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Artigos-->PanAmerica Ano 2000 II -- 17/12/2001 - 18:14 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
[PARA WIR CAETANO]



A primeira parte da e(pop)éia de José Agrippino de Paula, PanAmérica (Editora Papagaio, 2001) fala da tumultuada filmagem de um clássico inspirado na Bíblia, à la Cecil B. De Mille. Com pompa e milhares de figurantes, se passava na Judéia, uma pobre colônia romana. Num cenário marcado pela artificialidade, há inclusive um mar de gelatina verde. Não se trata de um texto realista e naturalista. Num segundo “capítulo”, o narrador trepa com Marilyn Monroe. O nome “Monroe” e o título “PanAmérica” parecem indicar um aproximação entre a doutrina Monroe (“A América para os americanos”) e a principal ambição do texto: ser uma síntese da civilização americana como um todo.

Supondo essa pretensão de síntese, verificamos que o texto produz estilhaços de Brasil: tomemos a passagem onde narrador se viu envergonhado diante do pau do índio brasileiro, sofreu sem externar sua insatisfação e por fim bateu em Marilyn Monroe, numa explosão agressiva. Fica claro que Marilyn é uma figura sedutora, desejada por todos, mas conquistada pelo eu do narrador, mas não sem ciúmes e conflitos. Curioso que esse narrador tenha sentido pudor justamente do índio, ou seja, das próprias origens (supondo que esse narrador seja brasileiro).

Uma outra parte de PanAmérica é acentuadamente política, e narra a experiência do exército brasileiro diante duma revolução comunista na República Dominicana e a chegada dos marines norte-americanos. Há aqui uma simpatia maior com Guevara (do qual o anônimo protagonista se diz admirador) do que com o PC (que é representado por uma gorda que acaba fuzilada).

Curioso que a epopéia aparentemente excluiu a cidade de São Paulo dos lugares onde ela se passa (identificamos a Califórnia e o Rio de Janeiro). De certa forma, Marilyn é um objeto de desejo realizado; objeto também é o soldado com quem o narrador se envolve, e com quem tem uma relação explosiva:



E depois chegou o soldado de lábios vermelhos que eu havia conhecido no dia do golpe militar e nós deitamos entre as granadas. Eu olhava para uma correntinha dourada que ele trazia no pescoço. Havia uma medalhinha de uma santa e um número gravado numa minúscula placa (AGRIPPINO, 2001, p.99).



A postura de PanAmérica diante do exército é de agressão, em especial se imaginarmos que naquela época os militares estavam no poder. Mas mesmo assim existe uma ambivalência no papel do narrador diante dos acontecimentos, muito próximos dos acontecimentos recentes no Brasil (e em toda a América Latina) no decorrer dos anos 60:



Todos os oficiais dominicanos e norte-americanos que se encontravam sobre o convés do porta-aviões sorriram e cumprimentavam-se mutuamente devido ao êxito da operação (...). Os comunistas atacavam as forças do governo e eu seria reconhecido como um dos soldados do governo (...). O regime capitalista e as forças do governo haviam caído e os comunistas estavam no poder. Eu saltei de alegria no meio da multidão e tomei um ônibus abarrotado de camponeses (...). Eu gritei espremido na multidão irada. O porta-aviões, que transportava o batalhão de marines, atracou no cais, e a multidão se dispersou em pânico. Eu balancei os pés sentado na longa mesa de mármore do frigorífico e olhei para as altas e volumosas cabeças dos comunistas que tinham sido enforcados depois da invasão dos marines (...). Eu olhei as cabeças dos comunistas conservadas no frigorífico do Departamento de Ordem Política e Social, e as cabeças eram muito grandes e lembravam cabeças de papelão pintado usadas no carnaval.(AGRIPPINO, 2001, p.103)



Supomos que PanAmérica é uma tentativa à la Joyce de falar dos mitos do homem moderno. Uma Odisséia moderna, no cotidiano. Há a preocupação de reunir elementos de toda a América: Brasil, Venezuela, República Dominicana e Estados Unidos são citados, mas quem conduz a narrativa é o “eu” que interage com o Olimpo de Hollywood: Marilyn Monroe, Marlon Brando, Carlo Ponti, Cary Grant. Agrippino escreve muitas vezes como não se deve escrever: “Eu e ela estávamos ali encostados na parede. Ela estava em silêncio e eu estava em silêncio” (AGRIPPINO, 2001, p.61). Um detalhe sugere que sua amante Marilyn seria mera mercadoria: “Eu rasguei com a unha a tampa de papel que era a virgindade de Marilyn Monroe e depois introduzi meu membro na vagina apertada e úmida (AGRIPPINO, 2001, p.62).

Pensamos que talvez fosse pertinente utilizar o pensamento estético de um marxista para analisar um livro onde Marx e Guevara são citados de passagem: para Lukács, a mitologia seria para dar forma, superar e dominar as forças naturais na imaginação. Lukács diz que “o desenvolvimento da produção rebaixa a capacidade mental dos produtores e engendra frente a eles fantasmais poderes estranhos” (LUKÁCS, 1966, p.329). Para Lukács, “na moderna mitogênese há o temor de descobrimento real das bases econômico-sociais dos fenômenos da sociedade, que se exacerba com a luta de classes” (LUKÁCS, 1966, p.329).

Agrippino acaba fazendo uma transfiguração do capitalismo com seus novos mitos. São representações mítico-religiosas de seres sobre-humanos como Joe Dimaggio e Marilyn Monroe. A Estátua da Liberdade aparece como um monstro que repete as atitudes de King-Kong, o gigantesco macaco que destrói New York em um filme norte-americano. A liberdade, como sua transfigurada simbolização presente em PanAmérica, cobra um preço das massas, estando associada à exploração de um segmento social por outro: as massas pagam o preço dessa divisão em violência e morte. Não há, em PanAmérica, alegria, paródia, bom humor. O “eu” do narrador vive o mal-estar com sua epopéia tendo problemas com o lugar de onde ele parte. Na Ilíada, o lugar de onde se parte é também aquele para onde se retornará, depois de conquistada a cidade de Tróia. Em PanAmérica, no entanto, a epopéia leva a uma viagem sem retorno, uma viagem errada (bad trip).

PanAmérica, embora cite Marx e Guevara, não possui nenhuma utopia de superação da sociedade de classes. Não há esperança de superação dos conflitos apresentados, nem o narrador parece desejar essa resolução, apesar do mal-estar que deveras sente.

O texto se constitui de curtos subcapítulos, sem título e cuja ligação é feita somente pelo “eu” que não sabemos quem é. Na p.41, cita-se Bus Stop, filme de Marilyn. Este filme nunca passa facilmente no cinema agora nos anos 90. Atualmente, é um cult, representante de um momento passado da arte de massa que é o cinema.

Não há referências a classes em conflito em PanAmérica, e há ambivalência do narrador em relação ao momento da invasão imperialista. Mas há, na p.35, uma afirmação significativa:



Os atores representavam uma família feliz, e eu via na porta da casa um vaso de flores, e eu me sentia feliz de ver aquela família classe-média americana, o pai conversando com a filha, o filho conversando com a mãe e os irmãos. A harmonia e a felicidade de uma cena se trasmitiam para mim, e eu sorria imaginando que eu futuramente poderia formar uma família igual àquela (AGRIPPINO, 2001, p.35).



O narrador se identifica com a burguesia, a pequena burguesia de um país imperialista e deseja imitá-la, num desejo colonizado. E imitá-la “exatamente”, sem mediações entre uma sociedade e outra. Logo depois, o “eu” do narrador saiu no Jaguar com Marilyn, realizando esse sonho de consumo. Esse “eu” é contraditório, ao mesmo tempo em que admira Guevara, ou seja, deseja combater o imperialismo e a burguesia, identifica-se com a pequena burguesia, consumindo objetos e pessoas, e tendo Hollywood na cabeça. Ele opera com mitos já gerados pelo cinema de Hollywood e os ressemantiza.

Em PanAmérica, alguns personagens têm nomes, tais como Marilyn, Guevara, De Gaulle, etc. No caso de outros, portadores de estigmas sociais, simples traços, ora raciais ora sexuais, aparentemente bastam para defini-los: “Eu saltei do helicóptero e gritei para o enorme negro que verificava o lança-chamas: ‘hei!’”(AGRIPPINO, 2001, p.13). Um outro exemplo: “Harpo Marx retirou a calça rapidamente e vestiu uma das calças dos bailarinos. Harpo Marx buzinou, virou de costas e a roupa dos bailarinos era aberta nas nádegas e eu via as nádegas peludas de Harpo Marx aparecendo” (AGRIPPINO, 2001, p. 55). Tema familiar esse acima, uma vez que o “eu” que narra é bissexual pois transou tanto com Marilyn quanto com um soldado anônimo, em pleno golpe militar.

Na p. 65, há uma pista do que virá depois: “Eu levantei-me depois de algum tempo e Marilyn Monroe disse que estava com medo e que era perigoso ela ficar grávida (AGRIPPINO, 2001, p.65). Com freqüência, Agrippino repete com reiteração não usualmente necessária algumas palavras: “o fotógrafo transportou a cânara e o tripé para outra posição, e explicava para o homossexual que ele queria um gesto mais heróico quando o homossexual soprasse a pesada corneta”(AGRIPPINO, 2001, p.117). Posteriormente, o narrador se mistura aos comunistas e loucos. O “eu” fracassa em sua tentativa de guerrilha, tentativa em que Guevara morreu e foi derrotado, naquele mesmo ano em que PanAmérica foi publicado. Quando o narrador comentou Guevara, disse também que o guerrilheiro lhe deu apenas uma faca enferrujada para enquanto arma, o que seria uma mostra da incompetência de Guevara.

Na p. 177, ocorreu a estranha batalha entre os anjos e as arraias: “Um grande número de arraias e anjos despencava ferido do alto e explodia de encontro à areia da praia”(AGRIPPINO, 2001, p.172). As arraias eram de Di Maggio. O Papa, Martin Luther King e os bonzos budistas pediram paz para os contendores, mas o próprio narrador se encarregou de dar um chute no Papa Paulo VI, os anjos vairam o Papa, os bonzos budistas puseram fogo em si mesmos e a luta continuou. O episódio parece simbolizar Guerra do Vietnã, mas a simpatia do narrador, ao contrário do episódio passado (da invasão da República Dominicana), agora ficou do outro lado, do imperialismo norte-americano interessado na continuidade da agressão. O que é paradoxal, uma vez que o narrador combatia também Di Maggio e suas arraias voadoras.

O narrador sente estranhamento e mal-estar diante dos negros: “Quando eu cheguei à esquina eu mordi o sanduíche que Di Maggio me obrigava a levar e ouvi no segundo andar da pensão uma batucada de negros”(AGRIPPINO, 2001, p.170). Nisso Marilyn, que tinha sido morta por Di Maggio, reaparece viva: “respondeu que esteve fora dois meses e que foi muito bom”(AGRIPPINO, 2001, p.193).

Não há clima de festa em PanAmérica. Há redundância, desgaste e pesadelos intencionais. Não deixa de ser a narrativa de um “eu” dominado que se vê obrigado a conviver com as ficções do dominador: com elas se choca, agride ou penetra, mas não pode criar as próprias. O filme de Cecil B. de Mille que inicia a narrativa seria, todavia, um filme realista, ao contrário da narrativa de PanAmérica. Para Agrippino, personagens como Marilyn e Di Maggio seriam “meros motivadores do mito”, como escreveu Agrippino numa epígrafe retirada nesta terceira edição. Agrippino menosprezava a qualidade literária, não acreditando na força da palavra. A linguagem é repetitiva e pobre em vocabulário. Importante também notar que o livro seguinte de Agrippino, United Nations, tenha sido escrito em inglês. Agrippino se viu às voltas com o surgimento de uma linguagem universal, midiática, que se impunha para todo o planeta como linguagem única. Daí ele parece ter decidido romper as tradições culturais para aderir a essa linguagem: escrevendo em inglês, queria abolir as mediações para dialogar diretamente com o drama do mundo. E quis abolir a última instância, a mediação primordial: o português do Brasil. United Nations seria literatura feita no Brasil, ou melhor, literatura Made In Brazil.

PanAmérica tem pormenores realistas, mas busca se afastar do real. O voô do Jaguar é a realização de um desejo. As fantasias são um desrecalque de desejos reprimidos. Apesar disso, não nada de “curtição” e “festa” no decorrer desta narrativa. O clima é de mal-estar e pesadelo. A relação entre os personagens se faz sempre com embates violentos. Não há emoções ou sentimentos antecedendo o sexo: a pessoa é tomada enquanto objeto dotado de ânus, pênis ou vagina. Num determinado momento, os sexos, os corpos despedaçados chegam a alçar voô. O corpo em PanAmérica é queimado (como negro que carrega o dragão da Ku Klux Klan), é despedaçado (como no caso da mulher sem corpo que Di Maggio teria matado) é possuído em sua dimensão de materialidade bruta (no caso dos soldados no exército).

No caso do corpo das estrelas, os nomes lhe são dados. Já as personagens latino-americanas são anônimas. As palavras “guerrilheiro” e “terrorista” designam as mesmas coisas, mas “guerrilheiro” é o nome dado pela esquerda, e o mais pejorativo “terrorista” é adotado pela direita. Há uma oscilação entre o tom apocalíptico e uma tentativa de integração que não se completa. Agrippino não tem, ao contrário da maior parte dos artistas Pop, uma abordagem mais positiva que negativa do mundo contemporâneo. Existiu o temor de nomear as origens, cidades o personagens brasileiros quando eles aparecem (pênis do índio, ritual afro-brasileiro). No final de PanAmérica ocorre um apocalipse que poderia ser o final da superprodução bíblica norte-americana. Agrippino escolheu a literatura, arte de grande tradição cultural entre nós, para fazer sua literatura. Mas, em seu pioneirismo radical, pretendia se desfazer dessa tradição, pelo menos em grande parte.

A imprensa da época relacionou o filme Terra em Transe com a canção Tropicália e as montagens de Rei da Vela/Roda Viva. Mas faltou realmente uma realização literária, arte deixada à margem. Mesmo as artes plásticas responderam com as obras de Ligia Pape e Hélio Oiticica. As obras que foram consideradas foram as de Gullar, Cony e Callado. Essas foram consideradas representantivas do momento que o Brasil vivia em 1967. No cenário, o chamado coágulo histórico.

Neste contexto, a ambivalência domina até o caos final, sem que surja qualquer sinal de um nova ordem. Um fenômeno, uma palavra, um pensamento, todos oscilavam entre uma coisa e outra. Uma coisa ora é isto, ora aquilo, há a fragmentação do pensamento. Não há, porém, dentro de PanAmérica, algo que remeta a uma composição entre o imperialismo e a ideologia burguesa mais antiga e obsoleta, centrada nas tradições familiares. Não há uma contraposição moderno/antigo que Roberto Schwarz diz ser tão importante no pós-64. Se houvesse a convivência dos personagens de Hollywoood com Zé do Caixão e o jeca de Mazzaropi, aí quem sabe, poderíamos pensar numa refiguração dessa composição.

O trecho musicado por Gilberto Gil no final dos anos 70 foi – não por coincidência -- um dos únicos instantes de paz e alto astral em meio à violência de PanAmérica: “Nós dois esquecemos naquele momento que nós dois pretendíamos a paz dentro da violência do mundo, e sem percebermos a chegada da paz nós dois estávamos alojados dentro dela” (AGRIPPINO, 2001, p.61). Harpo Marx, comediante da dupla Irmãos Marx, é fixado com freqüência, em contraposição a Groucho: “Eu gritava para Harpo Marx que eu era contra as idéias daquele jornal e que eu não iria discutir com ele se o Partido Comunista estava agindo corretamente ou se era um erro do partido permanecer inativo e esperar a queda do governo” (AGRIPPINO, 2001, p.106). Aqui, a questão que subjaz é a acusação, feita por grupos de extrema-esquerda, de que o partido comunista brasileiro tinha fracassado em reagir ao golpe de 64.

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