando liberdade aos atores para incluírem “cacos” e idéias próprias.

Nossa hipótese foi que a peça aqui estudada, Somente uma prova de amor, possui como eixo organizador o estudo dos eventos que formam as gerações. A partir desse eixo, a dramaturgia do autor parte para inúmeras ramificações colaterais: a questão da reificação, a coisificação paralisante contra a qual seus personagens teimam em lutar uma batalha exaustiva e finalmente incerta; a busca do sentido da existência, principalmente diante dos grandes eventos históricos; o enorme cansaço que deriva da necessidade de conferir sentido ao mundo, mas sem poder ordená-lo à vontade, o que introduz o tema da fuga e da encenação de si mesmo; o questionamento da identidade eu/outro que acaba recaindo na divisão arte/vida e palco/platéia.

Finalizando, podemos dizer que Contrera muito bem soube criar um texto tenso e vívido, tendo respondido com agudeza diante da necessidade de gerar um sentido para uma vida individual que se sente como espectador de sua própria vida e custa a fazer a relação entre essa existência quase autista e os processos históricos que rugem e causam sofrimentos a milhares. Diante da tragédia de nosso mundo – e de nosso teatro cada vez mais submetido aos padrões da teledramaturgia televisiva e global – a obra de Rodrigo Contrera mostra uma coerente e intensa resposta do teatro experimental a um determinado contexto.

























5. Bibliografia:



CONTRERA, Rodrigo. Somente uma pequena prova de amor. Somenteumapequenaprovadeamor.blogspot.com. <>.

__________________. comentariosdocontrera.blogspot.com. <>.



GUINSBURG, J. Pirandello: do teatro no teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.



MELO, Rúrion Soares. Honneth e a reificação. Revista Mente, Cérebro e Filosofia. São Paulo: Duetto editorial, 2008.



NETO, Torquato. Torquatália, do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

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