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Artigos-->DECLARAÇÃO DE AMOR -- 13/12/2008 - 13:49 (Carlos Rogério Lima da Mota) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Meados de 1984. O país desafiava os generais de Brasília, uma queda de braço que culminaria com a queda da ditadura militar e da ressurreição da Democracia, após quase duas décadas de perseguição a jornalistas e a profissionais da cultura tupiniquim que, ao não aceitarem um regime autoritário, protestavam por meio da arte escrita, da fina pintura, de passeatas pelas ruas de São Paulo, sendo condenados, por tais iniciativas, ao exílio e, em alguns casos, à própria morte.



Eu era criança, assistia a tudo pela tevê, sem compreender nada. Só sabia fazer uma coisa: brincar! E como brinquei! Brinquei de ser cantor, bombeiro, Batman, He-man e tantas outras figuras extravagantes pinçadas do mundo mágico da fantasia. Iria para a 1ª série do antigo primeiro grau. Quanta emoção! Enfim, aprenderia a escrever, a dar forma aos meus mais íntimos devaneios. A ansiedade arrepiava! Quem seria minha “tia” e meus novos amigos? No primeiro dia, meu pai me levou à escola na garupa de sua bicicleta. Eu estava com uma camiseta bem simples do pica-pau, chinelinho de dedo e um shortinho de chita; segurava um caderninho de brochura com algumas folhas, além de um lápis e uma borracha. Tudo tão singelo, mas bem arrumadinho.



A professora Rachel, uma mulata magra, com óculos pequenos e redondos recebeu-me de meu pai com um beijo. Ao entrar na sala, trinta novos amigos me esperavam. Curiosos, encararam-me dos pés à cabeça. Naquele dia, conheci as primeiras letrinhas do alfabeto português, letrinhas que me transformariam para sempre. Tudo era tão encantado, de um charme irresistível. Ali, naquela salinha de uma escola da Rede Oficial de Ensino do Estado de São Paulo, resolvi, com apenas seis anos, o meu futuro: seria PROFESSOR.



Já em casa, depois de uma tarde inesquecível, liguei a tevê. O Congresso votava a tal redemocratização enquanto meus pais brigavam feio, a ponto dele desferir um soco contra a boca de minha mãe e ela perder quatro dentes. Ela chorava toda ensangüentada, enquanto eu me escondia atrás do sofá junto ao meu irmão, um ano mais novo. Chorávamos! Parecia que o gás lacrimogêneo jogado nas ruas de São Paulo para conter os manifestantes havia caído também dentro de casa. Minha mãe chamou a polícia e meu pai foi retirado de dentro de casa. Estávamos sós!



O impressionante que, assim como todo o Brasil, ela não se curvou às dificuldades e aos comentários dos familiares maldosos, pelo contrário, saiu à procura de trabalho e encontrou a casa de uma japonesa para faxinar. Seria doméstica! E o que isso importava? Ela estava lutando para que tivéssemos ao menos um prato de comida para comer, porque, mesmo depois de separados, meu pai nunca pagou uma pensão. Mas ela não fazia questão, porque sabia, dentro de si, ser capaz de dar um destino melhor aos seus filhos.



Algumas semanas depois, fui acometido por uma vertigem em plena sala de aula. Era fome! Lembro-me até hoje! A professora me levou até a cantina e me pagou uma coxinha de frango. Restabelecido, retornei à sala de aula.



Quando minha mãe soube do incidente, pegou-me no colo, abraçou-me com força e chorou... Eu não entendia o porquê daquelas lágrimas, por isso arrisquei:



_Mãe, por que a senhora está chorando? Vai me bater?



_Me desculpe! - foi apenas o que me disse.



A partir daquele momento, ao invés de trabalhar oito horas por dia, passou a ficar onze, assim recebia as benditas horas extras de que tanto necessitava para melhorar nossa alimentação. A patroa dela, comovida com a história, mandou-nos um quilo de bife, que ela fritou à noite, após nos dar um beijo enorme, com aqueles olhos grandes e reluzentes. Mesmo diante de tanta necessidade e sem ver nosso pai por semanas, sentíamos protegidos. Kezo, o mais novo, adoeceu depois e foi hospitalizado. Estava com hepatite. Minha mãe desesperou-se... Tentou conversar com meu pai, mas ele havia mudado de cidade e nos deixado, como se seus filhos não fossem seus ou algo do tipo. Só, ela pediu ajuda a minha avó, D. Sebastiana, que prontamente me aceitou em sua casa, enquanto meu irmão estivesse no hospital recebendo os cuidados médicos, na companhia de minha sofrida mãe.



Os dias pareciam infindáveis, a vida deixava de ter graça, a escola... ah, a escola... daquela magia restava muito pouco. Sem pai, mãe e irmão por perto, quem estava só era eu. Vendo que eu não saía do quarto, minha avó foi à minha procura e me encontrou chorando. Ela, uma alagoana de corpo e alma, agachou-se, limpou minhas lágrimas e disse:



_Seja Homem! Sua mãe logo volta... Ela está com seu irmão!



Eu a abracei e ela retribuiu o abraço com um largo sorriso amarelo. Dentro de si, ela sabia, eu era sangue de seu sangue, parte de sua história, a extensão de sua família, por isso me acolheu com tanto afeto. Quem não ama um neto? Dizem que os netos são filhos duas vezes. E talvez os sejam mesmo!



Os dias se foram, meu irmão melhorou e quando o encontrei em casa - após uma semana no hospital, chamei-o para pular elástico. O buraco dentro de mim havia se fechado, eu estava na companhia daqueles de quem mais amava. Na tevê, passeatas se intensificavam por todos os cantos da capital paulista, Ulysses Guimarães, alçado à representatividade da classe operária, radicalizava os discursos contra os desmandos da politicalha brasiliense. O Brasil estava uma calamidade. Tiroteios da polícia contra manifestantes na Paulista, jornalistas desaparecidos, impotência militar, coação política... Um país retratado com lealdade na letra da canção “Brasil”, de Cazuza, quatro anos depois.



No dia seguinte, na escola, a professora entregou a lista de materiais. Ao dá-la para minha mãe, ela se calou. Eu não sabia o que ocorria, afinal, ela se trancou no quarto e lá ficou por um bom tempo. Lembro-me de ter adormecido e acordado apenas no outro dia. Quando acordei, tomei chá (não havia mais nada!) e fiquei esperando-a com o material. Eu não tinha nem caderno, nem lápis, nem caneta e aquela época o Governo não dava nada aos seus concidadãos; era uma Educação completamente elitista, que se fazia excluída da vida dos mais pobres. Ninguém se preocupava com a Educação, até porque, quanto mais analfabetos fôssemos, melhor para a cambada que vivia à custa do dinheiro público. Poderiam roubar à vontade, que nós, os pobres, não compreenderíamos, aliás, quem éramos para cobrar algo de alguém? Simplesmente pobres, o esteio de uma pirâmide social injusta, manipulada desavergonhadamente por um bando de políticos sem caráter, que fazia dos impostos a escaleta à riqueza...



Faltavam pouco mais de 5 minutos para eu entrar na escola, já estava tirando a roupa, não ia mais, quando um daqueles carros DKW ano 1950 buzinou. Saí até o quintal, era meu tio Zé com todos os meus cadernos e livros solicitados... Deu-me um beijo e disse: “Vá para a escola, moleque!" Um enorme sorriso renascia em meu rosto, parecia o sol saindo de trás dos montes para iluminar os grandes e belos canteiros da eternidade.



Ao voltar da escola, minha mãe disse que tio Zé e sua esposa Yvone haviam comprado meus materiais e que ela iria trabalhar até mais tarde para pagá-los, mas, pediu-me algo em troca: "Filho, nunca deixe de estudar... se deixar, onde eu estiver, saberei que todo o meu esforço terá sido vão..."



Aquela mulher me deu uma lição de vida, me fez ver que o meu futuro era importante! A partir daquele momento, “comia” os livros na intenção de saciar minha fome pelo saber.



O mundo mudou ao longo de todos esses anos, a ditadura logo ruiu, o Brasil recebeu Tancredo Neves de braços abertos. E o chorou dias depois em funeral. Inúmeros planos econômicos fizeram da vida de cada brasileiro o trampolim para uma agonia que não tinha fim. Muitos ministros da Fazenda com suas fórmulas econômicas mirabolantes e suas moedas, cujos nomes mal gravávamos devido à velocidade da inflação, passaram por nossas vidas. O país elegeu presidentes e depôs uma marionete que se dizia presidente; enriqueceu culturalmente, reconheceu a Educação como obrigação do Estado (vide Constituição Federal de 1988), não que essa obrigação tenha contribuído para a melhoria da qualidade; pelo contrário, os índices pioraram, os professores deixaram de ser mestres e passaram a representar uma nova figura no imaginário popular, sem o glamour e a grandeza de outrora! Que pena!



O que não se alterou foi o amor de minha mãe por mim, nem meu amor por ela. Se ela tivesse desistido diante das dificuldades, jamais eu estaria aqui escrevendo essa história... Verdadeira Heroína! Aonde quer que eu vá, sempre levarei comigo os seus ensinamentos e os divulgarei com toda a coragem, como hoje os faço, quando digo aos meus pequenos: “Filhos, nunca deixem de estudar... se deixarem, onde eu estiver, saberei que todo o meu esforço terá sido vão..."
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