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Contos-->anotações sobre a morte -- 15/07/2002 - 09:21 (gilberto luis lima barral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Anotações sobre a morte


Anotações sobre a morte

Caminhamos para a morte, vendo-a chegar antes a outros seres, animados ou inanimados, queridos ou distantes. Sentimos, por essas experiências que a morte é uma combinação de vidas, acidental, incidental, arriscada, intempestiva. Iludimo-nos perante sua atual fatalidade envoltos na grande fantasia, entre objetos fantásticos, que faz a vida tornar-se, nunca indolor, numa breve fantasia. E também chega-se à morte pela saúde, que em sua natureza intrínseca, faz caminhar um físico, vagarosamente, pela existência afora degradando-o, deteriorando-o, enchendo-o de doenças e mais outros dados mórbidos, que cabem nesta anotação, para enfim, aos poucos, fazê-lo sucumbir. Para quem vai sobrevivendo restam coisas enormes para se fazer: sonhos de mortos que continuam vivos ora enlevando, ora perturbando as nossas possíveis aspirações, desejos profundos e realizações. Nós, os vivos, não podemos, por exemplo, sentir, com os tão belos caprichos de outrora, as nossas mortes. Morte é hoje um enterro apenas, cerimonia fastidiosa. Em outros tempos muito mais coisas se perdiam com a morte. Hoje perde-se apenas a vida do morto. Aquela história de se perder uma biblioteca, adios.

E se quiserem os vivos habitarem mundos mais duradouros, interplanetários, cibernéticos, existem senhas de acesso, imagens, interfaces, gestos e gostos que ora pipocando ofertam o gozo, mas o tempo continua... Os homens muito perturbados não querem pagar o preço de uma ciência, acham muito caro e empresas insistem, crescem, posto que são poucas e muito fortes. Agora mesmo três ou cinco homens se divertem em órbita numa cápsula, satélite ou estação de metais, plásticos e sintetizados. É preciso velocidade. Nos propusemos, várias vezes, conhecer o mar, o que sabemos dele? Sabemos uma coisa surpreendentemente inovadora sobre os mares hoje, mas faz tempos vimos alinhavando uma teoria, que respondesse de um modo simples e completo, sobre eles e agora revelam-nos, o que já se aguardava como respostas suas: o mar é um mundo a ser descoberto. É o preço da ciência. Se os mares são tão profundos e muito antigos, poderíamos nos aprofundar-mos mais neles, mas nos faltam as guelras. As guelras, imagine!

Para o mundo da caverna desde que saímos relutamos em voltar a apreciá-lo. O que há de tão pavoroso no escuro? Respirar tendo lanternas de carbureto à mão? Acredito na verdade de que as trevas invadiram tudo, o mundo é uma caverna. Uma caserna, canhões, obuses e balas. Por computadores a edição da guerra televisiva, uma diversão. Alguns garotos têm a Internet e o ciberespaço para brincarem nas tardes depois das aulas, onde a morte os espreita também, mas ao longe.

Embora o ser caveira tenha aparência mórbida, o que acontece é sua lapidação por vermes, baratas, formigas, ratos, todos se alimentando da sua carne já desalmada. Os momentos dessa comilança, perturbadores. Ainda bem que se esta morto e a alma descarnada. Mesmo o corpo de pouco pecados, tendo carregado o fardo dos dias, será demoradamente carcomido, pois ainda não se pode prescindir da morte e suas substâncias vitais, afora a cremação. Ainda, como nos mostrou Dante, a alma também sofreria muito nas salas de espera do inferno e do purgatório. Almas dantescas não entram em extinção, ao contrário se proliferam aperfeiçoadas. Daí vem a certeza de que em vida sim, elas penam, sofrem com dores e odores, distâncias e saudades, desamores, dissabores. Morto nem tudo passa. O sol faz muito bem em nossas vidas. Deixassem as catacumbas abertas e os esqueletos sorririam agradecidos seus infinitos dentes brancos. Deixassem os homens livres, num caminho muito escuro, daí se escurecesse ainda mais, se iluminariam neles alguma luz interior?

A passagem se estreita. Como no dia em que durante uma forte chuva o rio arrastando folhas, galhos e troncos construiu um dique ao natural, e ali o pescador se sentou para retirar seus bagres. O rio estava escuro, sujo e bom. O peixe farto e enquanto o homem recolhia sua dádiva, algumas minhocas de isca intentavam fugir do vasilhame, onde foram acondicionadas, em busca de terra úmida, seu habitat de normal. O filho do pescador observa o enorme trabalho das criaturas desorientadas, que no objetivo de chegar à terra úmida se orientam mundo abaixo entre os labirintos do represamento. Mas o dique elaborado num arrastado, embolado e organizado maciço de chumaço de grandes e pequeninos galhos veda qualquer possibilidade, àquelas pobre minhocas, de chegaram ao paraíso esperado. O pescador devolve-lhes ao vasilhame ou o garoto o faz. Duas dessas vidas anistiadas seguem seus possivelmente curtos caminhos, quem sabe? Entram pelas frestas, quase iluminadas, arrastando seus corpos molengas e escorregadiços. Para uma passada mínima um movimento enorme. Não resistiriam talvez, mas penetram cada vez mais no mundo do entre folhas, galhos e troncos, na escuridão. Alcançada a terra, daí seguiriam viagem para suas casas um pouco mais abaixo, lógico se resistissem ao cansaço.

O pescador com seu cambão carregado volta para o acampamento, frita peixes, toma cachaça. À noite é a vez dos vaga-lumes brilharem embaixo do céu e as estrelas e outros astros cortarem a escuridão distante e acima. Quando voltarem à cidade estudaram, além de mares e cavernas, astros. A cidade espera os resultados da pescaria. A mulher odeia os peixes, suas escamas e vísceras, preferindo vê-los surgirem já mortos, limpos e saborosos de dentro dos cardápios.

A boca expõe o que lhe cabe. As crianças nos cemitérios gritam fraseados, pulam correndo nos gramados dos jardins dos mortos, numa alegria de dar a combinar com os sons angelicais de um fim de tarde. A Ave Maria de quando a última sombra passa triste as copas das árvores no asfalto. Estamos envolvido numa substância-imagem da vida quase amargável. Arrastam os calçados fatigados os chicletes, as tampinhas de garrafas e tocos de cigarros pela superfície aquosa, das cusparadas dos transeuntes ensimesmados, pelos passeios públicos que entornam a mórbida construção. As crianças brincam enquanto os já crescidos e absorvidos pela dor enterram, visitam seus mortos. O morto não pode falar, daí discursa por ele um parente, um amigo loquaz. Embora em vida o defunto não tenha feito nada para expor de público, sua vida é uma enorme podridão. Mas o discurso do loquaz mantém as honras.

Um garoto punk passa metido numa jaqueta estampando caveiras, cruzes e mortes. Como é quase noitinha iria a algum show? Não sabemos, é cedo. Ainda no caminho alcança, com seu lento caminhar, dois faróis de neblina que, embora ao longe, lançam bem perto de seus coturnos o jato amarelecido das lâmpadas. Ainda não é o inverno. É que a morte faz o tempo mudar, esfriar e escurecer mais cedo. No entanto olhando o rapaz que passa tem-se a súbita sensação de que na verdade ninguém sabe mais em que estação estamos. Tem-se mudado os nomes das coisas, os modelos, os neologismos, as descobertas. E continuam verão, outono, inverno e primavera. Sempre o rosto, os olhares, os gestos, as palavras de alguém que se foi permanecem, de início, claros, depois se desvanecem, se tornam lembranças. Por isso seria melhor o garoto punk encontrar logo esse sorriso, ao descer do carro, ao iniciar sua noite, pois se um cão descendo a ladeira repentinamente lhe atropele, seu espírito carregara para quase sempre em sua memória, pele e em todos outros sentidos o medo, o pânico de um ataque surpreendentemente muito rápido, preciso e desestabilizador de tudo que deixa vivo. Um cão como o garoto adornadamente metalizado, mas ao contrário robusto, largo, sanguinário. Feito um motor, uma broca ou algo que engula sem deixar rastros.

Trazendo de imediato o olhar da luz para a escuridão de fora os olhos compõem imagens mentais ofuscadas e semelhantes aos medos que lembram o insensato, o inimaginável, o obtuso ou pouco verificável. Dizem chupa cabras. Allien o oitavo, ou Jackie, o yeatering. Mas mesmo muito cão metalizado pára nas escarpas da serra de cascalhos, pedras e cáctus que leva, depois talvez, ao paraíso mais encantado que somente se sente no tato, na sola do coturno, nas chinelas ou nas precatas. É noite, continua o mesmo cenário, um pio de coruja horrível perto quer nos levar prá longe e lá nos assentar em um galho de árvore espinhesada. A ave agourenta é outro fetiche próximo aos cemitérios. Deve ser também anotada.

Vai garoto, pescador, homem e mulher, todo mundo corre! Ouçam os sons novos, diversificados, coisas inaudíveis, sussurros. Silêncio, um grito de dor, meu deus. Se a amada não chegar antes do último suspiro, tudo terá sido em vão. A poesia, a música, a ciência, tudo, tudo que se construiu ou pensou-se em fazê-lo, irá rio abaixo, na barca desgraçadamente inventada. É melhor na corrida desesperada esquecer o carro. Ele é velho e principalmente feio e continuará estacionado, piscando seus faróis de criança mexendo nos botões. Corre de qualquer modo, pelado, despenteado, com o bolo nas mãos, a vela, o morto não respira mais e espera. Quem chegará para vê-lo, traz lágrimas vestidas em roupas negras, o último adeus.


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