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Contos-->A BORRASCA -- 30/07/2002 - 23:28 (Nelson Ricardo Cândido dos Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Beto estava à janela olhando para o horizonte além do rio, escuro pelas nuvens que se formavam já há três dias, sem no entanto se aproximarem da casa.
— Droga! — exclamou ele, não disfarçando sua ansiedade. — Por que não chove logo? Essa espera está me dando nos nervos.
Virando-se para a sala, deparou-se com a mãe à beira da cristaleira em que guardavam a bebida. Ela estava mais uma vez enchendo seu copo com um uísque ordinário. Beto caminhou até ela e segurou-lhe o pulso.
— Você não acha que já bebeu o bastante por hoje? — disse-lhe em tom áspero causado pelo nervosismo.
A mãe mirou-o nos olhos com raiva e, abrindo a outra mão, deu-lhe uma bofetada, dizendo:
— Cuide de sua vida!
Beto apenas fechou os olhos, segurando-se para não explodir. Não notou que a mãe, por alguns segundos, pareceu arrepender-se do tapa, tendo inclusive feito menção de tocar-lhe suavemente o rosto. Mas por apenas alguns segundo. Fechando a mão com força, encolheu os ombros rapidamente e levou o copo à boca.
Enquanto caminhava para seu quarto, Beto ouviu, pelo efeito da bebida, a voz um pouco enrolada da mãe atrás de si:
— Não pense que é só você que fica nervoso com esse tempo...
Ele voltou-se para ver se ela diria mais alguma coisa, mas a fala acabou ali. Beto foi para o quarto e começou a fazer exercícios de musculação. No levantamento de peso, colocou mais pesos do que o normal e não sentiu dificuldade em erguer os alteres.

O pai chegou ao anoitecer. Encontrou a esposa adormecida numa poltrona, com um copo aos pés.
— Pelo visto, não vamos ter jantar de novo — disse a Beto, indicando, com um movimento de cabeça, a mulher. Deu de ombros e foi pegar uma bebida na cristaleira.
— Eu preparei alguma coisa pra gente comer, pai.
Beto, ao dizer estas palavras, ficou olhando para o pai, aguardando um olhar de aprovação que, mais uma vez, não veio. Ele simplesmente murmurou um hum-hum e virou o copo de uma vez na boca, sem uma careta sequer pela força da bebida.
Durante a janta, da qual só os dois participaram, Beto tentava, como sempre, quebrar o incomodo silêncio em que se mantinha sua família há quase dez anos.
— Hoje o tempo fechou de novo, mas longe daqui.
O pai ergueu os olhos para o filho, baixou-os indiferente e continuou a comer.
— Três dias seguidos que escurece no horizonte, mas a chuva não cai, nem aqui nem lá.
Desta vez, o pai nem se deu ao trabalho de olhar para Beto.
— Se tem que chover, que chova logo. Essa espera mexe comigo.
Jogando os talheres com força dentro do prato, o pai ergueu-se da mesa e quase gritando, rompeu sua mudez, cuspindo alguns fragmentos de comida que estavam em sua boca:
— Você está sempre ansioso para que chova, não é? Deve te trazer muitas lembranças, não é? Foi graças a uma tempestade que você voltou a ser filho único. Pois se para você a chuva traz boas lembranças, para nos elas são péssimas. Nossas vidas acabaram naquela tempestade... graças a você...
O pai empurrou a cadeira, que tombou, e foi para o quarto. Beto ouviu a porta bater com estrondo. Não se levantou da mesa, quedando-se imóvel por cerca de duas horas. Ao levantar-se, estava lívido, após ter rememorado tudo o que acontecera desde o desaparecimento de seus dois irmãos mais novos durante aquela borrasca.

Beto tinha dez anos. Durante quatro anos havia sido filho único e mimado ao extremo pelos pais. Ambos não poupavam carinhos e atenções para o filho, que se sentia o centro do mundo, com todos os seus desejos prontamente realizados. Quando nasceu seu primeiro irmão, o ciúme apoderou-se de Beto, que demonstrava claramente uma aversão ao bebê. Um ano mais tarde, nasceu o segundo irmão e as atenções que recebia foram ainda mais divididas. Além de sentir a perda do carinho exclusivo dos pais, Beto era obrigado, muitas vezes, a tomar conta dos menores, enquanto a mãe fazia os serviços da casa. Essa obrigação fazia crescer sua antipatia pelos irmãos. Isso durante uns dois anos ou pouco mais. Com o passar do tempo, começou a achar graça nas brincadeiras dos meninos e a participar delas. Na época do desaparecimento, sabia que os amava e sentia-se naturalmente responsável por eles.
Vivendo à beira do rio, a família tinha nas águas e nas margens uma constante e agradável opção de lazer. Nos finais de semana quase não entravam em casa, lanchando e fazendo a sesta na grama, nadando ou andando e correndo ao longo do rio. Quando os pais não queriam caminhar com os filhos, Beto levava os irmãos pelas mãos e andavam a beira d’água, procurando alguma novidade que a correnteza pudesse ter trazido.
Foi num domingo à tarde que as crianças, após o almoço na grama, resolveram andar pela margem do rio, mais uma vez procurando novidades. Os pais ficaram estendidos nas esteiras, cochilando.
As crianças afastaram-se bastante de casa. Inesperadamente, o céu começou a fechar-se com nuvens pesadas e escuras que se movimentavam rapidamente, escurecendo toda a região. Beto pegou os irmãos pelas mãos e os três caminharam de volta à casa. No meio do caminho, caiu uma chuva forte acompanhada por uma ventania que machucava os corpos frágeis das crianças e dificultava-lhes a caminhada e o equilíbrio. Para apressar a volta, Beto propôs que fossem correndo. Largou as mãos dos irmãos e começou a correr e, por ser mais velho e ter pernas mais compridas, distanciou-se um pouco dos menores, mas olhando a todo instante para trás, forçando-os a aumentar a velocidade para alcançá-lo. Uma trovoada seguida por um raio assustou e cegou Beto, fazendo-o cair por terra. Levantou-se rapidamente e olhou para trás para chamar os irmãos. Mas não os viu. Olhou em volta e nada. Voltou alguns metros, gritando seus nomes, mas sem resposta. O desespero passou a dominá-lo e ele correu pela margem do rio, olhando para a terra e para a água, a ver se os encontrava, gritando os nomes sem parar. Quando duas mãos agarraram-no com força, obrigando-o a deter-se, Beto gritou a plenos pulmões.
— O que houve, Beto? Cadê seus irmãos? — gritava-lhe o pai para fazer-se ouvir, chacoalhando-lhe o corpo.
A tempestade que se intensificava tornou difícil ao pai compreender o que estava acontecendo. Quando finalmente entendeu que Beto perdera os irmãos, os dois, desesperados, juntaram-se na procura. Após uma hora, com a ventania derrubando-lhes a todo instante e com o rio começando a transbordar, os dois retornaram à casa.

Polícia e bombeiros foram chamados, mas não encontraram nada, nem naquele dia, nem nos outros, nem nunca. Nenhum sinal, nenhum corpo.
A mãe foi a primeira pessoa da família que mudou seu jeito de ser. Já no primeiro dia do desaparecimento, ela postou-se à janela na esperança de ver os filhos voltando para casa. Os dias foram passando, as buscas foram suspensas, mas sua esperança nunca morreu, mesmo após quase dez anos. O serviço da casa foi praticamente deixado de lado e, quando feito, o era de forma displicente. Para ajudar na espera, começou a beber. Ao menos a bebida fazia-a esquecer de tudo por algum tempo. O problema era que a embriaguez estava-se tornando constante. A espera transmudada em apatia fê-la distanciar-se de Beto e do marido, como se ambos tivessem também desaparecido com os dois filhos.
Enquanto a polícia e os bombeiros persistiram na busca aos filhos, o pai procurou manter-se controlado. Mas, com a suspensão das buscas, ele foi-se calando. Ficava horas mergulhado em seus pensamentos, em completo silêncio, inerte. Para quem o observasse, apenas a expressão do rosto se alterava, passando de discreta comoção a ódio. A lembrança da antipatia de Beto pelos irmãos começou a vir a tona, dominando os pensamentos do homem. Esqueceu-se por completo do carinho e da amizade do menino pelos irmãos nos últimos anos. Em sua mente passavam-se imagens de um crime, de um enterro em alguma parte próxima ao rio, naquela chuva que havia apagado as marcas da terra revolvida recentemente. Se tentava apagar esta imagem da mente, não conseguia apagar do coração a mágoa que sentia e que fazia responsabilizar Beto pelo acontecido. Para não fazê-lo verbalmente, calava-se. Mas, nessa noite, embora não completamente, seu ressentimento veio à tona e ele disse o que havia guardado por tanto tempo. Mas não se arrependia. Não era sem tempo! Talvez, com aquelas palavras, Beto fosse embora de casa e sua presença não lhe despertaria tanto rancor. Talvez, assim, pudesse voltar a ter uma vida, ou melhor, a ter vida.
Embora o pai não lhe dissesse nada, suas ações e suas expressões diziam a Beto tudo o que as palavras calavam. O menino teve de superar sozinho a culpa que sentia pelo desaparecimento dos irmãos e ainda se preocupar com o estado dos pais. Em poucos dias, estava se portando como um adulto responsável pela família. Ajudava a mãe nos serviços da casa e tentava conversar com o pai, quando este voltava do emprego, para que ele não se sentisse tão solitário, já que a esposa não lhe dava atenção, nem a ele nem a ninguém. A animosidade do pai e a indiferença da mãe fizeram com que Beto encontrasse uma válvula de escape nos exercícios físicos. Os sentimentos negativos de beto, conseguiu ele transformá-los em energia física, que despendia na ginástica e nos jogos, enquanto estudava. Agora que já se formara no segundo grau e sem condições de cursar uma universidade por sentir-se responsável pelos pais, passara a fazer alterofilismo. Levantava pesos proporcionais às suas mágoas.

Beto levantou-se da mesa e avistou a mãe na janela, olhando para o rio.
— Lá estão eles! — bradou ela, de repente. — Lá estão eles! Eles voltaram!
Dizendo isso, correu para a porta, abriu-a e sumiu na noite. Beto, sem compreender o que estava acontecendo, foi atrás. Alcançou a mãe à beira do rio, olhando para todos os lados, à procura de algo.
— O que foi, mãe? O que você está procurando?
— Eles estavam aqui, eu vi, eles estavam aqui.
— Quem estava aqui, mãe?
A mãe olhou-o como se ele perguntasse algo despropositado.
— Seus irmãos, é claro! — exclamou ela. — Os meus filhinhos. Eu os vi. Eles estavam aqui.
Beto procurou enlaçar a mãe com os braços.
— Mãe, vamos para casa. Você deve ter sonhado.
Alterando sua expressão para ódio, ela desvencilhou-se de Beto.
— Eu não estava sonhando! — disse rispidamente. — Eu os vi da janela. Eles estavam aqui, brincando.
E alterando novamente sua expressão, agora um misto de dor e ansiedade, começou a correr e gritar:
— Filhinhos, cadê vocês, filhinhos? Mamãe está aqui! Filhinhos!!!!
A custo Beto conseguiu fazê-la acalmar-se e entrar. Não quis ir para a cama, permanecendo, até dormir, sentada na poltrona frente à janela.
Nos dias que se seguiram, o ar foi ficando mais pesado, o ambiente abafado, causando o mal-estar em todos, deixando o corpo pegajoso, com uma sensação de sujeira. O tempo continuava a fechar-se no horizonte todas as tardes, sem, porém, cair chuva. Beto notou, no entanto, que a cada dia as nuvens estavam mais perto, aproximando-se vagarosamente, como a prepará-los para uma borrasca, sem surpreendê-los como há tantos anos atrás.
Beto teve de permanecer ao lado da mãe mais intensamente, pois ela passou a visualizar os filhos na margem do rio em crescente constância. Pela sua descrição, a cada dia a visão se tornava mais próxima. Embora ela apontasse para os locais das visões, Beto nunca via nada.

Eram cerca de três horas da tarde quando as escuras nuvens vieram do horizonte, cobrindo toda a região do rio, onde se situava a casa. As nuvens chegaram rapidamente, como naquela tempestade de anos antes.
A mãe, sentada à janela, mostrava-se inquieta, com os olhos buscando algo fora da casa. Beto sentia-se estranhamente ansioso, como se pressentisse que algo estivesse para acontecer com a repetição do antigo vendaval.
Fora da casa, árvores curvavam-se, as águas do rio formavam ondas e, repentinamente, a chuva iniciou-se com fúria, fustigando as janelas da casa, fazendo tremer a mulher próxima a uma delas. Um raio caiu sobre um pinheiro situado entre a casa e o rio.
— Veja! — gritou a mãe para Beto. — Lá estão eles!
Beto não atentou para as palavras da mãe, apenas observando, aflito, o pinheiro partido.
— É, lá se foi o pinheiro!
— Não, não! — exclamou a mãe. — Eu estou falando das crianças ao lado do pinheiro.
O jovem olhou na direção indicada pela mãe, mas não avistou nada. Um outro raio iluminou o gramado e, por um instante, Beto teve a impressão de ver dois pequenos vultos no gramado.
— Lá estão eles! — repetiu a mãe. — Você está vendo?
Beto firmou bem a vista e realmente avistou algo lá fora.
— Estou... — conseguiu dizer, meio incrédulo. — Há realmente algo lá fora.
— São eles! Eles voltaram! — gritou radiante a mãe, saindo correndo, com o filho atrás.
Ao se aproximarem dos vultos, mãe e filho reconheceram as duas crianças desaparecidas. Beto, assustado, segurou a mãe, impedindo-a de prosseguir.
— Solte-me, Beto! O que você está fazendo? — gritava-lhe ela. — São as minhas crianças!
Beto continuou a segurá-la, esforçando-se para falar.
— Mãe, olhe bem... São eles. Mas... não mudaram nada... Veja... não mudaram nada depois de tantos anos!
A mãe foi-se aquietando e, finalmente, Beto pode soltá-la, ficando ambos parados a olhar para as crianças, que pareciam tão assustadas ao vê-los quanto eles a elas.
Os olhos da mãe encheram-se de lágrimas e ela ajoelhou-se na grama molhada, estendendo os braços para as crianças.
— Minhas crianças... O que aconteceu com vocês?
Ao fazer menção de aproximar-se delas, as crianças afastaram-se ainda mais assustadas. Beto pôs a mão no ombro da mãe e ela estacou, olhando-o em súplica por uma explicação.
— Meu filho, o que está acontecendo aqui?
— Eu não sei, mãe... eu não sei...
Ambos tentaram novamente se aproximar das crianças, chamando-as pelos nomes, mas elas se afastaram. Beto, então, puxou a mãe pelo braço e, olhando para as crianças, foram, lentamente, caminhando de costas para a casa. As crianças, ao vê-los se distanciar, caminharam no mesmo ritmo em suas direções.
— Vá para dentro de casa, devagar. — disse baixinho para a mãe, afastando-se dela.
Beto foi-se afastando e, circundando as crianças que pareciam não percebê-lo, aproximou-se delas por trás. A mãe já estava na porta de casa e as crianças à beira dos degraus do alpendre, quando Beto segurou-as por trás. Assustadas, elas começaram a gritar e a se debater, e teriam conseguido escapar se não fosse a força muscular de Beto.
Elevando-as acima do chão, com dificuldade ele conseguiu entrar na sala, enquanto a mãe, impotente ante a situação, continuava a se afastar.
As crianças continuavam a gritar e a se debater. Ao entrarem na sala e avistarem um grande espelho acima de um console, desesperaram-se ainda mais. Beto, percebendo imediatamente o temor das crianças pelo espelho, num impulso colocou-se com elas frente ao objeto. Precisou de toda a sua força para mantê-las ali com ele e fazê-las olhar-se.
Os gritos das crianças foram cessando e elas começaram a olhar para o espelho como alguém que acorda de um pesadelo e reconhece a segurança de seu quarto. Sem a resistência das crianças, Beto pode soltá-las, afastou-se e aproximou-se da mãe. Uma das crianças olhou fixamente para a mãe.
— Mamãe?! – disse.
A mãe perdeu toda a ação e permaneceu parada, olhando para os dois meninos. Aos poucos foi-se aproximando deles e, primeiro contidamente, começou a tocá-los com as pontas dos dedos, sem dizer palavra. Finalmente, abraçou-os tão intensamente que os três lembravam um escultura feita de um só bloco de pedra.
Pela porta aberta entrou o pai. Parou ao ver a cena.
— O que está acontecendo aqui?! — perguntou, sem compreender o que se passava.
As crianças soltaram-se da mãe. Ela disse:
— Eles voltaram, querido!
O pai permaneceu estático, sem saber que atitude tomar.
— Não é possível! — exclamou, caminhando para as crianças e abraçando-as. — Não é possível, meu Deus!
Olhava para os filhos e para a esposa, incrédulo:
— Como isso é possível? Eles não...! — e não tinha coragem de expressar o que seus olhos confirmavam.
A esposa sorria, balançando a cabeça afirmativamente.
Após alguns minutos, nos quais tentou se refazer, o pai soltou os filhos, que voltaram a abraçar a mãe. O pai olhou pela sala e, num canto, encontrou Beto chorando convulsivamente. Era o único que chorava. O pai aproximou-se.
— Por que você está chorando, meu filho?
Pondo a mão em seu ombro, disse-lhe:
— Você foi sempre muito emotivo!
Ao dizer isso, olhou para Beto com estranhamento, como se não o visse há muito tempo, dirigindo-se, a seguir, à esposa:
— Você reparou, meu bem, como o Beto está crescendo...?!
A mãe apenas sorriu-lhe.

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