Serão vinte e quatro horas brutas. Pode parecer muito, mas nem sempre é. Fico pensando em todos os afazeres. Levantar, escovar os dentes, conferir se as crianças estão no quarto. Nem sempre acho o fio dental na primeira tentativa. Há uma guerra deflagrada nas manhãs do meu lar. Cada um prefere uma marca de creme dental, e isso complica as coisas. Tenho que torcer para o chuveiro não sofrer uma pane, porque senão meu cronograma vai para o brejo. Supondo que tudo ocorra bem e que eu abra mão do café - o que não é lá algo muito fácil porque sou fumante - e que o carro pegue na primeira tentativa, Ã s nove estou no banco. Em frente ao banco para ser mais preciso. "Água, água! Suquinho de laranja, pra espantar a sede!" - grita o ambulante. Ainda sou do tipo que gosta de resolver alguns problemas na agência. Telefone e internet são muito bons para consultar saldo, mas há certas coisas que se tem de falar frente-a-frente com o gerente. Ainda mais agora que eles estão enfraquecidos. Quando eu era garoto os gerentes eram uma espécie de ser intocável, senhor das finanças, dos créditos, do poder e proprietários dos carros com até dois anos de uso. Hoje, não sei se feliz ou infelizmente, gerenciar uma agência não é lá essas coisas. Trabalhar em banco já foi sinal de status. Já foi.
Terei de contar com a boa vontade da porta eletrónica. Já evito levar celular e outros objetos metálicos, mas não há como me livrar da chave do carro. Venho com ela em punho, exibindo-a para o segurança e fazendo gesto de que a depositarei na caixa acrílica. Nem sempre isto funciona. Aliás, da última vez que fui à agência, depois de me livrar do chaveiro, a porta travou por causa de uma medalha de São Benedito que minha avó materna me presenteou na última visita que fiz.
- Volta pra linha amarela! - sentenciou o guarda.
Voltei. Duas, três tentativas. Tive de tirar a corrente. Ameacei trocar de banco, mas depois desisti porque simplesmente quase todos eles têm uma porta irritante como aquela. Uma hora e meia era minha previsão de ficar na fila. Dia 10, sabe como é... o importante era torcer para que o cartão magnético não perdesse sua magnífica magia de transportar os códigos que liberariam o DOC que eu teria de fazer. "Vai dar certo, vai dar certo" - rezei.
Se tivesse muita sorte, à s onze e pouco eu estaria de volta à liberdade das calçadas. Se tivesse azar, encontraria uma multa no pára-brisa do meu carro. Por falar nisso, meu carro já não inspira mais confiança. Vira e mexe tenho de encostá-lo para ele respirar livremente, capó alçado, litros e litros de água para resfriar o calor que ele sente nesses dias de verão. Quando chega o inverno a situação se inverte: é difícil de o danado pegar antes dos dez minutos de tentativas. O que mais tenho de fazer amanhã? Ah, sim. Ir à reunião da filha mais velha. O colégio marca ao meio-dia na esperança de os pais chegarem até a uma, mas a reunião só começa pra valer a uma e meia, duas horas. E sempre tem um pai que acha injusta a avaliação que o pimpolho recebe. Blá, blá, blá... e o tempo vai transcorrendo sem que o que se imaginara fazer naquele dia estivesse próximo. Não me recordo qual é o compromisso seguinte. Devo olhar na agenda. Onde está a agenda, afinal? Tenho o costume de deixá-la dentro de um compartimento da estante, junto aos CDs. Olho uma vez: nada. Duas: outro fracasso. Vêm-me à memória que amanhã é dia de aniversário de casamento (e isto eu não anoto na agenda). Fodeu! - concluí. Ir atrás de flores, telemensagens, aquele sapato que a patroa vem comentando a um mês. Pena eu não ser rico, porque poderia mandar um criado cuidar dessas coisas. Eu mesmo terei de ir ao shopping. E o que é pior: há quinze anos dou o mesmo tipo de flor, o que é uma sacanagem de marca maior. Fora isso, tenho certeza de que tinha um compromisso no finalzinho da tarde - só que não me lembro. Cadê a porra da agenda?
- Querida!... Sabe onde está minha agenda?
- Já procurou na estante?
Quis responder que, se ninguém a tivesse tirado de lá, não estaria perguntando. Mas é véspera de aniversário de casamento e as mulheres se sensibilizam com respostas mal educadas.
- Papá! Papá!
Beatriz, minha caçula, parece um anjo. Tem os cabelos encaracolados e a pele muito alva. Além do sorriso aberto, inocente, deliberado. Paro para dar um aperto em sua bochecha - que é um dos meus hobbies prediletos. Noto, então, que minha agenda está sob a guarda de suas pequenas mãozinhas. "Dá pro papai, amor! Dá?"
É tarde. As canetas hidrocolor já fizeram todo o estrago possível. Olho o dia. 14 de abril. Impossível reconhecer o que tinha anotado para aquele dia, tal a exuberància da obra de arte que Bia houvera traçado naquela página.
- O que vai fazer amanhã, amor? - quis saber a patroa.