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Contos-->Barreiras -- 08/08/2002 - 10:23 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




BARREIRAS




Impulsionado por um pedalar calmo e compassado, eu cortava o asfalto à beira de ruas estreitas.
Passava por casas comuns construídas com madeira fina e zinco. Todas erguidas com material leve.
Neste lugar as pessoas não as constroem pensando na durabilidade. A preocupação maior é que as casas sejam as mais seguras possíveis no caso de ocorrer um terremoto, acidente natural que é muito comum por aqui.
Margeando o caminho que eu percorria também havia muitos espaços abertos. A maioria deles alagados, onde o arroz brotava da água.
Neste país é muito comum a gente passar por arrozais quando se vai para o trabalho, se está passeando ou mesmo quando nos deslocamos da região onde moramos para conhecer novos locais.
Arroz. Por todo o Japão há sempre, seja qual for a região ou província, muitos pedaços de terra em que o arroz é plantado.
Quando cheguei aqui tudo era novidade que me deixava admirado, confuso e assustado. Saia para o trabalho sempre com alguém para me conduzir até ele, pois não sabia como me dirigir até lá.
As ruas não são como é comum no Brasil, reta em sua maioria, se cruzando e formando quadras quase sempre retangulares. Normalmente são tortuosas e quando não conhecemos a região em que caminhamos é comum se tomar uma direção e irmos parar em outro local, não aquele para qual nos dirigíamos.
As placas nas avenidas, nos restaurantes, nas lojas. Tudo escrito em kanji, hiragana e katakana, o que aqui me tornava em um analfabeto.
Além de analfabeto, pela falta total de conhecimento da escrita, eu me senti mudo e surdo.
Não adiantava falar que as pessoas não entendiam o que eu dizia e muito menos ouvir, o que me causava desespereo e irritação por não entender uma palavra do que era dito.
No terceiro ou quarto dia, não me lembro bem, aconteceu a primeira trapalhada.
Minha esposa, depois de abrir a geladeira e se certificar de que nela havia óvos, pediu para que eu fosse a um supermercado japonês, há alguns metros do apartamento onde estávamos morando, e comprasse óleo para fritá-los.
Eu fui. Lá, bastou nele entrar para a minha cabeça entrar em parafuso.
Aquele monte de produtos marcados com caracteres estranhos, comidas exóticas e de aparência nauseante - NATO: caixinhas de papelão contendo feijão azedo coberto por uma calda branca e gosmenta, TOFU: queijo de soja que depois eu descobri ter gosto de palha molhada - era impossível saber o que era o que.
Comecei a andar entre as prateleiras, olhando tudo com muita curiosidade, a procura do que a minha mulher pedira. Depois de vinte minutos de procura encontrei o que eu achei que seriam vidros de óleo comestível.
Havia frascos que eu imaginei serem de diversas marcas, pois seus rótulos eram diferentes. Alguns além dos kanjis neles impressos tinham também desenhos de girassóis, de folhas de oliva.
"É, isso deve ser óleo", eu pensei.
Comparando os valores impressos nas etiquetas de preço eu optei pelo mais barato. Peguei um dos frascos que não tinha nele desenho algum, só aquelas letras estranhas, e levei para casa.
Quando eu lá cheguei disse para a minha mulher que deixasse que eu fritasse os ovos.
Peguei a frigideira, nela eu coloquei o óleo que havia comprado e acendi uma boca do pequeno fogão.
Assim que começou a esquentar o conteúdo da frigideira começou a espumar.
Minha mulher olhou então, pela primeira vez, para o frasco de óleo que eu havia comprado e me disse, caçoando e dando gargalhadas:

- Bem, esse vidro que você comprou não é de óleo não. Você comprou detergente!

Passado uns quinze dias a trapalhada foi muito, mas muito maior.
Há dias que esperava por uma folga no trabalho para ir pescar em um rio que eu vivia namorando da janela de nosso quarto.
Em frente ao prédio de apartamentos em que morávamos passava uma longa avenida e atrás, corria paralelo, um grande rio.
Naquele dia eu peguei uma vara, algumas tralhas de pesca, uma garrafa de wisque e fui para a beira do rio. Caminhei por sua margem, em direção contrária a força da água, por uns quatro ou cinco quilômetros.
Quando encontrei um lugar, calmo e limpo a beira d"água, ali eu me sentei.
Uma hora depois - eu nada havia pescado e há muito que já desistira da vara e passara a contemplar embevecido o vôo de uma enorme águia -
resolvi voltar para casa. Juntei os objetos de pesca e com a vara nas costas, de chinelos, calção e camiseta eu empreendi o meu retorno.
Resolvi que não voltaria pelo caminho que viera.
Eu iria pela avenida que era paralela ao rio e aproveitaria para conhecer um pouco por ali - eu não sabia que a avenida que passava em frente de casa, um pouco à frente, se cruzava com o rio e tomava uma direção diversa.
Sai da beira do rio e me dirigi para a avenida que passava ao seu lado. Nela eu peguei a direção contrária a qual eu tinha vindo e comecei a caminhar.
Depois de andar mais de uma hora, percebi que alguma coisa estava errada. Ou eu já tinha passado por perto de onde morava, e não percebera, ou aquela não era a avenida que eu imaginava.
A noite se aproximava e com ela o frio que ela traria. Eu estava perdido. Não tinha nenhum documento e não levava comigo nem ao menos um papel que marcasse o meu endereço.
Após caminhar mais uma meia hora eu vi um posto de gasolina e resolvi ir lá pedir ajuda. Dois japoneses que lá trabalhavam não entenderam nada do que eu falava e eu muito menos o que eles diziam. Acabei acenando com a mão e indo embora.
Andei, andei...
Muito tempo depois percebi que eu tinha andado em círculo e que estava novamente em frente ao posto em que já havia em vão procurado ajuda.
Os funcionários do posto, assim que me viram, tentaram falar comigo. Não havia entendimento na tentativa de comunicação, quanto mais eles falavam mais confuso eu ficava.
De repente, eu percebi que só um deles falava comigo e que o outro estava dentro do posto com um telefone na mão. Tive certeza de que ele chamava a polícia.
Ao invés de esperar e receber ajuda eu me apavorei. Dei as costas e me afastei dali.
Ao chegar na esquina uma viatura surgiu e foi em direção ao posto.
Apavorei-me, virei a esquina, entrei em uma rua estreita e tortuosa e por ela eu caminhei com pressa. Fugi dali, ao invés de esperarar e receber ajuda, meu medo do desconhecido me levou a continuar perdido.
Passaram-se as horas. Escureceu e eu devia parecer um louco. Caminhava com pressa, suado e cansado, pela noite fria. Todo mundo com quem eu me encontrava me olhava e eu a cada momento me sentia mais apavorado.
De repente, o milagre aconteceu. Eu vi aquelas lindas bandeiras amarelas, tremulando ao vento da noite e iluminadas pelo clarão daquela avenida em que eu me encontrava perdido.
Todos os dias pela manhã a condução, que eu pegava para ir ao trabalho, passava em frente a um pachinco - casa de jogos muito comum por todo o Japão - que estava com os seus jogos em promoção. Essa promoção era anunciada em várias bandeiras amarelas com grandes kanjis vermelhos.
Eu estava salvo. Aquelas eram as bandeiras que eu via todas as manhãs. Naquela avenida, ali perto, ficava a minha casa.
Quando cheguei em frente ao prédio em que morava, cheio de euforia e contentamento, deparei com a minha esposa junto a dois funcionários da empreiteira que era a nossa contratante.
Ela chorava desesperadamente. Eles a consolavam e todos traziam estampado no rosto muita preocupação.
Quando me viram vieram em minha direção, todos falando ao mesmo tempo:

- Carlos! Onde você estava?

- Ô cara, puta susto que você nos deu.

Minha esposa, chorando copiosamente, se jogou em meus braços e balbuciou entre os soluços:

- Você está bem?
- Meu Deus, que susto você deu na gente.

Um dos funcionários falou para o outro:

- Vá até lá e avise o pessoal que ele está aqui.

Ele foi até perto do rio e gritou:

- Ei, podem parar de procurar. O filho da puta está aqui e está bem.

Alguns momentos depois quando surgiram, vindos da beira do rio, meia dúzia de amigos da fábrica, munidos de lanternas, foi que eu entendi o que havia acontecido.
Quando eu não voltei para casa a minha mulher havia se apavorado e telefonado para a empreiteira. Eles, não imaginando o que havia acontecido, buscaram os funcionários na fábrica e organizaram uma busca pensando no pior. Que alguma desgraça tivesse acontecido comigo.
No outro dia e por toda aquela semana, eu fui alvo de chacota no trabalho. Até os japoneses da fábrica ficaram sabendo da história e deram gargalhadas e caçoaram comigo.


Pedalando, na volta de meu passeio matinal dos domingos, eu me recordo desses momentos com humor, mas quando os vivi foram difíceis e aterrorizantes.
Hoje eu vou a um shoping e é natural tanto tomar um sorvete com as crianças como ser atendido por uma balconista japonesa quando estou a procura de uma jóia para presentear a minha mulher. Participo de uma comemoração na escola japonesa que os meus filhos freqüentam, pego um trem e vou passear na cidade vizinha, conheço muita gente e tenho muitos amigos japoneses.
No início quando aqui cheguei, há cinco anos atrás, as coisas eram diferentes e eram muito difíceis.
Muitas lágrimas eu derramei. Tive de ter muita força e lutar muito para enfrentar e vencer o preconceito e as barreiras que aqui encontrei.



CARLOS CUNHA








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