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Contos-->Improviso -- 13/06/2000 - 13:01 (André Mellagi) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dois toques na porta e ela se abriu. Entrou o tal de Mosca de olhos arregalados para ele e já percebia a impaciência do proprietário do lugar. Antes do Mosca mencionar qualquer coisa, levantou a mão e meneou a cabeça como se já soubesse das consultas generalizadas dos presentes ao relógio. O Mosca apontou com o indicador para o seu pulso de prata e deu o aviso dos ponteiros: "olha!". Ele deixou a flanela com que limpava o clarinete sobre a mesa e não prestou atenção ao que Mosca alertava. Nem viu o olhar ameaçador com que lhe dirigiu ao fechar a porta. Estava a sós agora com as fumaças do cigarro escalando pelas paredes. Finalmente olhou para o seu relógio e viu que estava vinte e um minutos atrasado. Retirou-o do pulso e deixou ao lado do estojo do clarinete. Limpou as mãos suadas com um lenço. Encarou o espelho do pequeno quarto e ajustou a gola da camisa. Vestia com simplicidade mas mesmo assim cuidava do aprumo do ordinário. Afinal, naquele dia perdera o anonimato. Seu nome estava impresso nos cartazes ao lado da foto em que apoiava o rosto amorosamente ao clarinete embalado. Voltou a beijar a palheta e a tocar suavemente as teclas. Algo ainda o estava incomodando naquela figura; não adiantava mudar a direção do clarinete, via sempre sua mão gorda engolir o fino instrumento. Algum dia ainda partiria para o sax ou trombone. Terminou esta declaração corriqueira, apanhou um monte de lenços sobre a mesa e colocou-os no bolso. Pegou o instrumento e saiu do quarto. Flauta, nem pensar. Só em estúdio e mesmo assim sem a foto na capa.

Aproximou-se do microfone com o pedestal na altura exata para o bocal do clarinete. Ao lado, o set-list estrategicamente colado no chão. Verificava o posicionamento dos dedos nas teclas, guiado pelos aplausos do público. Quando o silêncio se estabeleceu na platéia, ele levou o clarinete à boca. Fechou os olhos e cuspiu Cole Porter. No final da música, agradeceu os aplausos com um sorriso e resolveu então olhar para as mesas cheias de onde partia a nuvem que manchava as luzes opacas apontadas em direção ao palco. Um brilho estático cobria aquela bateria ainda deserta e a calvície rosa do músico. A próxima era Gershwin. Encheu novamente o peito e soltou as notas. Apesar dos olhos fechados, pôde sentir através das pálpebras a explosão de um flash. Devia ser a Marisa, a fotógrafa contratada da gravadora que estava elaborando seu disco. Esperava que tinha saído em um ângulo bom. Levantou as sobrancelhas, o clarinete durante uma fermata da música. Mas nenhum flash espocou nesta sua pose controlada.

Agora a vez de Miles Davis. Era então que planejara inserir aquela improvisação de choro entre os temas principais. Enquanto o público aplaudia, procurou se esconder nos estalos das mãos para virar à mesa de som ao lado do palco e apontar o indicador para cima e expandir nos lábios a palavra "agudo". Pousou os dedos no clarinete e acabrunhou o rosto enrugando a testa. Após alguns compassos, voltou a olhar fixo para o operador de som. Satisfez-se com as mãos dele mexendo nos botões e prosseguiu o acompanhamento da melodia. O músico passeava seus dedos pelas teclas e seu sopro saía cantado daquele cilindro delgado. Porém, as notas ainda não alcançavam aquela estridência que queria. Ele tocou levemente a caixa de retorno com o pé mas o operador estava absorvido sobre a mesa. Virou o corpo inteiro diante do operador de som sem tirar o bocal do microfone e fitou-o impaciente. A mesa respondeu com as palmas das mãos levantadas para o alto e depois apontaram para o instrumento. A música continuava mas ainda não estava contente com a altura atingida. Um dedo escorregou da tecla e um som quebrado interferira a melodia. Ele perdeu a passagem para o improviso e resolveu repetir o compasso em outra altura sem interromper a música. Irritou-se ainda mais com o som. Virou uma vez mais ao operador e uma camada grossa de água caiu das sobrancelhas, chegando a fechar seus olhos. Uma nota inoportuna surgira de novo com os dedos que não conseguiram conter as teclas metálicas. Tinha que fazer algo logo. Se continuar assim, seria a ruína da música e do espetáculo.

Foi então que resolveu terminar o compasso levantando as notas sem se importar com o que ouvia ou não. Na última altura, fez um pausa. Um momento, e entreabriu os olhos, pouco enxergando através da neblina colorida a platéia. Um silêncio, podia mesmo ouvir um zumbido que vinha da caixa próxima a seus pés. Os dedos grossos e certeiros nas teclas estavam suspensos, apenas os polegares amparavam o clarinete. Não percebeu que seus pés pisavam sobre o set-list. A boca aberta enchia o peito; atacou com o choro deixando os dedos títeres ao sabor da música. Cerrou os olhos e voltando à escuridão esqueceu a sua surdez, a imbecilidade do operador, o defeito no instrumento, a mudez da caixa de retorno, o sebo nos dedos. Deixou a cadência insuflar suas bochechas grandes enquanto mordia a palheta. Enfim, voltou à música original em meio às manifestações ruidosas do público. Seu desfecho mal pôde ser ouvido por ele com os aplausos intensos da platéia.

Ao finalizar a música saiu direto do palco para o camarim. Viu-se no espelho; estava desfeito. A gola desnivelada, a camisa empapada de suor embaixo dos braços. Os poucos cabelos escorriam molhados pela testa grande. A respiração retomava o fôlego acompanhando os movimentos dos olhos em torno da face que parecia mais enrugada e envelhecida. Deixa o clarinete em cima do estojo e abaixa a cabeça apoiando o corpo com os braços na mesa, pingando o suor que despencava. Retira mais lenços e enxuga a nuca. Estava sentindo mais frio. De repente a porta se abre e surge o Mosca.

- O que está fazendo? O show ainda não acabou!

O músico olha cansado para ele enquanto apalpa os seus bolsos e pega os lenços que havia levado ao palco. Limpa sua testa calmamente e diz para o Mosca:

- Eu não sabia mesmo quando iria começar, respondeu jogando os lenços molhados na mesa. Guardou o clarinete no estojo e partiu da casa sem perceber que havia esquecido seu relógio por lá.

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