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Contos-->A Vida e a Maldade -- 13/06/2000 - 19:48 (Rodrigo Luiz Moreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os campos são ótimos lugares que despertam em qualquer um a sensação de libertação dos grilhões que nos prendem ao concreto nas grandes cidades, a calma que desperta a interrupção da exposição curta e dolorosa às presas etéreas e afiadas que acabam regendo nossa vida maltratada. Um trabalhador rural, chamado Hans, era um homem corpulento, de barba volumosa e avermelhada, olhos esperançosos de cor escura que brilhavam curiosamente, emitindo uma tênue luz que se estendia sobre o nariz adunco e comprido, que terminava bruscamente numa ponta abaulada e vermelha. Nascera nessa região e não conhecia as metrópoles, o conjunto de suas imponentes e frias muralhas de concreto, que estendiam suas sombras sobre as pobres almas singelas e caladas de seus habitantes.
Hans era de origem libanesa apesar do característico prenome alemão, o que não virá a ter muita importância no decorrer dessa narrativa, nem suas longínquas lembranças de sua ascendência, as esfumaçadas e embriagadas recordações de seus progenitores, tios, amigos de infância e adolescência; lembranças que o atormentam em um denso turbilhão, e possivelmente serão contadas em um outro texto, mais denso. Hans caminhava em direção ao mercadinho da cidade para comprar comida, por uma estrada irregular, com pedras de calcário proeminentes e grandes valas formadas pelas rodas das carroças que há não muito tempo haviam transitado por ali. O tempo estava nebuloso e uma pequena garoa, muito fina, acabara por impregnar a barba de Hans com aquele denso orvalho. O cheiro da água que caía se misturava com o cheiro do mato e com os das pessoas e animais que habitualmente transitam por aquela estrada, que começara a se tornar enlameada, e as pedras e os sulcos das rodas misturados com pegadas de diferentes espécies e tamanhos acabavam por formar curiosos desenhos, quase como linhas concretistas de técnicas que Hans não saberia admirar. Desenhos grotescos, que aparentemente não eram nada, mas poderiam se transformar em arte através das mãos de algum pintor que não compreende o não significado da arte, sua perda de propostas e seu possível e quase que inevitável retrocesso. A volta. Hans não podia voltar pra casa. Tinha que comprar comida. Insistira consigo mesmo que era necessário comprar comida, apesar de sua despensa estar abastecida. Não queria voltar pra casa e não sabia a razão dessa sua vontade. Somente indagações e mais indagações que permaneciam sem resposta em sua grande cabeça, que parecia ainda mais monumental com sua vasta cabeleira crespa e vermelha, agora molhada com a chuva que teimava em precipitar.
Desistira da comida. Melhor outro dia. A chuva engrossara e seria melhor procurar abrigo dessa torrente fria e prateada que agora brandia o chão tão violentamente que deslocara até as maiores pedras de suas sempternas posições, e fazia a terra da estradinha mover-se, a cada passo de Hans; essa terra mole e áspera que agora enrolava-se em seus pés, como se quisessem segurá-lo ali, para que sentisse o toque pesado e denso da Natureza sobre seu corpo, envolvendo-o agora em um manto cálido. A água caía com muita força e lhe machucava a pele. Seria melhor procurar o tal abrigo.
Os grossos pés de Hans, agora apressados, faziam grande esforço para movimentar seu corpanzil através da volumosa barreira de água que cada vez mais se cimentava. Depois de alguns minutos sobre a torrente da tempestade gelada, Hans chegara numa casa de barro num tom sombrio de marron, que parecia muito mais escura do que era sob a chuva. Havia uma janela que possibilitava ver a luz trêmula de lampião emoldurada por uma densa escuridão. Parecia haver gente lá. Hans atravessou o pequeno caminho de terra batida após a portinhola e entrou.
Seus grandes pés tocavam alternadamente o chão com muita cautela. Suas mãos tateavam a grossa parede friamente, à medida que seu rosto assumia uma expressão de angústia; de súbito, foi tomado por um calafrio que lhe gelara a espinha, e suas sobrancelhas conferiram aos olhos uma expressão aterradora.
Num dos aposentos da casa, deitado sobre uma cama de ferro quase que totalmente enferrujada, havia um homem, de uns sessenta anos, que deixava transparecer de seu rosto uma lividez cadavérica; os olhos entreabertos, os braços esticados sobre sujos lençóis de linho que lhe cobriam da cintura aos pés. Sobre um criado mudo de madeira toda entalhada, havia um lampião de metal que emitia uma luz amarelada e branda. Os olhos de Hans percorriam da cabeceira aos pés da cama vagarosamente, tentando entender o que se passava ali, e, ao erguê-los ao outro canto do aposento seu coração deu um salto: uma jovem, muito magra, de cabelos crespos e escuros que lhe caíam sobre os ombros finos e estreitos, á mostra pelas alças do vestido puído de tanto uso. Estava acuada num canto contemplando a gigantesca figura de Hans. A moça, com seus lábios finos e seus olhos esverdeados, o rosto esguio e o nariz muito bem feito, o olhava de maneira muito assustada e tensa. O jovem rosto ainda de menina estava com as sobrancelhas arqueadas de modo grave, produzindo-lhe um semblante hirto, sombrio; era a Maldade em pessoa.
- Maldade, o que se passa por aqui.... - perguntou Hans, num tom grave que ecoara pelo pequeno aposento.
- Ele está morto, só isso; esse velho asqueroso que olhas de modo tão perplexo está somente morto. Escondi o frasco de remédios que seu escuro e podre coração tanto necessitava... foi uma morte lenta, que me encheu os olhos de alegria e me tomou de excitação.
Hans estava confuso, incrédulo. Suas emoções mergulharam em um poço e, lá do fundo, extraíram as mais estranhas emoções que, possivelmente, ele nunca tivera na vida.
- Por que atravessaste o caminho dessa vida, Maldade . Era só um pobre velho, o coitado... decerto, iria morrer cedo ou tarde, mas por que abreviaste sua existência
- Ele me criou. Sabes que todos os atos dos homens cedo ou tarde se voltam contra si próprios - disse a jovem com um sorriso irônico. É como uma prisão - continuou - uma rede, um a nuvem carregada suspensa sobre um mundo de preconceitos, segregações, arestas afiadas que acabam lhe tosando a liberdade. Sem liberdade, sem vida. Qual é a dessa vida que conhecemos - Hans ouvia tudo o que a jovem dizia com um ar perplexo, quase que abobalhado. Seus longos dedos roçavam sua barba do queixo até sua ponta quebradiça e irregular. A desgraça que se abateu sobre esse homem - prosseguiu a Maldade - é só o começo. As negras asas da perseguição e exclusão que o homem construiu para seus irmãos, com seu suor de sangue frio e amargo está chegando ao fim.
Hans por um momento desviara seu olhar do horrível semblante da figura que lhe falava. Depois, fitou-a com atenção e disse:
- Mas... nem todos são iguais... quer dizer... são de um jeito e não o são de outro... um lado, uma face é igual em todos, mas tem uma outra... ou várias outras....Essa força que me toma de ódio e me faz odiar meus irmãos... não sei como isso é possível...somos iguais... ou não...
Silêncio. Hans baixou a cabeça e sentou-se no chão, encostado à parede, olhando de novo para o corpo que jazia à sua frente.
De súbito, ouve-se um grito de rancor expelido pela voz aguda da Maldade. Sua figura se atirara com grande velocidade pra cima de Hans; seus olhos agora avermelhados fitaram o risco metálico de uma grande lâmina, que refletia a luz do lampião, e vinha em sua direção a uma velocidade espantosa; não dera tempo de Hans emitir um só ruído antes que essa cravasse em sua carne. Um corte profundo e fatal, feito pelas mãos finas de uma jovem tão frágil. Como poderia...
Hans jazia no chão. Sua barba estava empapada de sangue. A luminosidade do lampião refletia o vermelho fosco que agora se apoderara da cena. Perguntas que ficaram sem resposta. Uma vida bucólica terminara bruscamente, de maneira tão inesperada quanto sinistra. Não compraria mais comida. Não se atormentaria mais com as lembranças de seus familiares, que tanto o faziam sofrer. Se ele estivesse de pé, forte e imponente, talvez tudo tivesse sido de outra forma. Perguntas sem resposta. A chuva cessara e pequenos raios solares entravam pela pequena janela do quarto, envolvendo a mórbida cena em seus tentáculos de luz. A Maldade triunfara.


FIM
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