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Contos-->Acerca de meninos e de borboletas -- 01/07/2002 - 12:37 (Darques Lunelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Acerca de meninos
e de borboletas



For the drift of the Maker is dark, na Isis hid by the veil.
ALFRED, Lord TENNYSON

Saiba-se, pois, que os fatos foram o que descrevo, mas a interpretação que deles extraio é o que sou agora.
JEAN GENET

Como o senhor bem sabe, não existe esconderijo melhor do que a exatidão.
HUBERT FICHTE




Dante entrou na boate sem me ver e dirigiu-se ao bar. Então pensei que talvez fosse por não gostar de vê-lo assim que tudo viesse à lembrança. Bastava colocar os olhos nele pra lembrar de Laura chorando e do Pai, sentado na caixa-de-lenha, dizendo que não era possível fazer nada, estava velho demais. Lembrei de Dante colocando balas no tambor do revólver e saindo sem dar atenção aos pedidos de Laura pra que não fizesse nada ao Castelhano, porque já estava decidida a procurar a velha Bita Parteira e desvencilhar-se do motivo daquela vergonha.
Naquele tempo eu não entendia direito o que estava acontecendo, apenas sabia que era impotente diante da fúria de Dante e da fraqueza do Pai. Quando ouvimos os comentários no dia seguinte, foi como se tudo se transformasse. Diziam que o Castelhano fora encontrado perto do Parque de Exposições, em meio a uma poça de sangue, que tinha o pênis decepado colocado sobre seu peito, que tinha os olhos arregalados e a boca entreaberta.
Dante cambaleou na minha direção, tentando não entornar o copo de uísque que pedira no bar. Tinha a camisa aberta e os olhos vermelhos, ainda que não pudesse vê-los. Sabia que não gostava que bebesse, e mais ainda que me procurasse nessas ocasiões, por isso parou diante da mesa e perguntou se poderia sentar.
Só um minuto, depois vou embora.
Esse é Dante, meu irmão, disse a Lotário Lébris. Acendi um cigarro. Queres que te leve pra casa?
Não do jeito que estou. O Pai, a Laura, não quero que me vejam assim. Uns amigos vêm me apanhar aqui, vamos pra Santo Ângelo.
Dante conservava a beleza que encantara as mulheres da casa de Nenucha, mas o que eu podia distinguir na semi-escuridão da boate era um homem envelhecido prematuramente. E era insuportável a visão do meu irmão em tal estado, a baba escorrendo pelo canto da boca. Levantei e caminhei até onde Bel estava, disse ao seu ouvido que me ajudasse, segurasse minha mão. Ela não entendeu meus motivos, mas fez o que pedi.
Quando voltei pra mesa, Dante já havia saído e Lotário contou que durante alguns anos divertiram-se juntos nos puteiros dos arrabaldes da cidade e nos bares cuja clientela era formada por desgarrados de todo tipo: mendigos, bêbados, prostitutas, desempregados, os marginais que faziam a noite estremecer com seus gritos, suas brigas, e seus gemidos de prazer e alegria comprados. Mas eu pensava no Pai que dizia Não condene teu irmão sem antes ponderar sobre o que aconteceu. Homens como ele, como eu, foram ensinados a agir assim, animais que se esgueiram entre as árvores e preparam o bote antes mesmo que o outro perceba a possibilidade, ainda que remota, de atacar primeiro. E o que fez o Castelhano foi atacar primeiro, ferindo não somente Laura, mas a mim e a ele. Porque tu sabes do amor que tem por ela, do carinho com que a cerca. E tu podes dizer que isso não é razão pra tanto, mas o que tu sabes da vida, guri? Foi acompanhando o velho Nereu que aprendi. E, mais tarde, acompanhando aquela gente que nem sabia por que lutava. Lá o que valia era a palavra empenhada, porque homem honrado não se desmente e é com sangue que se responde a um insulto. Eu sei que nenhum de vocês me perdoa por não ter feito nada, mas o que vocês não sabem, e tu, o que tu não sabes é como uma pessoa como eu se sente depois de todos esses anos, porque nenhum de vocês esteve naqueles campos enquanto os tiros pipocavam e a gente não sabia onde se esconder; nenhum de vocês esteve por perto nos momentos em que se sentia no ar o cheiro de uma tocaia e a certeza de que dali a alguns metros tudo poderia estar terminado. Nenhum de vocês sabe o que é isso e, pra encurtar o assunto, nenhum de vocês teve de olhar nos olhos do sujeito espetado na lâmina de um punhal, nem teve de limpar o sangue da lâmina na fralda da camisa e certificar-se de que não há outro esperando sua vez de se trespassado e também ouvia a voz de Laura dizendo Enquanto ficavas ouvindo as histórias nojentas do Pai, eu me trancava no quarto e fingia ser outra pessoa. Algumas colegas de colégio já namoravam e perguntavam se eu não tinha ninguém. Um dia, saindo do colégio com Flora, eu o vi, a pele morena, o bigode negro dividindo seu rosto, senti um frio dentro de mim, as pernas fraquejaram. Flora perguntou O que foi? e eu disse que estava tonta de fome porque passava do meio-dia e eu não tomara café. Ele percebeu meu embaraço, e me encarou como se quisesse me desnudar. Ah Hiram, tu não podes imaginar como uma mulher se sente ao ser olhada assim.
No dia seguinte, estava escorado no muro, fumava, Perguntou se poderia nos acompanhar. Flora puxou conversa. Limitei-me a olhares furtivos, e toda vez ele estava me fitando, sorrindo, sem prestar atenção ao que se dizia. Então, desapareceu. À saída, procurava ansiosa, me retardava pensando que talvez mais tarde viesse. Quando não tinha mais esperanças, o vi passar em frente de casa. Estava no quarto, vocês na cozinha. Abri a janela e esperei que voltasse, o coração saindo pela boca, as pernas trêmulas. Sem que vocês percebessem, veio até a janela, entregou-me uma rosa e foi embora, sem dizer uma palavra. Esperei, resignada, porque não me interessava nada além dele. E esperaria pelo resto da minha vida, fosse necessário. Somente eu sabia a aflição que me provocava e imaginava o dia em que seria tocada por aquelas mãos. Sabia que ele não temeria obstáculos e não demoraria a atrever-se a ultrapassar as frágeis fronteiras que nos separavam. À noite, me banhava cuidadosamente, colocava um pouco de perfume e trocava os lençóis, deixava a janela entreaberta pra que não encontrasse dificuldades. A cada barulho, abria os olhos e esperava, olhando o buraco da janela, até que vi, iluminada pela luz da rua, a sombra deslizar pra dentro do quarto. Levantei a ponta do lençol e esperei que se livrasse das roupas. Ao deitar-se, senti o cheiro do corpo de homem e me vi lançada num abismo, caindo, caindo, mas não sentia medo, suas mãos me seguravam.
Aqui está a rosa que me entregou na primeira visita, intacta, a não ser pela passagem do tempo que não perdoa sequer os símbolos que inventamos pra preservar do esquecimento o que amamos. Porque nada mais são do que uma tentativa de inscrever no tempo um nome, uma data, um fato, pra que quem quer que o veja lembre-se que um dia isso e aquilo aconteceu. É somente assim que conseguimos sobreviver: na memória, na lembrança por isso não prestei muita atenção ao que ele me contava.
Bel pediu que saísse e esperasse no carro de Beatriz, Pensei que quisesse contar algo longe dos outros. Paguei minha conta e saí.
Sentei no banco traseiro, espiando a noite. Agora me parecia uma tolice grande o telegrama que enviara pela manhã, numa tentativa de acertar minha vida, como se a mensagem escrita pudesse modificar meu destino. Talvez melhor fosse deixar as coisas como estavam. A primeira a sair foi Beatriz, procurando na bolsa os cigarros. Atrás dela vi Sofia, Bel e Lotário.


Lembro pouco dela, disse Lotário, embora o que saiba não precisasse de imagem, trata-se de sentimento, e nem sempre é possível descrever um sentimento ou traduzi-lo numa imagem.
Tinha os olhos voltados pra porta e pareceu-me que seus lábios tremiam. Estávamos sozinhos na sala da casa de Beatriz, e talvez fosse a música que ouvíamos que tivesse despertado em Lotário a vontade de falar; ou talvez tivesse agora a confiança necessária pra contar o que eu percebera nos seus olhos, ainda no Casa Nossa.
Certa vez, ela me convidou pra sair, à noite. Disse que precisava de mim porque assim se sentiria mais segura. Caminhamos em silêncio, era inverno, procurava esquentar minhas mãos dentro dos bolsos do casaco. Ela não disse nada, até que vimos, longe, dois faróis iluminando a estrada. Venha, disse, e eu a acompanhei. Entramos no carro. Eu olhava através da janela, tentando ver a plantação, mas a escuridão era quase total. Além disso, os vidros estavam embaçados. Vi que cochichavam, mas não prestei atenção ao que diziam. Então, ela pediu que saísse e esperasse lá fora. A luz vinda do carro era suficiente pra procurar um lugar pra sentar. Ouvia atrás de mim as folhas das plantas moverem-se, ou, talvez, tenha sido impressão, porque não havia vento naquela noite. Fazia frio. O céu não estava encoberto, havia estrelas e contei duas ou três dezenas delas. Vi a porta se abrir. Acreditei que esse era o sinal pra que eu entrasse. Ela estava com as pernas levantadas, os pés escorados no pára-brisa, e ele no meio delas, a cara contorcida, pressionando, fazendo força pra algo entrar em algum lugar dentro dela, no meio das pernas. Ela virou o rosto e gritou Volte, volte.
Parou como se quisesse ouvir a música, depois continuou.
Ele nos deixou próximo de casa, o resto do caminho percorremos a pé. Eu agora contava os passos. Antes de me colocar na cama, perguntou se eu não queria um copo de leite morno, talvez ajudasse a me aquecer. Não quero nada. Estou cansado. Está bem, ela disse. Amanhã vamos comprar aqueles sapatos que viste na vitrine da loja, combinado?


Quando voltaram com as bebidas, Bel contou-nos que haviam entrado na boate e viram Dionéia dançando com um sujeito de cabelos escuros que parecia ser Ado da Noca. Perguntei quem era, e Lotário respondeu que se tratava de um filho da puta que algum dia teria o que merecia.
Não vais busca-la?
Não.
Mesmo sabendo que pode ser Ado da Noca.
Mesmo assim. Se ela acha conveniente dançar com esse sujeito, que dance. Assim não poderá dizer nada sobre o que fiz, e menos ainda sobre o que farei.
O Casa Nossa está quase vazio. Max perguntou se não voltaremos mais tarde.
Até que não é má idéia.
Também acho. Não vou agüentar ficar o resto da noite trancada nesta casa.
Teu irmão está lá.
O Dante? Mas ele disse que iria pra Santo Ângelo com os amigos.
Bêbado como estão não poderiam ir muito longe, disse Bel.


Max estava passando café quando chegamos. Olhei ao redor, tentando identificar algumas caras, mas me pareceram todas estranhas, exceto a de Dante, que tinha na mão direita um copo de cerveja pela metade.
Lá está ele.
Já vi.
Pedi ao Max uma dose de vodca e percebi que Lotário também olhava pra mesa onde Dante estava. Os três homens que o acompanhavam eram desconhecidos, e não teria me interessado saber quem eram não fosse a cara de Lotário. Beatriz os conhecia.
Então, olhei pra eles. Pela intimidade com que conversavam, cheguei a pensar que eram os amigos que Dante levara consigo naquela noite em que saíra em busca do Castelhano, mas procurei pensar noutra coisa, a noite estava pela metade e não queria antecipar a hora de voltar pra casa. Havia passado pela minha cabeça a idéia de ir até a rodoviária, por volta de seis da manhã, esperar pelos ônibus que vinham de Porto Alegre.
Isso aqui não está me agradando.
Por quê?
Olha quem está com o irmão do Hiram.
Vi quem está com ele, mas não sei por que isso te incomoda. Se ficarem lá, e nós ficarmos aqui, nada vai acontecer. A menos que estejas planejando algo. Se for isso, me diga, Lotário. Não quero participar das tuas confusões.
Calma, Beatriz. Será que nem um comentário eu posso fazer?
Se esperavas que me calasse ao ouvir tuas asneiras, te enganaste. Dionéia está na Buraco Negro, lembras?
Por favor, sem brigas.
Ninguém está brigando, Sofia.



Dante tinha a camisa manchada na altura do peito. Tinha vomitado, provavelmente logo depois de sair da boate. Um dos sujeitos que estava com ele fez um sinal na minha direção. Dante levantou o copo e sorriu, mas não conseguiu manter o olhar, como se o peso dos olhos inchados fosse demasiado. Os outros riram, e pensei no Pai, não gostaria que visse Dante naquele estado, embora soubesse que em casa adivinhava onde andava o filho desgarrado, e o outro também, aquele a quem não conseguia compreender. Senti vontade de levantar e falar com Dante, ao menos dizer que se limpasse um pouco, talvez molhando a camisa a mancha desaparecesse, mas recuei, porque sabia o que diria. E talvez acrescentasse uma gracinha que me obrigasse a devolver os insultos que engolia como pedras desde a infância e Era ainda muito cedo pra ele sair, porque não precisaria caminhar mais do que três quarteirões até a rodoviária, e faltava mais de uma hora pro ônibus partir. A Mãe tirou o pão do forno, colocou-o sobre a mesa e olhou pela janela, acenou e voltou os olhos pro pão fumegante. A mala parecia vazia, colocara apenas o necessário pra um dia, porque também o tempo em Cruz Alta seria breve, tão breve quanto a caminhada até a rodoviária. Uma camisa, meias, uma cueca, talvez um casaco, prevendo a possível, mas pouco provável, mudança de temperatura. Nada disse, exceto que viajaria e que não demoraria mais do que um dia, o que tinha a resolver era pouco, pra isso bastaria uma conversa, meia dúzia de palavras, talvez nem fosse preciso esperar pela resposta. A Mão não perguntou o que diria quando a encontrasse, nem recomendou calma Sei como esse homem é. Mesmo que dissesse pra ao viajar, iria do mesmo modo, então o melhor a fazer é não dar importância, e quando voltar dessa viagem estúpida estarei com minhas coisas prontas. Tenho casa pra cuidar, roupas pra serem lavadas, e com isso é mais do que pedi a Deus. Não estou reclamando, filha, não tenho esse direito. Estarei esperando com a casa em ordem, a comida pronta, a roupa limpa, e farei o que pedir sem perguntar como foi a conversa ou como ela está, não porque não queira saber se continua bonita, mas porque não me dará resposta alguma. Atravessou o pátio sem olhar pra trás e ganhou a rua com passos curtos e rápidos. A Mãe, se quisesse, poderia esclarecer o motivo da viagem, mas nada disse. E quando retornou, trouxe Dante. Foi então que a Mãe começou a morrer.
Não falaste com teu irmão?
Ele me parece ocupado com aquelas cervejas, Bel. Melhor aproveitar a noite, que não demora acaba. Ainda vou à rodoviária esperar pelos ônibus.
Queres que vá contigo?
Não.
Posso participar dessa conversa, disse Beatriz.
Estava dizendo que vou esperar pelos ônibus, quando amanhecer.
Detesto ônibus. Meus pés incham. Meu ex-marido me obrigava a viajar com ele, eu odiava. Mas o acompanhava, principalmente no início, quando não brigávamos tanto.
É a primeira vez que falas nele, disse Sofia.
Sério?
Hiram, que tal outra dose?
De agora em diante, somente refrigerante, meu amigo.
Que bobagem! A noite mal começou.



Foi Sofia quem viu Ado da Noca entrar. Estava de costas pra porta e percebi o olhar que trocou com Beatriz. Lotário levantou os olhos. Ado da Noca pediu algumas cervejas e disse que mais tarde voltaria, agora tinha algo importante pra fazer: uma rês quase nova que precisava abater.
Isso não demora, disse a Max. A gente aprende com o tempo a lidar com esses bichos, e quanto mais manhosa, mais vontade a gente tem.
Podes emprestar o carro, Beatriz?
Pra quê?
Podes emprestar, por favor?
Pra saíres atrás do Ado da Noca?
Que adodanoca, nada!
Olha lá, Lotário.
Vens comigo, Hiram?


O carro seguia na direção do Parque de Exposições. O vento me fez sentir melhor, estava precisando de ar.
Se ele te incomoda tanto, por que não resolves isso de uma vez?
Resolver o quê?
Essa história com o tal Ado da Noca.
Não há o que resolver com ele.
Então o que há?
Lotário afundou o pé no acelerador.
Eu quero rasgar a madrugada.
Entramos numa estrada vicinal, a poucos quilômetros de Tuparendi. Não havia iluminações, mas percebia o vulto da plantação de trigo.
Isso é trigo, não é?
É.
Lotário tirou do bolso um cigarro, acendeu-o e deu uma longa tragada, de olhos fechados.
Queres?
Não.
Espero que não te importes.
Não. Eu não me importo.


Frederico, disse Lotário, quando criança, costumava quebrar as vidraças da Igreja de Nossa Senhora das Dores pelo simples prazer de ouvir seu nome ecoando pelas ruas na voz do padre Luciano. Ele e Paula cresceram juntos e, algumas vezes, fora ela a incentivar o guri a atirar pedras e quebrar vidraças pra espantar o tédio das tardes quentes de Porto Lucena. Foram juntos ao primeiro baile de suas vidas, e foi nessa noite que Paula sentiu pela primeira vez os lábios de um homem sobre os seus e uma língua insinuando-se em sua boca. Havia uma amiga, Horacilda, a quem contava seus segredos. Horacilda, fosse viva, diria que sua amiga, desde que se lembrava, falava de Frederico com um entusiasmo apaixonado, cega aos defeitos do rapaz. Não percebia que o que lhe interessava, ao leva-la aos bailes, era que os amigos o vissem esfregando-se a uma mulher. Horacilda, mais velha, avisara. Paula ignorou, afirmando que o sentimento era recíproco, esquecida de que o ser humano é mestre na arte da dissimulação. E foi na noite de São João, durante o baile no Salão Paroquial da Igreja de Nossa Senhora das Dores, que Paula e Frederico saíram de mãos dadas na direção do porto, onde trafegavam livremente os chibeiros, entre os agentes da alfândega e as prostitutas da casa de Consuelo, ex-dançarina de um cabaré em Posadas. Paula sentia arder a mão que segurava a mão de Frederico, sentia o coração a sair pela boca, a respiração difícil e um fogo estranho a queimava inteira. Os olhos de Frederico buscavam um refúgio próximo à barranca do rio, onde não fossem importunados pelos bêbados que eram expulsos da casa de Consuelo ou pelos agentes da alfândega que faziam as vezes de reguladores da ordem. Paula perguntou timidamente pra onde estavam indo. Sabia o que estava por acontecer, ainda que esperasse não ser verdade: não queria dessa maneira, ouvindo os apitos dos guardas e os gritos vindos da casa de Consuelo. Imaginara que seria noutro lugar, que os sons que ouviria seriam outros, talvez apenas o silêncio quebrado pela respiração de Frederico e pela sua, pois que sabia de certos detalhes adiantados por Horacilda. E foi nesse momento que sentiu medo e quis voltar, mas seu gesto foi interrompido por uma pressão maior sobre sua mão, um leve empurrão de Frederico em suas costas, que pressentiu a possibilidade dela escapar. Sabia que não haveria oportunidade melhor, porque todos os amigos e conhecidos estavam no baile, todos os pais estavam no baile, somente os loucos, os apaixonados e os que ardiam de desejo e curiosidade arriscavam aproximar-se do porto àquela hora. Mas estes estavam ocupados consigo mesmos, não teriam, certamente, tempo ou disposição pra estragar seu propósito. Apesar de um inegável egoísmo, Frederico queria que Paula desejasse, como ele, meter-se noite adentro pra descobrirem juntos o que não conheciam; que ela sentisse prazer em arriscar dessa maneira tanto sua vida quanto sua reputação, ainda que nesse momento as duas coisas se confundissem e ela não soubesse o que realmente estava em jogo. Paula ouviu um grito e um tiro vindos de algum lugar, e tomou isso como um aviso. E foi no exato instante em que sentiu o homem, o primeiro, acomodando-se dentro dela que soube que não poderia continuar em Porto Lucena, que deveria ir embora e tentar esquecer. Foi quando Frederico contraiu-se e afundou em seu corpo, derramando-se, que descobriu como os homens eram egoístas e mesquinhos, e entendeu a expressão no rosto de sua mãe quando levantava no meio da noite, a expressão de sacrifício e nojo com que apanhava a bacia de alumínio atrás da porta da cozinha e ia até o poço, no pátio, e voltava e se agachava pra lavar-se e despojar-se do que parecia ser a pior das sujeiras, a coisa mais nojenta que existia no mundo Eu adivinhava no ar o cheiro da desgraça, seus olhos diziam. Contudo, jamais pensei que fosse capaz de tamanha maldade. Quando contaram como encontraram o Castelhano, senti em mim as dores. Eu também sangrei, deitada naquele catre em casa de dona Bita. A bacia que usou estava amassada, procurei não pensar, olhei as tábuas do teto, contei as manchinhas pretas deixadas pelas moscas, contei os pregos das paredes e prestei atenção aos sons da rua. Crianças jogando bola, podia ouvir os gritos dos meninos, pensava no meu filho desmanchando-se nas mãos da velha. Era o preço, era a cobrança, eu dizia pra Flora.


Há muita gente querendo ver minha carcaça estirada numa sarjeta, mas não é bem assim, é preciso ser melhor do que eu. O Ado da Noca é um deles. E pra falar a verdade não sei dizer como tudo começou, se teve um dia em que olhei atravessado pra ele ou ele pra mim. É por isso que não faço questão de desmentir o que falam. Vou embora. E morrerei numa cidadezinha de casas antigas. Estarei saindo dum puteiro, bêbado, um cachorro latindo perto, e verei saindo das sombras um vulto empunhando a lâmina, e eu verei o brilho da lâmina. A segunda cutilada doerá mais, mas terei tempo pra dizer alguma coisa. Quero ser enterrado envolto em lençol de linho branco. Comprarei o linho antes de sair daqui, e quem estiver comigo saberá o que fazer.
E a Dionéia? Vai contigo?
Não. Ela não estará comigo nessa cidadezinha de paralelepípedos regulares onde encontrarei aquele que dará termo à minha vida. Talvez isso nem aconteça, é apenas um sonho. Talvez acabe morto numa briga num desses lugares que freqüento, eles estão por aí, esperando. Como Dante e seus amigos esperaram pelo Castelhano naquela noite. Tu podes não saber, mas numa briga de galos é o gosto do sangue, o prazer com o cheiro do sangue que os atiça. E os galos que são galos, meu amigo, nunca chegam ao quarto banho E então pude ver o rosto do Pai, pareceu que muitos anos haviam passado, a pele estava enrugada, o bigode completamente branco. Dante andava de um lado pra outro, Laura escondida entre as pernas do Pai, chorando. O único gesto que fazia era passar a mão sobre os cabelos de Laura e apertá-la de encontro ao corpo pra protege-la de Dante. Meu irmão abriu o armário e apanhou a arma. Não faça isso, não vai resolver nada. Ele abriu pra ela, abriu a porta e saiu. Corri tentando alcançá-lo, havia um carro esperando por ele, ouvi os gritos de Laura atrás de mim. Três amigos de confiança, era preciso cercar-se de gente de confiança. Chama o Pai, chama o Pai, mas eu sabia que o Pai não faria nada. Então pensei na Mãe e dei graças a Deus por ela estar morta. Admiro uma amizade como a deles, somente um grande amigo é capaz de acompanhar numa empreitada dessas, sem pensar nas conseqüências.
Mas
Nunca tive um amigo assim, acho que jamais terei, sei que é pedir demais. Mas se fosse possível, pediria que me acompanhasse e rasgasse comigo a madrugada.
Tu falas como o Pai, pedindo que fosse amigo do Dante, esquecendo o quanto era difícil conviver com ele, com aquela mania de
Armas? Como esta?
Guarda isso.
Não tenha medo, sou cuidadoso.
Amigos, amigos... É como na história que o Villiger contou, a história do dois meninos dois amigos.


Havia um rio barrento que corria por detrás da casa, serpenteando entre a plantação, e dois meninos, um de nove outro de doze anos, que iam todas as manhãs brincar nas águas que chamavam de Nosso Mar. E havia, também, a casa, o chiqueiro e outras coisas, mas isso pouco os interessava.
Miro, o mais velho, vinha todas as manhãs montado no cavalo que ganhara do pai. Ao ouvir o trote, o outro, o menor, saía correndo encontrar o amigo. Iam, em seguida, pro rio, e só voltavam quando a mãe de Carlo chamava pro almoço. Tinham depois a tarde toda pra correr, mas às vezes não corriam. Ficavam sentados sob os galhos de uma árvore perto do rio. Pouco falavam, porque não havia necessidade. Bastava um olhar, um aceno, entendiam-se. Chegavam a pensar que liam um o pensamento do outro.
Carlo, o mais novo, gostava de bolitas. Tinha uma pequena coleção que guardava numa lata, escondida embaixo da cama, e somente a Miro era permitido abri-la. Quando brincavam de pirata, ladrão de tesouros ou qualquer coisa em que fosse necessário algo de valor pro faz-de-conta, a relíquia era a lata de bolitas de Carlo. E quando acompanhava o pai às compras na cidade, Miro procurava em todo lugar alguma que fosse diferente. Era difícil encontrar bolitas coloridas. Das outras, escuras como fundo de garrafa, havia aos montes em toda parte. Dessas não queria, eram comuns e sem graça. Contudo, algumas vezes fazia surpresa ao amigo com uma que trazia nova combinação de cores. Carlo ficava radiante quando Miro lhe estendia a mão depois de desmontar do cavalo, e dizia Isto é pra ti. Pra ele, Carlo, era uma prova a mais da estima do outro, desnecessária, mas que o deixava contente.
Ouvi uma história outro dia, disse Miro sentando na barranca do rio, muito bonita. Contaram de um lugar onde as bolitas são todas diferentes umas das outras. Mas é muito difícil encontrar esse lugar. É preciso antes se transformar numa borboleta. Elas, as borboletas, podem então pegar as bolitas que são pequeninas e colocá-las entre as asas, e sair voando. Dizem que levam as bolitinhas pras pessoas que amavam quando eram humanas.
Carlo permaneceu quieto.
Isso é história inventada, conto de fada.
Será?
Calaram-se. Miro mergulhou os olhos nas águas do rio, pensativo e imóvel.
Vamos nadar um pouco, convidou Carlo.
É tarde. Vou pra casa.
Montou no cavalo e foi embora. Carlo quis gritar um Até amanhã!, mas não houve tempo. Miro desapareceu entre as árvores do matinho que antecedia a estrada.
Não apareceu dois dias.
No terceiro dia, a mãe de Carlo perguntou o que acontecera com Miro que não dava as caras.
Brigaram?
Não, mãe, mas acho que ele não vem mais, disse Carlo, escondendo dentro da lata uma minúscula bolita multicolorida, antes de sair na direção do rio barrento que corria por detrás da casa.


Lotário dirigia pela mesma estrada que havíamos antes percorrido e eu não sabia se eram quatro ou cinco horas da manhã. À medida que o carro avançava e podia enxergar as luzes da cidade, meu coração batia mais forte. Fechei os olhos, mas continuei vendo Laura e via também o castelhano como imaginava que fosse porque sabia dele apenas pelas descrições de Laura, sentia o cheiro que a enlouquecia, via-o saindo de algum puteiro na Vila Planalto, talvez um pouco tonto pelo que bebera na companhia de alguma mulher, pensando que era hora de voltar e rever o filho, beijar a mulher que ficara esperando a noite inteira, quem sabe sentada na cozinha tomando café sem açúcar pra espantar o sono. Quem sabe tivesse passado a mão pelo cabelo e tossido uma ou duas vezes antes de encarar a rua; talvez pros primeiros passos tivesse buscado apoio em algum muro, ou talvez pensasse em esperar a tontura passar e um amigo que o vira através da janela da sala onde esperava sua vez abrisse a porta pra perguntar se não queria que o acompanhasse. Então, antes mesmo de chegar à esquina, os faróis iluminando a rua e ele parado, esperando pra caminhar até a outra calçada. Os dois que desciam do carro e o empurravam pra dentro, abaixando sua cabeça pra que não dificultasse e pudessem sair dali antes que alguém os visse. E Dante, dentro do carro, segurando a arma e apontando o cano pra sua testa Seu filho da puta, vou te mostrar o que acontece com quem se mete com a minha irmã. Tá vendo isso aqui? Tem chumbo pra ti, pra acabar com tua raça, pra não haver mais sujeitos da tua laia andando por aí pra desgraçar a vida das filhas alheias, esquecendo-se que ele havia feito a mesma coisa e que o Pai também havia feito a mesma coisa, mas agora era diferente, era sangue do seu sangue, e a dor que outros sentiram era agora sua e o obrigava a agir como acreditava que fosse correto, como o Pai tantas vezes dissera que era correto porque é com sangue que se responde a um insulto. Via o Castelhano jogado pra fora do carro, os quatro girando em torno dele, caído, esbofeteado, machucado, pedindo que não o matassem, mas eles divertiam-se como crianças que tivessem um animal pra dissecar, esquartejar Cachorro filho da puta agora vais ver com quantos paus de faz uma canoa lembrando que em casa a mulher estaria esperando e o filho acordaria sem saber que o pai estivera nas mãos dos quatro amigos Pelo amor de Deus Dante, tenho filho pra criar, pelo amor de Deus não me mata! Agora te lembras do teu filho, cachorro, mas agora não tem volta e ecoava em mim o tiro que não seria ouvido por ninguém. Como cães farejando, arrancaram a calça, a cueca. O punhal afiado foi conduzido com precisão Nem um cirurgião teria feito melhor e a gargalhada depois de terem colocado o pênis do Castelhano sobre seu peito, antegozando o espanto que isso causaria.
Via, ainda, Laura voltando da casa da parteira, pálida e o Pai perguntando como se sentia. Ela, que mal conseguia manter-se em pé, dizendo que estava bem, mas a mulher recomendara que ficasse deitada um ou dois dias, que procurasse não fazer esforços. Tudo vai passar, filha, vai passar. O sorriso, o último que vi em seu rosto, como se dissesse que agora não adiantavam palavras ou gestos, chegavam com atraso, o tempo não dava voltas. Via o Pai me chamando na cozinha pra contar como encontraram o Castelhano, dizendo que não sabia onde Dante estava, desaparecido desde que saíra na companhia dos amigos Esse louco não tem consciência do que fez, mesmo depois de eu ter avisado. E foi somente quando Lotário parou o carro, dois quarteirões antes do bar, que as imagens desapareceram. Perguntei o que queria fazer, mas não ouvi o que disse. Desci do carro e abri a braguilha pra mijar.
Agora sim. Agora estou pronto. Com um gesto o tambor do revólver saltou e Lotário mostrou a bala que havia colocado. Estas, disse, colocando em minhas mãos as outras cinco, estas são tuas bolitas.
Minhas bolitas... eu disse e o vi afastando-se do carro pra ficar sob a luz do poste. Minhas bolitas, repeti, e ele fez um gesto me chamando, esperou que o alcançasse e então colocou a mão sobre o meu ombro.
Caminhamos em silêncio até o Casa Nossa. Antes de entrarmos, olhei o relógio e vi que faltavam vinte minutos pra seis e não imaginei que logo estaria correndo na direção da rodoviária pouco depois de ter visto Lotário caminhar resoluto até a mesa onde estavam Ado da Noca, Dionéia e os outros e vê-la cair, esbarrando na mesa, derrubando garrafas e copos depois do soco que explodiu no seu rosto.
Estava ao lado de Max quando vi Lotário apanhar um dos cacos e chamar Ado da Noca.
Vem, agora é comigo!
Beatriz agarrou-o pelo braço e tentou levá-lo pra fora, mas Lotário gritou:
Isso é assunto meu.
É assunto meu também! Temos contas a acertar, esse sujeito e eu, disse Dante a Lotário.
Em seguida, os três amigos de Dante aproximaram-se. Os dois grupos estavam separados pela mesa derrubada por um pontapé de Lotário.
Não, Dante, ele é meu.
Deixa, então, que a gente segura os outros, disse Dante. Tirou da cintura o revólver e apontou pros outros. Ninguém se mete!
Ado da Noca tirou a camisa, enrolou-a no braço e disse que não queria tiros, preferia arma branca, e pediu a um dos amigos um punhal.
Um punhal! disse Lotário. Um punhal, Hiram! Sem paralelepípedos regulares, sem cachorro latindo... e somente eu compreendi o que dizia.
E o vi investir contra o Ado da Noca pouco antes de Dante me arrastar pra fora do bar e dizer que não ficasse ali, porque poderia sobrar pra mim e ele não queria ser portador de má notícia pro Pai e pra Laura.
Vá pra onde quiseres, mas saia daqui!
E tu?
Eu me arranjo.



O primeiro ônibus chegou enquanto descia as escadas. Olhei cada um dos passageiros e depois que o último desceu procurei um banco pra sentar. Não demorou pro outro chegar, e distingui, entre outras, a camisa branca que havia comprado dias antes de viajar, e acredito que tenha corrido pra porta.
Acho que mataram um cara no bar em que estive até há pouco. O meu irmão está lá.
Teu irmão?
Ele mesmo. E tu sabes como ele é, sabes como todos aqui são.
Conta isso direito, não estou entendendo nada.
Não há nada pra contar, nada pra ser explicado, é somente vivendo aqui, nascendo aqui... e mesmo assim é difícil compreender. Por que eles são assim? Mas tu precisas descansar. Vamos pra casa, agora não adianta ficar pensando, esses homens foram ensinados a agir assim, como animais que se esgueiram entre as árvores e preparam o bote antes mesmo que o outro perceba que existe a possibilidade, ainda que remota, de atacar primeiro.
O que é isso que tens nas mãos?
Isto? São minhas bolitas.


Quando afastei a cortina, vi Dante cambaleando pelo pátio, desviando-se dos vasos que Laura havia disposto ao longo da calçada. Ouvi o som dos passos e a voz rouca gritando que os filhos da puta veriam do que era capaz, ainda podia vencer qualquer um, não seria um corno qualquer que o faria envergonhar-se diante dos amigos. Antes de alcançar a escada, diante da porta, derrubou um dos vasos de orquídea e abaixou-se pra apanhar o que sobrara da planta e da terra que se havia espalhado pelo chão.
Laura vai me matar, Laura vai me matar quando vir o que aconteceu com a orquídea que plantou nesse vasinho. Por que não fazem as plantas mais fortes, os homens mais fortes, tudo o que existe mais forte, assim a gente não precisaria se preocupar, nada quebraria, nada, desde que tivesse sido feito mais forte.
Abri a janela e cocei o queixo pra me certificar de que deveria me barbear. Olavo estava de olhos abertos sob o lençol. Fiz uma careta e ele riu, saltou da cama, calçou os chinelos e veio até a janela ainda em tempo de ver Dante juntando a terra, a planta e os cacos. Deixei-o sozinho no quarto e abri a porta pra Dante, antes que Laura tivesse que se levantar.
Aquele filho da puta, disse, e percebi que tinha a camisa manchada também de sangue, embora não pudesse ver ferimento algum, apenas os olhos vermelhos e frios, a baba escorrendo pelo canto da boca.
Passei o café, arrumei a mesa e fui pro banheiro. Olavo estava escovando os dentes quando apanhei o aparelho e a lâmina e passei o creme no rosto. Parou com o vaivém da escova quando ouviu o barulho da lâmina cortando os pêlos, e riu, porque gostava do barulho dos pêlos sendo arrancados, e também porque o fato de me barbear enquanto ele escovava os dentes me trazia ainda mais pra perto dele.

Porto Alegre, setembro/outubro de 2001.

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