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Artigos-->O teatro de Gerald Thomas -- 31/03/2009 - 21:42 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Teatro Pós-Moderno de Gerald Thomas: Uma Antropofagia Wagneriana?



David S. George



O teatro pós-moderno de Gerald Thomas examina o controvertido encenador como o principal introdutor teatral no Brasil do pós-modernismo internacional. Seus espetáculos são cheios de colagens a-históricas e fragmentos estéticos nos quais todas as artes estão representadas. Como ele mesmo sempre fala, porém isso não leva à síntese wagneriana de todas as artes (gesamtkunstwerk ou obra de arte total), mas ao que ele chama obra do acaso total (gesamtglückfallwerk). Tal conceito se refere nitidamente à antropofagia de Oswald de Andrade, a arte de desconstrução e o que se estuda no presente ensaio é a maneira como Gerald Thomas desconstrói a ópera wagneriana, incorporando-o ao seu teatro à moda antropofágica.



O Brasil agora está há mais de dez anos em sua última experiência democrática. A última experiência durou duas décadas, de 1945 a 1964. Durante esse período, o teatro passou por grandes transformações, assim como enormes mudanças na arte teatral que colocaram os dramaturgos nacionais em destaque e com razão.

Se alguém fosse avaliar o panorama do teatro brasileiro através das revistas acadêmicas norte-americanas, o silêncio que elas trazem poderia indicar que pouco aconteceu no último período democrático no Brasil. Ainda é o teatro criado durante a ditadura, em particular o trabalho engajado dos anos 60, que continua a ocupar a mente dos estudiosos . Isso é curioso, porque o último período da democracia foi tão fértil em temas teatrais quanto o intervalo democrático anterior. A lacuna entre o fervilhar do teatro e o silêncio dos acadêmicos traz essa questão: como e de que forma o teatro emerge das cinzas de uma política de repressão estatal? Essa é uma questão complexa, a qual eu tentarei responder em parte durante o decorrer desse artigo. Eu começo por afirmar minha visão de que a falta de censura, de um lado, e a remoção das exigências do protesto e da pureza ideológica, de outro, deram origem a alguns tipos de forma e atividade teatrais que o Brasil nunca experimentou no passado. É verdade que a democratização silenciou alguns membros da geração engajada, que não mais possuem uma causa política tão poderosa para motivar sua arte.

No entanto, na ausência das pressões da perseguição da direita e seu duplo (döppelganger, para usar a terminologia sinistra de Edgar Allan Poe), a esquerda com sua patrulha ideológica, foi enfim permitido que florescesse toda uma miríade de formas teatrais, assim como a experimentação pôde se desenvolver livremente, e todas as vozes tiveram a oportunidade de se fazerem ouvidas no mercado das idéias artísticas. Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo brasileiro, censurado por sucessivos governos e deixado de lado pela esquerda, agora encontrava uma nova casa nos teatros de seu próprio país.

A partir da redemocratização, temas da patrulha ideológica formalmente consideradas como a província do teatro “alienado” passaram então a ser privilegiados: feminismo, identidade sexual, questões psicológicas, o indivíduo, a sociedade e a religião são alguns exemplos. A comédia de costumes, obscurecida por décadas apesar de estar firmemente enraizada no solo teatral brasileiro, realizou um impressionante retorno. Clássicos estrangeiros, especialmente as peças de Shakespeare, passaram a não mais sofrer do estigma de “imperialistas” e passaram a ser largamente apresentados. Companhias teatrais importantes, como, por exemplo, o Grupo Macunaíma, dirigida por Antunes Filho, consagraram Antunes Filho como o principal vencedor da nova geração de diretores que são duplamente preocupados com a cenografia, a direção e a autoria do processo todo, conhecidos como encenadores. O equivalente mais próximo nos Estados Unidos (alguns dizem seus modelos) seriam Robert Wilson e Richard Foreman, cujo trabalho traz as marcas do pós-modernismo: uma mistura de alta cultura e cultura pop, mistura de gêneros, reciclagem e desconstrução de séculos da arte ocidental, colocando o criador artístico no centro do trabalho (artista como sujeito). Os encenadores brasileiros incluem Bia Lessa, cujos trabalhos mais conhecidos são suas adaptações literárias: Orlando de Virgínia Woolf, Jornada para o Centro da Terra, Cartas Portuguesas, esse último sua adaptação desse clássico do século dezessete da literatura portuguesa, também conhecida como Letras Portuguesas, baseadas nas cartas de uma freira, irmã Mariana Alcoforado. Ela também colocou no palco seus trabalhos visualmente concebidos, tais como Exercício Número 1:



O primeiro impacto do espectador de Bia Lessa costuma ser visual. O aproveitamento do espaço aéreo do palco enquanto zona de imprevisíveis interferências (via papel picado, como no Exercício Número I, via folhas, areia, água, pedras, como em Orlando) ou enquanto lugar para desenhos diversos com linhas e cordas no vazio, como as que atravessam e rabiscam o palco em Exercício Número 1 (SUSSEKIND, 44).



Daí o palco propositadamente sempre “sujo” de Bia Lessa. Outras figuras significantes da nova geração incluem Gabriel Villela (que adaptou A Vida é Sonho de Calderón de La Barca e A Falecida, de Nelson Rodrigues), Márcio Viana, cujas peças bastante pessoais incluem Coleção de Bonecas e O Circo da Solidão; Moacyr Goés, assistente de Antunes Filho, mais conhecido por suas produções de Nosferatu, do Woyzeck de Büchner e MacBeth. Mas, se existe alguém que incorpora todas as tendências – e contradições – da última década, é Gerald Thomas.

Notório membro dessa nova geração de encenadores, Gerald Thomas lançou sua carreira teatral no teatro La Mama em New York. Em 1985, ele retornou ao Rio, onde nasceu e adquiriu boa parte de sua formação, tendo começado a deixar sua marca ao montar trabalhos de Samuel Beckett. Ele também dirigiu Heiner Muller, Shakespeare, Kafka, Mérimeé, Wagner, assim como suas próprias produções originais, como Matogrosso, Flash and Crash Days, M. O. R. T. E., O Império das Meias Verdades e Unglauber. No Brasil, ele trabalha com seu próprio grupo, a Companhia da Ópera Seca. Ele também passa um bom tempo em New York e na Europa, onde ele dirige muitas óperas.

Gerald Thomas atraiu muita atenção dos críticos e gerou debates apaixonados no Brasil, durante a última década. Delinear e codificar seu trabalho não é uma tarefa fácil. Ele claramente foi influenciado pelo pós-modernismo teatral internacional, um tópico sobre o qual eu escrevi várias vezes. Ele é também um produto do Brasil, por um lado de Antunes Filho, cujo visual estonteante e fusão de estilos nacionais e internacionais, durante os anos 80, forneceu uma base e um parâmetro para os diretores que se destacaram nos anos 90; por outro lado, Gerald Thomas foi influenciado por José Celso Martinez Corrêa, cujo Teatro Oficina, durante os anos 60 e 70, foi tão polêmico e controverso quanto o teatro de Gerald está sendo em seu tempo. “Que encenador atualmente representaria no teatro nacional o papel designado em outros tempos a Zé Celso?” Pergunta Ricardo Voltolini, para responder logo em seguida: “guardadas as devidas diferenças estéticas, há quem identifique em Gerald Thomas a figura do ‘transformador’ polêmico e líder de um movimento sem parâmetros no País, exatamente como o Oficina do passado” (Voltolini).

José Celso desconstruiu textos estrangeiros e ocasionalmente os brasileiros em prol de sua agenda esquerdista. O Sr. Thomas partilha a visão de Celso de uma inteligente e inovadora encenação. Uma evidência direta da ligação entre Thomas e José Celso é um artigo que Gerald Thomas escreveu, “O maior espetáculo da Terra” . O artigo efusivamente elogia a nova produção intitulada Ham-Let, falando sobre o retorno de Celso à sua plena forma, e critica aqueles que não o reconheceram. Celso, escreveu Thomas, “só perdeu a atualidade porque era umbilicalmente ligado a um momento social, a um movimento ideológico que se perdeu com a hegemonia do cinismo e da comercialização do underground e evaporou-se.”

Para entender o legado de José Celso, primeiro é preciso fazer referência a Oswald de Andrade, indiscutivelmente o maior teórico do modernismo, cujo Manifesto Antropófago renasceu com os princípios da antropofagia, um processo que eu chamei anteriormente de “potpourri Tupy”: “utilização não-filtrada de uma miríade de fontes, qualquer que seja sua origem, sem respeito pela integridade dessas fontes” (George, 1992, p. 77). Aquelas fontes incluem a primeira vanguarda européia (Ubu Rei e o seu décor futurista), Brecht, literatura clássica ocidental (como MacBeth e a história de Heloísa e Abelardo), ópera ítalo-brasileira, cultura popular norte-americana (histórias em quadrinhos, Groucho Marx, Shirley Temple), kitsch exótico e tropicalista criado por estrangeiros, mas consumido por brasileiros (como Busby Berkeley e seu musical com Carmen Miranda), circo brasileiro e motivos de teatro de revista, comédia de costumes, o trabalho do diretor Glauber Rocha, gravações musicais do repertório ocidental assim como do jazz americano até fragmentos brasileiros em vários estilos. A lista poderia prosseguir.

A grande quantidade de trocadilhos e referências culturais eram tão freqüentes como nas produções pós-modernas de Gerald duas décadas depois. Mas o propósito da multi-referencialidade de Gerald , com o estilo pós-moderno, era totalmente diferente de qualquer coisa que Thomas pudesse ter em mente. A produção de 1967 de O Rei da Vela foi apresentado seu potpourri de recicladas – para usar o termo pós-moderno – imagens para um fim específico e ideológico: a descolonização da cultura brasileira e sua concomitante emancipação da subjugação “imperialista”. José Celso e seus colaboradores também sua arte como meio de combate contra a ditadura militar. Seus temas, em outras palavras, eram externos e políticos. Não é somente uma ironia que a reciclagem que José Celso fez de formas culturais estrangeiras tenha sido interpretada por alguns não como resistência, mas como submissão ao imperialismo cultural. Apesar de Gerald Thomas não abraçar a agenda política do José Celso de 1967 – nem o José Celso o faz hoje em dia – o artigo de Thomas revela que ele respeita essa agenda nos limites de seu tempo. A visão social do encenador – ecologia, identidade sexual – corresponde às preocupações de muitos membros de sua geração. O que Thomas divide com Celso é um programa esteticamente revolucionário, especialmente multi-referencial e desconstrutor, ou seja, aquilo que hoje em dia se pode considerar como marco do pós-modernismo. E, como José Celso -- bem como o movimento tropicalista que ajudou a espalhar – Thomas foi denunciado por alguns críticos pelo seu alegado imperialismo cultural.

Pode-se dizer que Gerald Thomas recriou a antropofagia para os anos 90. O termo que ele usa para descrever sua estética é gesamtglucksfallwerk (obra de acaso total), uma homenagem pós-moderna para a síntese wagneriana de todas as artes ou gesamtkunstwerk. Assim como Oswald de Andrade – ele mesmo influenciado pela vanguarda de seu tempo – era a fonte da antropofagia de José Celso, seu poutpourri desconstrutivo, Richard Wagner providenciou a procura de muito da obra do acaso total de Thomas, na qual a síntese wagneriana vira fragmentação, colagem e desconstrução. “A expressão surgiu de um cruzamento do projeto wagneriano de ‘obra do acaso total’, síntese de todas as artes, e a frase do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, ‘todo caso é um acaso’. A ‘obra de acaso total’ de Thomas pode ser definida como uma disciplina estética não verbal” (VELOSO, 1995, n. p.). Gesamtgluckfallswerk, um potpourri pós-moderno de signos, é uma anti-síntese: não há fechamento, desenlace, resolução, epifania, catarse. Não pertence a nenhuma escola artística, como o Teatro da Crueldade de Artaud, expressionismo, surrealismo, que são fragmentos intertextuais para serem desconstruídos. O que quer dizer que essas escolas artísticas estão presentes na gesamtgluckfallswerk como signos para serem devorados, para usar a terminologia apropriada da antropofagia. O signo wagneriano ainda permanece central; é muito mais que um fragmento, e a identificação de Gerald Thomas com Richard Wagner é todo um traçado, uma construção elaborada com um determinado visual.

Aqui eu transcrevo uma anedota: em uma repercutida entrevista para um documentário da TV Cultura , Gerald Thomas descreveu Wagner como uma fonte de energia: um dia, preso num engarrafamento no Rio que era um pesadelo, Gerald colocou uma fita de Wagner e sentiu-se salvo daquela provação. Sua observação faz imaginar Brunhilde, cercada de fogo, sendo salva por Siegfried. A questão fundamental é essa: por que um grande autor, referência para o pós-modernismo, está tão ligado a um grande romântico do primeiro modernismo? Ambos são artistas revolucionários, ambos transformados e mesclados em seus gêneros artísticos, ambos tendo gerado furiosas controvérsias. Sua estética vanguardista, iconoclasta e desconstrutiva praticamente os une. O que Wagner desconstruiu foi a grande ópera do grande romantismo – que virou uma receita, posteriormente– explorando os limites das formas até então rígidas, eliminando a abertura – na maior parte – assim como a distinção entre cantar e falar. Wagner disse não gostar de ópera; seu interesse era o chamado “drama musical” e seu ideal era a Nona Sinfonia de Beethoven com sua síntese de música e poesia. A desconstrução praticada por Thomas e outros pós-modernistas querem dizer misturar gêneros; o encenador particularmente desmerece a noção de que é “diretor teatral”. Em suas palavras: “O que eu faço no teatro é cinema no palco. Eu faço questão de dizer isso quando me chamam de diretor (...). Não me confundam, não sou diretor, acho isso uma profissão fácil, decorativa. Eu sou um autor, da mesma forma que um cineasta é um autor. Ele coloca essas autorias no palco e tenho que encená-las senão não haveria quem as encenasse” (documentário da TV Cultura).

Ambos os artistas experimentaram notáveis sucessos e derrotas. Quando Wagner originalmente montou Tristão e Isolda, com seu romantismo cerebral, pensou que ia alcançar as multidões, mas naufragou (e virou inclusive uma das principais mercadorias do agora calmo território wagneriano). Quando ele tentou escrever uma ópera cômica, a ópera em cinco atos Meistersingers of Neurenburg (Os Mestres-Cantores de Nuremberg), sofreu a mesma fatalidade. Thomas também teve seus fracassos. Eu escrevi sobre isso no Império das Meias Verdades (1993): “uma confusa miscelânea de teatro do absurdo, mitos bíblicos (Adão e Eva) e narração pretensiosa saindo de grandes alto-falantes” (George, 1994, 140-141). Thomas mesmo admitiu que fracassou com uma produção chamada Don Juan, um texto de Otávio Frias Filho, baseado nas múltiplas versões do mito de Don Juan. A peça foi elogiada por pelo menos um crítico: “o sonho de Gerald ganhou uma luz sinistra e profunda (que) cria um trem de metáforas tão duras de suportar quanto a idéia da morte sem céu. Aí é que o espetáculo vira uma metáfora do nosso desamparo diante da utopia sexual (Jabor, n. p.).” Platéias, inclusive os produtores, ficaram chocadas e desconfiadas graças a uma “perversa” produção, que colocou Don Juan como um ginecologista impotente.

Os trabalhos de Gerald Thomas no teatro são uma mistura entre as obras wagnerianas e influências variadas. Ele montou óperas wagnerianas no Brasil e na Europa. Em 1987, ao montar O Holandês Voador, desencadeou uma tempestade de críticas e protestos, particularmente por suas supostamente gratuitas e anedóticas alusões a outras obras de arte: “Na montagem da ópera O Navio Fantasma, de Wagner (...) o diretor se deu ao luxo de se referir (...) a obras de artes plásticas no século XX” (Brandão, 32). Mário Henrique Simonsen, ministro da economia durante a ditadura militar, escreveu uma crítica ao trabalho de Thomas na revista Veja, atacando a peça por julgá-la confusa. Simonsen ficou especialmente irritado pela proliferação de referências culturais, pois para o ex-ministro, era absurdo o ato de Gerald de colocar no palco elementos incongruentes, tais como modelos da bicicleta de Duchamp e O Pensador de Rodin, assim como a cenografia que incluía até mesmo o Muro de Berlim, elementos que, de acordo com Simonsen, obscureciam e atrapalhavam o enredo. Nada disso era original, alegou Simonsen; era “psicodélico” e constituía uma falta de inspiração, não seria algo própria da arte e sim besteirol (Simonsen, 113-114). Logo em seguida, Simonsen quis processar Thomas por tê-lo chamado de ladrão. Depois, Thomas corrigiu para “ladrão de idéias” e acrescentou que Simonsen apoiou “militares fascistas”, afundando a economia do País e fazendo uma ameaça de processo que só poderia ter partido de alguém versado em repressão” (Simonsen, n. p.). Enquanto a visão de Simonsen era secundada por um grupo de críticos, outros comentadores viram a produção de maneira mais positiva. Por exemplo, Marília Martins viu a controvérsia em si mesma como uma abertura positiva da fechada e elitista elite que acompanha ópera no Brasil. Invocando a antropofagia de Oswald de Andrade para defender o Navio de Thomas, ela escreveu que “a encenação antropofágica desta ópera se apresentou como uma espécie de antimuseu que recusa o velho” (MARTINS, 41).

Wagner é um visitante freqüente aos palcos de Thomas. A última produção de 1989, intitulada Mattogrosso – um uso intencional de uma grafia arcaica – incluía colocar em cena um Titanic encalhado, com seu tesouro perdido, que se referia em parte ao navio naufragado em O Holandês Voador (The Flying Dutchman) (uma referência não somente ao Wagner, mas à montagem de Thomas da ópera). Mattogrosso referia-se às referidas primeiras e últimas partes da tetralogia Der Ring der Nibelungen (O Anel dos Nibelungos): Das Rheingold and Götterdämmerung (O Ouro do Reno e o Crepúsculo dos Deuses). A última parte, Götterdämmerung, o crepúsculo que precede a extinção dos deuses, possui especial significado para a produção de Thomas, pois lida com o crepúsculo da expansão do Ocidente, assim como a extinção dos mitos modernos. O herói Siegfried – da lenda medieval germânica – acaba com o dragão dourado escondido, assim como acorda a valquíria e amazona Brunhilde de seu sono encantado. Wagner não somente misturava os mitos, quanto também os recriava, assim como Thomas, por sua vez, recria os mitos wagnerianos. O herói é agora o protagonista Friedrich Ernest Matto, um Siegfried liquidado, “derrotista” que acorda as valquírias. Mas essas valquírias não conduzem o herói para o Valhalla; antes elas descem a um assustador submundo (o fosso da orquestra). Os seguidores de Siegfried são anões descritos como Nibelungos, os quais Gerald Thomas transmutou em Mitolungos – inscrições e desconstruções pós-modernas de sedimentos deixados pela arte ocidental – e que dançam samba no começo da produção.

Finalmente, é preciso ter em mente que Wagner encabeçou o desfazer de um movimento que durou muito e manteve uma hegemonia entre as artes de seu tempo: o romantismo. Ao mesmo tempo, seu trabalho marca o começo de outro período que se projeta na arte ocidental: o modernismo. O trabalho de Thomas corresponde a um outro momento de morte e ressurreição: a cruzada pós-moderna para desconstruir o modernismo hegemônico.

Outros exemplos de devoração internacional – para usar um termo do gosto do campo antropofágico – em Mattogrosso, incluem o cinema (Fellini), o drama europeu (García Lorca), pintura (Francis Bacon). A multi-referencialidade que caracteriza o trabalho de Thomas na peça Flash & Crash Days – Tempestade e Fúria (1991), Roberto Myers aponta para o elemento wagneriano quando ele escreve que o personagem da Mãe está “vestido como Brunhilde (...) com uma expressão tirada do tratamento cinematográfico que fez Fritz Lang do Ciclo do Anel” (Myers, n.p.). Eric Mitchell coloca, “Mamãe é uma figura tirada da tragédia grega (Mitchell n.p.), provavelmente uma referência a Medéia, que mata seus próprios filhos. A cena onde uma cabeça é decepada faz lembrar as inúmeras cabeças cortadas através da história da literatura do teatro (n. p. MacBeth, Salomé). Críticos sugeriram também outra fonte de inspiração: “estilisticamente, a peça de Gerald Thomas sugere que um show de clowns de Samuel Beckett banhado de surrealismo latino-americano” (Holden, n. p.). Apesar de que a atribuição de “surrealismo latino-americano” talvez seja fácil, constituindo uma resposta norte-americana automatizada para os fenômenos artísticos do sul da fronteira, a associação com Beckett está claramente marcada. Beckett é uma de suas mais constantes fontes de inspiração, e Flash & Crash deve muito a Esperando Godot, com seu infinita, circular, não-resolvida interpolação entre os dois protagonistas.

O internacionalismo de Thomas entrou na mira de muitos críticos, assim como José Celso nos anos 60. Além do mais, Thomas agravou a situação alfinetando seus críticos e toda a classe teatral. O teatro brasileiro, afirmou ele, é desesperadamente provinciano, atrasado e está moribundo. Ele também não foi o primeiro a fazer esse tipo de protesto. Nos anos 30, Oswald de Andrade chamou o teatro brasileiro de “corpo gangrenado”. Nos anos 60, continuando Oswald, José Celso ultrajou os conservadores em termos teatrais e políticos – alguns da esquerda – com sua produção O Rei da Vela e seu potpourri de fragmentos com fontes teatrais internacionais. O internacionalismo de Gerald Thomas levou muitos a tratarem-no com ressentimento tupiniquim xenófobo, como o crítico José Carlos Camargo, quando ele diz que “o Brasil, para Mr. Thomas, merece a mediocridade de seu público e a estagnação de sua cultura, enquanto as artes avançam a cavalgada no mundo civilizado. A solução é, então, levar Mattogrosso para esse mundo” (Camargo, n.p.)

Por outro lado, é hiperbólico dizer que Thomas faz o único teatro internacional no Brasil, uma vez que muitos artistas participam do processo de trocas culturais e auxílio mútuo. Dentre os “hiperbólicos” está Marcos Veloso: “Ele produz o único teatro internacional feito no Brasil (...). A maior crítica que o teatro nacional pode receber vem do teatro de Gerald Thomas. Implodindo um continente com complexo de inferioridade e mostrando a mediocridade dos dramas domésticos” (Veloso, 1995). É fácil notar que o teatro brasileiro precisa de uma infinidade de fontes internacionais, mas também precisa manter suas tradições nacionais, como faz Antunes Filho, cujos projetos no palco fazem do nacional internacional, assim como os realistas mágicos fizeram na ficção, até comédias “domésticas” como Porca Miséria de Caruso, que mantêm viva a tradição das comédias de costumes que falam diretamente para as audiências no bairro Bexiga em São Paulo e suas imediações. Todos esses fenômenos isoladamente apresentam um quadro de incompletude; juntos eles fazem a riqueza do cenário internacional brasileiro do período pós-ditatorial.

Toda a controvérsia que Gerald Thomas levantou demonstrou que a vanguarda, do modernismo para o pós-modernismo, continua a épater le burgeois, ou pelo menos seus membros continuam a se arrepiar quando se mistura a alta cultura com a arte Pop. James Brooke, falando sobre o Mattogrosso de Gerald Thomas, afirmou: “resumos nos jornais brasileiros de hoje em dia confirmaram que o Mr. Thomas e Mr. Glass talvez tenham alcançado o objetivo da vanguarda: assustar a burguesia” (Brooke, n. p.). O crítico do The Times, no entanto, não parou por aqui. A reação da imprensa estrangeira deu muita atenção aos mal-entendidos multiculturais.

A controvérsia gerada pelas produções de Thomas deram à imprensa de New York um pretexto para um pouco mais de indulgente condescendência para com o Brasil. O New York Times, nos artigos de Brooke e outros, exagerou a reação negativa às produções de Gerald Thomas. Outros comentários de Brooke incluem o seguinte: “depois da muito aplaudida estréia ter sido recebida friamente na segunda-feira, boa parte dos espectadores parece duvidar até mesmo do fato de que o tema da ópera seja mesmo a destruição ambiental”. Brooke falha ao informar que boa parte da platéia realmente entendeu o tema da peça. Ele também disse que a peça de Thomas tem somente um solitário defensor entre os críticos, Marcos Veloso. Seria mais seguro dizer que a crítica ficou dividida, e que existiam outros defensores. Nelson Motta, por exemplo, escreveu que Thomas é o criador de “incontáveis momentos de beleza audiovisual, onde várias e refinadas artes se misturam e se integram, são séculos de pintura, de luz e sombra, de surrealismo, de escola flamenca, de dança e movimento, de música (n. p.). Num ainda mais etnocêntrico artigo de Brooke intitulado “No Brasil, ele está sozinho na vanguarda”, Alan Riding escreve sobre Thomas, dizendo que a “fúria de seus críticos trouxe o mundo teatral para o debate público pela primeira vez em duas décadas” (Riding n. p.). Riding deixa de lado a verdade. Nem o status controverso de Thomas nem as significativas contribuições podem ser negadas, mas o “mundo teatral” nunca desapareceu dos refletores no Brasil, apesar da repressão militar (que Riding acabou por culpar).

Um exemplo do que está sendo dito acima seria o próprio Teatro Oficina até 1971; muitas companhias mantiveram a chama da resistência acesa durante a longa noite dos anos 70, entre as quais Teatro Ipanema, Asdrúbal Trouxe o Trombone, e O Pessoal do Victor; dos últimos anos 70 até o presente, Grupo Macunaíma, sobre a direção de Antunes Filho, recebeu muita atenção nacionalmente e internacionalmente; essa movimentação levou o teatro a um destaque semelhante ao obtido pelos espetáculos de Gerald Thomas. Segundo Alan Riding, trata-se de algo mais: “os ataques ao teatro brasileiro recente valeram a ele um exército de inimigos querendo bloquear a sua incursão de diretor experimental para o mainstream cultural.” O Brasil tem muitos diretores experimentalistas atacando o status quo teatral; Thomas não foi bloqueado, e sim recebeu apoio cultural e financeiro do mainstream cultural. No final das contas, foi esse apoio que produziu ira e inveja nos outros diretores.

Sem contextualizar a natureza das controvérsias que cercam Gerald Thomas, descontextualizando-as e selecionando visões muito limitadas da recepção de Gerald Thomas na imprensa brasileira, os artigos do New York Times sugerem um movimento – talvez inconsciente –de reforçar o estereótipo de um Brasil atrasado e obscurecido, o país de Pelé, lambada, assassinos de crianças de rua e estupradores de mulheres. Uma esfera assim tão pouco conhecida para os norte-americanos como o “mundo teatral brasileiro” aparece na imprensa dos Estados Unidos somente quando um ocidentalizado salvador agita os nativos, trazendo luz à escuridão. Gerald não é nenhum salvador; o que ele representa é um maior esforço de manter vivo o teatro no Brasil. A contribuição específica de Thomas foi a de adicionar o estilo pós-moderno à diversidade teatral nacional, fazendo avançar o conhecimento teatral no Brasil como fizeram Oswald de Andrade e José Celso antes dele. Thomas, junto com Antunes Filho, ajudou incomensuravelmente o teatro brasileiro abrindo-lhes as portas para as influências internacionais, e também no sentido inverso, trazendo o teatro brasileiro para a arena internacional.

No fim das contas, trata-se de um antídoto para o nacionalismo cultural no qual artistas brasileiros tão freqüentemente descambaram. Gerald Thomas, por toda a sua reciclagem de signos e desconstrução de ícones ocidentais – em particular de Wagner -- quer antes de tudo elevar esses ícones, mais do que denegri-los. Ele procura blindá-los com arte brasileira, e fazer isso é praticar um genuíno multiculturalismo no qual “o trabalho da civilização é invariavelmente enriquecido na mistura com outras civilizações” (Brustein, 20). Dessa forma, Gerald Thomas, com sua revitalizada antropofagia, energiza o palco brasileiro, intensificando seus recursos, criando um alicerce a partir do qual os futuros artistas brasileiros poderão construir.



Tradução: Lúcio Júnior



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