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Contos-->A memória do fogo -- 01/07/2002 - 12:37 (Darques Lunelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A memória do fogo


Como as borboletas se precipitam para a sua morte na flama brilhante, assim os homens correm para a sua perdição.
BHAGAVAD-GITA


Sexta-feira


Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória.
FRIEDRICH NIETZSCHE

Está fazendo oito anos hoje, eu disse, sem olhar para ela. A janela estava aberta, mas não podia ver nada além da calça molhada que ela havia colocado para secar. Pensei que não faria diferença se colocasse noutro lugar, porque o tempo não ajudaria, podia sentir a umidade nos ossos, ainda que não olhasse para fora.
O quê?, ela disse, mas não repeti, porque pensei que não valia a pena se não lembrava. Talvez oito anos fizesse uma diferença enorme para uma mulher; ou, quem sabe, estivesse mentindo e lembrasse tanto quanto eu. Essa roupa não vai secar, disse ainda, fica cheirando como o cachorro.
O Pancho não fede. Dou banho, tiro as pulgas. Podes examinar.
Mas a roupa vai feder de qualquer jeito. Precisamos comprar aquela máquina.
Não podemos comprá-la.
Quando tivermos o que pediram, vai custar o dobro. Até parece que não conheces esses vendedores.
O problema não é esse.
Matilde disse que vem passar o domingo aqui.
Sozinha?
Não.
O vento sacudiu a calça e, adiante, sobre o muro, vi a primeira nuvem preta. Pancho tinha um chinelo na boca. Chamei-o para perto de mim, acariciei o pêlo, ele soltou o chinelo e ficou balançando o rabo.
Não coloca esse bicho dentro de casa.
Ele está na porta.
É assim que começa: quando menos se espera está dormindo na cama da gente.
Nisso tens razão.
Quê?
Nada.
Me ajuda a estender a roupa antes que comece a chover.
Por que estender a roupa aqui fora se vai chover não demora, pensei. Podia colocar tudo isso lá dentro, mesmo que fosse na sala, eu esticava uma corda.
O primeiro trovão veio do mar.
Ainda bem que terminamos a reforma.
Vinte minutos depois, ela pediu ajuda novamente. Tiramos as roupas da corda e as colocamos sobre uma cadeira, na sala. Então, sugeri esticar outra corda ali mesmo.
E por que não fizeste isso antes?
Fui até a despensa apanhar a caixa de ferramentas. Tinha uma corda de náilon azul, mais de trezentos metros. Cortei um bom tanto, depois apanhei as roupas e eu mesmo fiz o serviço. Pensei que estivesse no quarto, mas ouvi barulho de panelas na cozinha. Coloquei o chapéu e saí, precisava avisar Aristides que prendesse o barco, a tormenta vinha feia para o nosso lado.


Buenas.
Vim te avisar da tormenta. Pensei que não te lembrarias do barco.
Tomei chimarrão sozinho a manhã inteira. Te esperei, depois resolvi tomar sozinho.
Esqueci.
Entra que a chuva vai engrossar. A reforma da tua casa foi na hora.
Estava dizendo isso pra Ana antes de sair.
Me acompanhas numa caipirinha?
Aristides abriu a geladeira e mostrou um pacote.
É camarão. Leva pra Ana. Enquanto isso, preparo a caipirinha.
Quando voltei, Aristides estava sentado na varanda, olhando o mar. A sua era a última casa antes da praia. Havia sido construída de modo que o mar nunca a encobrisse, a menos que alguma coisa extraordinária acontecesse, como as geleiras derreterem, por exemplo. Quando a mulher ainda vivia, pintava a casa todo final de ano, mas depois, sozinho, achava inútil gastar numa pintura. A tinta descascava em todo lugar, dava pena ver a casa se consumindo daquele jeito.
Não sentes a falta da Dora?
Às vezes.
Estava esmagando limões dentro do copo de madeira. Ficou um instante olhando através da janela, depois disse: Mas foi melhor assim.
Lembrei o dia em que encontraram o corpo boiando perto da plataforma, não tinha mais os olhos e estava todo mordido; ou, talvez, tivesse batido repetidas vezes contra as pedras antes de vir à tona. Procuraram durante dias, mas o mar estava revolto.
A Moça está brava, disse Aristides naquele dia. Bem que avisei pra não sair com o mar assim.
A moça de quem falava era Iemanjá.
Quando a encontraram, atirou flores da plataforma em agradecimento por ter-lhe devolvido a mulher. Não quis morar conosco, então Ana vinha limpar a casa, lavar a roupa. Nas primeiras semanas dormi na sala, com medo de que levantasse no meio da noite e entrasse no mar. Medo bobo, mas era meu irmão.
Como está a menina no colégio?
Bem.
Está mocinha.
Catorze anos. E o guri, se fosse vivo, teria dez.
Eu nunca antes havia falado no guri.
Hoje está fazendo oito anos, continuei, e senti um nó na garganta. Noutros tempos conseguia disfarçar, mas estava ficando difícil, talvez por causa da idade.
Quando Ana nos chamou para almoçar, Aristides estava bêbado. Foi preciso ajudá-lo a subir o pequeno cômoro de areia que separava sua casa da minha.
A mesa estava posta. Levei Aristides ao banheiro e ele vomitou. Com certeza não havia comido nada, só o chimarrão antes da caipirinha. Se soubesse, não teria concordado com o aperitivo.
Queres um chá?
Não. Agora estou com fome.
Tive medo que notassem, então forcei a comida goela abaixo, e fui capaz de me servir uma segunda vez. Para falar a verdade, o camarão estava bom. A menina pediu licença para sair da mesa porque precisava arrumar os cadernos na pasta.
Hoje é o último dia.
Se passares de ano ganhas um presente.
Não precisa, tio.
Precisa sim.
Tu vais acostumá-la mal, Tide.
Isso é comigo, Ana.
Marcela me beijou antes de sair. Fui para a janela, como sempre, e acenei quando se voltou para certificar-se de que eu estava lá.
Vou dar uma caminhada por aí.
Com essa chuva?
O que tem a chuva?
Tirei os sapatos e a camisa e caminhei na direção da praia.


Era mais uma garoa, e mesmo que fosse forte, como viria a ser, não importava. Diziam que era perigoso sair num dia assim, porque os raios escolhiam justo a praia para cair, mas nunca tive notícia de alguém que morresse fulminado por raio desde que fui morar em Cidreira; afogados, sim. Quase todo mês alguém morria, às vezes por descuido, às vezes, não. Com o tempo, a gente não dava mais importância, só ajudava a procurar o corpo, ou a retirá-lo do mar quando aparecia boiando próximo da praia. Com Dora foi diferente, mas ela avançou em dia de tempestade, por isso seu corpo demorou a ser encontrado. E ninguém teve a idéia de procurá-la perto da plataforma, porque parecia improvável que a correnteza a levasse tão longe. É que a gente esqueceu que o mar é manhoso, feito mulher, quando a gente acha que pensa de um jeito, está pensando mesmo é de outro. Por isso não me atrevi a trabalhar no barco do Aristides: sempre respeitei o mar, mas ele lá e eu aqui. Tinha medo até mesmo quando a água ainda batia no meu peito. Preferia ficar deitado, barriga para cima, na areia, aproveitando o sol. Meu irmão mexia comigo dizendo que mais parecia um daqueles turistas que se torram sob o sol, mas não era assim, e nunca tentei explicar a ele os meus motivos por saber que certas coisas entre nós eram inexplicáveis. Poderia ter tentado perder o medo, mas talvez o tenha preservado por algum motivo que não sei, que talvez um dia se explique, não estou preocupado com isso, tenho outras coisas em que pensar.


Caminhei até o Bar Azul e vi o Santinho Mendonça bebendo. Apanhei uma cadeira e sentei ao seu lado.
Está vindo mansa, mas é só pra enganar.
Daqui a pouco desaba.
Tomas um trago?
Não, hoje não.
Sempre com esse teu jeito esquisito.
É o meu jeito.
E a Ana?
Está em casa.
Falei com o Aristides ontem.
Ele também está lá em casa.
Ah...
O dono do bar perguntou se eu queria alguma coisa. Pedi um guaraná para evitar que me olhasse de cara amarrada, mas o Santinho teve de pagar porque saí sem dinheiro.
Hoje é meu aniversário.
E tu aqui, homem?
E daí?
Daí que era pra estares com tua família.
Não lembram.
Então eu pago umas cervejas pra comemorarmos o teu aniversário.
Quando terminamos a segunda cerveja, o aguaceiro desabou, não dava para distinguir onde terminava a praia e começava o mar.
Hoje faz oito anos que o guri morreu.
E justo no teu aniversário.
Pois é: pra nunca esquecer.
E disso eles lembram?
Acho que não. Ou fingem que não. Não sei.
Talvez também devesses esquecer.
Talvez.
Não faz bem lembrar dessas coisas.
É, eu sei. Muita coisa a gente não deveria lembrar. Deveria esquecer no segundo seguinte ao o conhecimento. Num dia como este é que sinto a falta do pai.
Um dia vocês acertam os ponteiros.
Quem sabe? Talvez ele pudesse me ajudar a entender uma porção de coisas que não consigo sozinho.
Certas coisas a gente não entende por mais que viva.
Mas poderia ajudar. Ou tentar. Tu sabes do que estou falando.
Bebe.
Se resolvesse...
Alivia, o que já é uma grande coisa.
Mas depois a gente volta a lembrar.
Pareces uma mula.
Não dá pra desligar o pensamento, Santinho.
Mas dá pra pensar noutra coisa. Na tua filha, por exemplo, que está mocinha.
É.
E que vai precisar de ti não demora.
Tu achas que não penso nisso?
Se arrumasses um emprego melhor...
Mas onde? Te contei o que aconteceu terça-feira, não contei? Acho que eles nem desconfiam.
Melhor assim. Mais tarde, quando tudo estiver resolvido, tu contas. Agora é melhor sem mulher azucrinando. Eu sei bem o que é isso. Alfonsina não me deixa sossegado até hoje. Digo a ela que tentei, mas ela entende?
É diferente.
Se aceitasses a ajuda do Agenor também seria diferente.
Não. É melhor ele não saber o que acontece aqui.
Eu não te entendo, Gabriel. Tu gostas dela, não é?
Já gostei mais, mas ainda gosto.
O teu pai é quem está certo: a gente deve gostar de cintura pra baixo.
Ele consegue, eu não.
O Aristides também consegue.
É, o Aristides também consegue. Mas não sou nenhum deles.


A chuva não parou, sequer diminuiu. Parecia mesmo que não iria acabar. Tinha saído sem camisa, sem sapatos, comecei a sentir frio. Santinho insistiu para que eu fosse até sua casa vestir alguma roupa. Preferi não ir: Alfonsina poderia dizer qualquer coisa, mulher a gente nunca sabe, melhor evitar. Voltei para casa pela praia, a chuva batia no meu rosto. Doía um pouco, mas não era nada que não pudesse suportar. Até fazia bem aquela chuva fria batendo na cara. Às vezes era obrigado a caminhar de olhos fechados, mas não tinha problema, o caminho era plano.
Vi luz no quarto do Aristides, àquela hora bem poderia estar dormindo, mas estranhei que deixasse a luz acesa para dormir. Me aproximei em silêncio, mas poderia ter feito o barulho que quisesse: a chuva abafaria qualquer som, mesmo os trovões pareciam vir de muito longe.


Onde o senhor estava, pai?
Por aí, na chuva.
A mãe saiu?
Saiu. Mas deve voltar logo. Aconteceu alguma coisa?
Alguém tem de buscar meu boletim.
Se Ana não for, eu vou.
Prefiro que o senhor vá.
Então eu vou.
Essa roupa vai ficar aqui?
Até secar.
A mãe é louca: onde já se viu lavar roupa num dia desses?
Não diz assim, Marcela.
Ela estava passando café quando saí do banheiro. Apanhei um pedaço de pão seco e dei-o ao Pancho.
Nada falamos enquanto tomávamos café. Sentia vontade, mas não falei nada. Preocupar a menina com coisas minhas não era do meu feitio, ainda mais assunto tão sério. Vez que outra ela me olhava de um jeito, meio de lado, querendo adivinhar meu pensamento. Eu desviava, puxava um assunto que nada tinha a ver com o que eu estava matutando, mas me parecia que ela não acreditava. Me conhecia muito, quase impossível enganá-la. Estranho como as crianças crescem, a gente nem percebe. Olhei pela janela da cozinha. Acima do muro via a brancura da chuva. Ana esquecera um prendedor na corda, pela cor da madeira dava para ver que estava encharcado. Talvez depois da chuva não servisse para nada.
Que idade eu tinha quando maninho morreu?
Seis.
Ele teria dez agora.
É, teria.
Levantei apressado e fui apanhar o prendedor. Coloquei-o dentro da cestinha de plástico azul, depois sentei novamente.
Hoje é seu aniversário e ninguém lembrou.
Tu lembraste.
Mas só eu. O senhor se conforma com pouco.
A gente aprende, com o tempo, que é preciso abrir mão de algumas coisas, adiar outras.
Não é disso que estou falando.
Tu és muito nova pra pensares desse jeito, filha.
Talvez eu seja como essas crianças que sabem mais do que deveriam. Talvez o senhor tenha me ensinado a ser assim.
Então não fui justo.
Nem tudo é, pai. O senhor acaba de dizer.
Tua mãe sabe desses teus pensamentos?
Não.
Uma pena.
Ela parece não se importar. Acho que até prefere...
Não consegui dizer mais nada. Foi Marcela, depois que terminou a arrumação da cozinha, quem falou.
Agora eu posso lhe dar outro abraço.


Demorei?
Eu estava descascando batatas.
Não tive coragem de sair da casa da Rita com essa chuva. Mas não teve jeito.
Toma um banho e troca essa roupa.
É isso o que vou fazer. Como foi no colégio, filha?
O pai vai apanhar o boletim segunda-feira.
E o trabalho, Gabriel?
Não vou trabalhar segunda-feira.
Nesse caso, até prefiro.
Marcela me olhou e sorriu.
Acho bom chamar o tio.
Eu vou.


Vi a janela da sala aberta. Era costume seu fumar, à noite, na varanda. Não arredava o pé antes que alguém o chamasse. Geralmente era Marcela. Parei um instante para observá-lo. Não conseguia ver seu rosto. Via a brasa do cigarro dançando no ar, apenas isso. Longe, o mar. E a chuva que continuava caindo.
Vamos jantar? Ana atrasou-se na casa da Rita por causa da chuva.
Chuvinha danada. Não parou o dia inteiro.
Encontrei o Santinho no Bar Azul.
Não queres beber alguma coisa?
Bebi demais com o Santinho.
Pois eu estou com vontade de dar mais uma bicadinha. Pra abrir o apetite.
Serviu-se de uma dose de cachaça. Depois acendeu outro cigarro.
Estou pensando em ir embora.
Por quê?
Acho que cansei daqui.
E quando vais?
Breve.


Ninguém falou durante o jantar. Apenas o barulho dos talheres, as facas arranhando a superfície dos pratos e a comida sendo triturada pelos dentes. A chuva não diminuíra, mas eu sabia que não duraria mais do que um dia. Pancho arranhava a porta da cozinha, e foi necessário certo esforço para não levantar e deixá-lo entrar.
Depois, nos sentamos na varanda, Aristides acendeu um cigarro e Ana perguntou se queríamos café. Quando trouxe as xícaras eu estava com o livro aberto sobre as pernas. Havia lido umas poucas linhas e parara porque não podia me concentrar no que estava escrito. As palavras dançavam à minha frente, como se não quisessem que as decifrasse. Não era sono, era outro tipo de cansaço. Marcela foi deitar-se cedo. Pancho aninhou-se aos meus pés, sentia o seu coraçãozinho batendo rápido e o calor do seu corpo. Vez que outra suspirava, e fiquei admirado porque nunca antes havia reparado que fazia isso.
Quando Aristides disse que estava na hora de ir e levantou-se, perguntei se queria companhia para o chimarrão.
Claro.
Ainda mais que podem ser os últimos dias.
Ana me olhou.
O mano disse que vai embora.
Embora?
É.
Vi-o afastar-se, sem olhar para trás, e podia, se quisesse, adivinhar seus pensamentos. Ou, talvez, fosse ele a adivinhar os meus. Ana largou a camisa que costurava e foi até a cozinha. Ouvi quando a porta dos fundos foi aberta. Ao voltar, disse que fora verificar se não deixara nenhuma roupa na corda. Voltou à camisa. Meia hora depois, disse que estava cansada.
Vou continuar lendo.
Tens mesmo paciência. Não entendo como consegues perder horas de sono lendo essas porcarias.
Não são porcarias.
Tentei continuar a leitura, mas não consegui. O vento fez a chuva mudar de direção e molhar a varanda. Recolhi as cadeiras, fechei a porta e fui para o quarto. A luz estava acesa, sempre deixava a luz acesa para eu apagar quando fosse dormir. Estava deitada de bruços, vestia apenas uma calcinha branca. Tirei a roupa e deitei. Fiquei um bom tempo olhando para ela, seminua. Deslizei a mão sobre as pernas, sobre as costas dela, afastei os cabelos do pescoço e beijei-lhe a nuca. Ela se mexeu, mas continuou dormindo. Colei meu corpo ao dela e, quando a beijei novamente, abriu os olhos. Não disse nada, e eu fingi não ver contrariedade nos seus olhos. Foi tudo muito rápido. Fiquei deitado sobre ela, tentando recuperar o fôlego, depois escorreguei o corpo para o meu lado da cama. Ela procurou a calcinha entre os lençóis, vestiu-a e virou-se de costas para mim. Apaguei a luz a fiquei de olhos abertos, mirando o teto, ainda que não pudesse ver nada. Os únicos sons que distinguia eram os do mar e da chuva. Demorei a conciliar o sono, mas lembro que a última coisa em que pensei foi na saudade estranha que sentia de Dora.


Sábado


Antigamente, eu contava, contava até trezentos, quatrocentos, e com outras coisas mais, a babel canora dos pardais ao amanhecer, eu contava, ou por nada, por contar, depois, eu dividia tudo por sessenta. Isso fazia o tempo passar, eu era tempo, eu devorava o mundo. Não mais atualmente. A gente muda. É só continuar vivendo.
SAMUEL BECKETT

Muito antes de amanhecer eu estava acordado e ouvi os passos dos primeiros pescadores na direção da plataforma. Começava a época em que os turistas chegavam, as primeiras casas eram abertas. Levantei sem acordar Ana, tomei café e estendi a roupa molhada na corda, dava para ver pela cara do tempo que não choveria mais. Consertei o portão que estava quebrado. Quando entrei na casa, pela cozinha, Marcela estava saindo do banheiro.
Hoje é sábado, pai... Me faz companhia?
Já tomei café, filha.
Sentei à sua frente, olhando através da janela, e por sobre o muro vi que o céu começava a tornar-se azul.
Esmagava migalhas de pão quando ela tocou minha mão e disse:
O que está acontecendo, pai?
Nada... Estou me sentindo estranho.
Estranho como?
Só estranho.
O senhor não vai tomar chimarrão com o tio?
Vou, mas ele ainda não acordou. A janela está fechada. É a primeira coisa que faz quando acorda: abrir a janela para ver o tempo, olhar o mar.
Pancho levantou as orelhas e, em seguida, correu para a rua, latindo.
Deve ser o doutor Bentho, disse Marcela. Falou que viria abrir a casa neste fim de semana.


Ela batia a roupa contra a tábua, tinha as mãos vermelhas porque fazia frio e eu pensei que bem poderia comprar umas luvas para não machucar tanto as mãos, mas não disse nada, continuei ouvindo.
Ele não presta. Já pensei tanta besteira. Se começasse a te contar tu não acreditavas. Mulherengo, cachaceiro. Minha sorte foi não ter embarrigado, porque filho é muito bom, mas ancora a gente. E tu inventaste de fazer outro quando a menina já estava crescida.
Ela colocou as roupas dentro de uma bacia grande, apoiou-a na cintura e caminhou na direção da corda. Depois, pegou os prendedores na cozinha e voltou para estendê-las. O vento batia nos seus cabelos. Às vezes, ela passava a mão sobre eles, mas o vento tornava a jogá-los sobre seus olhos.
Mulherengo, ela continuou, disso eu já sabia quando me casei. Capaz de ter filho com alguma delas. Não me espantaria se algum dia batessem aqui com uma criança nos braços e dissessem: Olha, esse menino é do Tide. Não duvido nada.
Tu estás exagerando.
Não estou. Tu sabes que não estou exagerando. Não queres é dar o braço a torcer, porque é teu irmão. Se te contasse o que sei eras capaz de dizer que invento. Mas te digo uma coisa: se puderes, volta pra casa mais cedo um dia desses, entra sem fazer barulho, aí vamos ver quem está com a razão.


Estou quase pronto, ele disse. Tinha raspado a barba, aparado o bigode, penteado os cabelos. A roupa não era nova, mas estava limpa, e usava sapatos. Amanheceu um dia bonito, não é mesmo?
É. Deu até pra te alegrar.
Acordei com vontade de dar um jeito na cara. Tu não achas que estou enfeitado demais?
Não.
Sonhei com a Dora.
Com a Dora?
Pois é, com ela.
Deve ser porque falamos nela ontem.
Deve ser.
Tomou o primeiro chimarrão e cuspiu a água fora, depois despejou outro tanto de água quente na cuia, ajeitou a bomba.
Pensei muito nela.
Nela quem?
Na Dora, homem!
Ah.
Acho que é saudade.
Ela está bem, tenho certeza.
Eu sei. Bem melhor onde está do que aqui.
O que tu queres dizer com isso?
Tu sabes.
Não, não sei.
Pois deverias saber.
Saber o quê?
Como ela se sentia aqui.
Olha, Gabriel, a vida que tinha com a Dora é assunto meu.
Tu transformaste em assunto meu também. Eu gostava muito dela.
Mas isso não te dá o direito de insinuar nada.
Não estou insinuando, Tide.


Queria não ter falado daquele jeito, mas estava chegando num ponto em que não conseguia disfarçar: nem a dor pelo meu filho, nem pela morte da Dora. Tinha as outras coisas, mas isso podia esperar. Eu achava que podia esperar.
Caminhei até a plataforma. Logo na entrada encontrei o Santinho e o Maneco do Bilhar. Me convidaram para beber, mas achei que era cedo demais. Mesmo assim, sentei, conversei sobre a pesca. Eles diziam que o ano seria bom, os peixes pulariam para fora d’água. Nunca entendi nada de pesca, por isso não me atrevi a nenhum comentário.
Era bom ficar ali com eles, ouvindo o barulho das ondas quebrando na areia da praia, jogando conversa fora.


Eu voltei mais cedo para casa porque quando cheguei no trabalho o capataz me chamou e disse que precisava falar comigo, sozinho. Perguntei se fizera algo errado, ele respondeu que não, nada errado, mas mesmo assim não tinha notícia muito boa.
Recolhi minhas coisas e saí sem me despedir do pessoal. Tinha dentro do peito uma pedra, não queria demonstrar. Fui a pé para casa, pela praia. Não estava pensando em nada, mas quando vi a casa do Tide aberta, achei que podia falar com ele. Bati na soleira da porta e entrei, mas ele não estava. Foi pescar, pensei, e tomei a direção de casa. Entrei pela cozinha, guardei minhas coisas no armário, tomei um copo d’água e foi só então que ouvi as vozes, vindas do quarto. Pensei que fossem as duas conversando e quase entrei sem bater, mas percebi em tempo que a segunda voz não era de Marcela. Não dava para entender o que diziam, mas pude ver pela fresta da porta entreaberta as pernas deles entrelaçadas e a mão do Tide alisando as suas costas. Endureci, congelei, e pensei na cunhada, que não estava mais por perto para dividir comigo a minha descoberta. Mas isso foi na terça-feira, hoje é sábado. Chego a pensar que foi sonho. É só quando se olham que volto a acreditar.


O doutor Bentho Villiger trouxe mais livros. Estava lavando o carro quando cheguei em sua casa. Me abraçou e perguntou como eu estava e sorri dizendo que estava bem, melhor do que nunca.
Contou que passara uns dias em São Paulo, me convidou para tomar chimarrão e eu aceitei. Sentamos sob as árvores, ele contando sobre a viagem. Sua voz parecia vir de longe, como ontem pareciam os trovões. Eu balançava a cabeça concordando. É que estava pensando noutras coisas.


Fui para o Bar Azul e bebi. Depois, chegou o Santinho e eu contei tudo a ela porque precisava contar para alguém. Ele sabia de tudo, desde a morte da Dora.
Vai ver foi assim que aconteceu quando o guri morreu. Agarrados daquele jeito não dava tempo de socorrê-lo. Vai ver nem perceberam que o galho caiu sobre a casa. Vai ver nem estavam lá em casa, só o guri.
Não pensa mais nisso, ele disse e eu ri porque parecia engraçado ele dizer aquilo, como se fosse possível a gente desligar.
Nem que fosse mágico.
Anoitecia quando voltei. A janta estava pronta. Marcela foi chamá-lo. Ana perguntou se eu tinha bebido.
Duas cervejas.
Estou vendo...
A comida não desceu.


Domingo


A vida do fogo, toda ela feita de crepitações e de movimentos rápidos e intermitentes, acaso não traz à lembrança a vida do formigueiro?... Ao menor acontecimento, vêem-se as formigas que fervilham e saem, tumultuosamente, de sua morada subterrânea; do mesmo modo, ao simples acender de um fósforo, vêem-se os animálculos ígneos se reunirem e se manifestarem, exteriormente, sob uma aparência luminosa.
GASTON BACHELARD

Muito cedo fui tomar banho de mar, parecia que meu corpo todo estava empoeirado e por mais que esfregasse sob a água do chuveiro, com sabonete, sabão, esponja, fosse o que fosse, não conseguia me livrar da sujeira.
Entrei no mar quando amanhecia e pedi à Moça que me limpasse, limpasse minha alma, afastasse de mim aquele mal-estar, levasse para longe. Fiquei horas dentro d’água, até Marcela me avisar que Matilde e o marido perguntavam por mim.
O Tide estava lá, sentado na varanda, conversando com o primo. Não levantou os olhos para mim, e eu dei graças a isso porque não queria mesmo olhar nos olhos dele. Desde ontem me sentia assim, sem vontade de olhar para ele. Cumprimentei o primo e sentei ao seu lado. Reparei que estava velho. Tinha no rosto umas rugas que antes eu não vira, talvez tivessem aparecido nesse tempo em que não nos encontramos. Ele viajava muito, ficava meses sem aparecer em casa.


Aristides e o primo foram comprar cervejas antes do almoço. Quando voltaram a mesa estava posta. Pelos olhos vermelhos percebi que tinham parado para aperitivar, provavelmente no Bar Azul. Colocaram as cervejas na geladeira e sentaram-se, tagarelando. Eu, que não entendia o motivo dos risos, fiquei quieto, comendo e bebendo.
Quando terminei, apanhei uma garrafa de cerveja e sentei novamente na varanda. Eles continuavam conversando na cozinha, rindo, enquanto Matilde lavava a louça. Vi Marcela caminhar na direção da praia, estava um dia bonito depois da chuva. A grama ainda molhada, o céu limpo, sem nuvens. Pedi a Ana que trouxesse outra cerveja.
Vê se te controla. Temos visita.
Diz isso pro teu cunhado.
Ele não é meu marido.
É verdade. Tinha esquecido.
Não começa, Gabriel.
Não estou começando nada. Estou terminando.
O que os primos vão dizer te vendo aqui sozinho?
Nada. Me conhecem.
Eu é que não te conheço mais.
Nem eu, Ana, nem eu.


Deitei na cama de Marcela. Ouvia os passos pela casa, o som das vozes, mas não entendia o que diziam. Quando fechava os olhos, dentro da escuridão, eu via tudo girando: pequenos pontos luminosos que passavam rápido, um labirinto de pontos que convergiam.
Adormeci.


Quanto tempo passou, eu não sei, mas quando acordei, sem ouvir as vozes e os passos, e percebi, depois de procurar pela casa inteira, que a prima e o marido tinham ido embora levando Marcela, já que suas roupas não estavam no armário, e que eles também tinham saído, senti raiva. Não: senti ódio.
O Pancho estava deitado na soleira da porta e levantou os olhos para mim, sacudiu o rabo.
Não te deram comida, cachorrinho?
Apanhei umas sobras que estavam dentro de um prato sobre a pia e despejei na tigela dele, afaguei sua cabeça e fiquei um tempo olhando-o comer. Depois, fui ao banheiro, molhei o rosto, os cabelos.
Estava escurecendo, mas não acendi as luzes, fui para a varanda, fiquei sentado lá um bom tempo. Foi quando vi a lua aparecer sobre o telhado da casa do doutor que decidi sair. Não tinha certeza, mas pouco importava porque meus pés adquiriam vida, me conduziam.
Apanhei, na despensa, a corda de náilon azul, uma faca e a caixa de fósforos. Apesar da lua, a noite estava escura, quem não estivesse acostumado com o caminho bem poderia cair num daqueles atoleiros do terreno baldio que atravessei.
Não ouvi as vozes, mas a luz do quarto estava acesa. Aproximei o ouvido da parede e ouvi o resfolegar deles lá dentro, os ai meu Deus vou morrer que ela me dizia no começo.
Caminhei até o barco e apanhei o galão de combustível. Estava cheio. Tive o cuidado de não deixar entornar. Molhei primeiro as janelas, depois as portas. As paredes foram as últimas. Voltei ao barco e procurei pelo outro, sabia que havia um de reserva, e retornei para molhar ainda mais as paredes.
Às minhas costas, ouvia o mar. Tinha o brilho da lua sobre a minha cabeça, a areia se enfiando entre os dedos dos meus pés, e um ódio fundo que me embriagava. Acariciei a caixa de fósforos dentro do bolso da calça. Cortei um tanto da corda e amarrei a porta da frente ao pilar da varanda; depois amarrei a dos fundos. Não foi possível com as janelas, mas isso agora não tinha importância.
Ana, eu gritei, estás me ouvindo, Ana?
Não sei dizer se foi impressão, mas quando o fogo se alastrou pela parede do quarto, pensei ter visto o Tide abrir a janela e gesticular para mim. Foi tudo muito rápido, a madeira era velha, não demorou a queimar.
Aproveitei, então, a luz do incêndio que iluminava o caminho para voltar para casa, com a sensação de trazer às costas as invisíveis asas de uma borboleta azul.

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