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Contos-->EM NOME DO PAI -- 27/06/2002 - 21:57 (Felipe Cerquize) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Quando estava com oito anos, tive a minha primeira oportunidade de fugir de casa. Meus pais tinham ido a uma festa. Meu irmão estava dormindo e a porta estava encostada. Abri a porta e olhei para a rua. Estava um tanto escura. Senti medo, apesar de haver crianças brincando no meio da via pública. Meu Deus! Como me arrependo de não ter saído caminhando em busca de uma aventura fortuita, para, depois, quem sabe, voltar para casa com uma bagagem além da própria educação da minha família. Depois disto, surgiram outras oportunidades, mas eu já não tinha a mesma vontade daquele dia. Acostumei-me a dormir com a porta encostada sem querer abri-la por uma causa irracional. Na verdade, surgiram outros desejos. Já com meus treze anos, por exemplo, tinha tudo para namorar aquela garota linda, que me olhava incessantemente durante o casamento de uma tia. Olhava-me e eu, tímido e pusilânime, fingia que não a via. Pombas! Quantos beijos eu deixei de dar naquela menina! Agora, não adianta mais...

Tornei-me um universitário dedicado. Passei cinco anos estudando fervorosamente para tirar boas notas. CDF mesmo! Alguns amigos meus da faculdade faziam diferente: praticavam esportes todos os dias, participavam de manifestações políticas, usufruíam o diretório acadêmico e organizavam festivais de música. E eu, que inclusive tinha mais de uma centena de músicas compostas, na época, ficava olhando essas pessoas e pensando: “Não. Se eu participar disso, não vou conseguir tirar boas notas e, depois que me graduar, vou ficar desempregado”. Balela! Esses colegas todos se arranjaram, estando ou não dentro da profissão. Eu consegui emprego. Passei trinta e cinco anos trabalhando como engenheiro em diversas fábricas. Acordava sempre antes das cinco horas da manhã e ia à luta. Sentia-me moído, destruído, em choque com as minhas convicções. Mas, a cada nova missão dentro da empresa, eu engolia a seco e a realizava sem nenhum deslize, recebendo, no final do mês, um salário que nunca era demais. De vez em quando, aparecia alguém que contestava e eu achava que o cara era doido, que não dava valor ao dinheiro que recebia. Pô! Será que esses caras eram muito pervertidos ou eu é que tinha comigo uma boa dosagem do maniqueísmo irritante dos filmes de caubói que via quando era jovem? Só sei que, enquanto eu procurava ser íntegro, havia uma legião de desonestos que ocupavam cargos estratégicos nos Três Poderes do meu país. Paguei todos os meus compromissos sem atrasos, inclusive uma previdência privada, durante trinta e dois anos, que, infelizmente, foi à bancarrota quando faltavam apenas três anos para eu me aposentar. E o bloqueio do meu dinheiro por aquele plano econômico maluco? Sim: até presidente da república já fez e faz maluquices e eu continuava achando que aquilo era a exceção. Não obstante, eu ia amarga e corretamente atravessando a minha vida. Não que eu quisesse ser desonesto. Eu queria mesmo era ter arriscado mais um pouco, não necessariamente para ganhar dinheiro. O pior é que eu acho que não tive sequer o reconhecimento devido pelas coisas que efetivamente fiz. Talvez seja algum complexo não-freudiano da minha parte, mas a verdade é que eu sinto que as pessoas me olham pensando que eu não fiz mais do que a minha obrigação. Pode ser que seja isto mesmo! Eu tinha mais era que ter feito muito mais do que a minha própria obrigação! Mas não fiz...

Nos primeiros anos, depois que me aposentei, creio que tive a minha derradeira chance de perversão. Tinha algum dinheiro e todo o tempo do mundo. O que é que eu fiz? Ia todos os dias para a praça próxima de minha casa a fim de encontrar parceiros para jogar um carteado. Veja você: ficar jogando baralho no momento em que mais chances tive de fazer as coisas à minha maneira. Creio que a questão aí era o fôlego que eu já não tinha mais.

Hoje, fico vendo tudo com o olhar vazio e um cigarro de palha na boca. Penso no Prestes, no Chaplin, no Calabar, no meu pai. Olho os meus bisnetos e, com a pouca articulação que ainda tenho nas pernas, dou-lhes chutes no traseiro, quando não vejo meus filhos e netos por perto, para ver se os imbecis aproveitam a porta entreaberta e a rua cheia de pessoas e perigos.

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