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Contos-->A fria mordida da noite viva -- 25/06/2002 - 01:38 (Darques Lunelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A fria mordida
da noite viva

Ouvi o mar na fria mordida da noite viva.
DYLAN THOMAS


Ouvi o mar na fria mordida da noite viva. Ouvi os gonzos e soube que a espera terminara. Há muito os sons da casa haviam cessado, as luzes foram apagadas, as do primeiro andar e, a seguir, depois de um tempo em que coube uma outra lembrança tão viva quanto esta que me aperta o peito, a seguir as luzes do segundo andar foram apagadas. Pensei que algum deles deveria ter perguntado por mim, mas talvez ninguém perguntasse mais, eu era apenas um fantasma a vagar pela propriedade, um hóspede incômodo, mas suportável, apesar de que, estou certo, prefeririam todos me ver pelas costas, e veriam não fosse o termo sacramentado que garante sobre minha cabeça um teto e comida na barriga, além de uma renda na qual jamais toquei, até agora.
À noite este era o meu refúgio, entre as plantas, entre as telas, pincéis, tintas, cheiros vários que formavam na memória da minha alma o cheiro da liberdade. Incontáveis vezes adormeci aqui, sentado às vezes, ou deitado na confortável cama que Gilbert trouxe. Tinha o cuidado de trocar lençóis e fronhas e assear o edredom que me aquecia nas noites mais frias. Quando perguntei por que, disse-me que era sua obrigação, mas que o verdadeiro motivo era proporcionar-me condições de concluir a tela que estava esquecida, por mim, não por ele, ao lado do retrato que pintei de Dora Hatt. Intriga-me, disse ele, que alguém como o senhor tenha dentro de si uma imagem como esta. Amável Gilbert. Algum dia concluirei a tela.
Por hora estou às voltas com estes rostos sem olhos que me assombram os sonhos e saltam, através dos traços nervosos dos meus gestos quase automáticos, para as telas. Nunca consigo completar os quadros porque não sei como pintar os olhos desse homem. Às vezes penso que sonho. Na verdade estou deitado em meu quarto dormindo profundamente e sonho que venho a esta estufa todas as noites para pintar; sonho com Gilbert trocando os lençóis e cobrando a tela inacabada; sonho ouvir os gonzos e os passos na alameda; sonho ouvir o mar e sonho esta dor e estes rostos que são sempre o mesmo rosto sem olhos.
Quando ele entra, sem voltar-me eu pergunto:
- Quem afirmou serem divinas as palavras de um sonho quando são distintas e claras e não se pode ver quem as disse?
- Certamente foi Borges, atribuindo a Moisés bem Maimun esse pensamento curioso. Quem é você? Que lugar é este?
- É minha casa. Moro aqui e você vem todas as noites, há muito tempo.
- Ah sim. Agora lembro. Você é o pintor. Conseguiu concluir algum quadro?
- Nenhum. Talvez hoje, quem sabe.
- Sinto frio.
- Estamos perto do mar.
- Eu moro longe do mar.
- Sempre morei perto do mar.
- Tenho medo.
- Do quê?
- De nunca saber onde estou, como vim parar aqui.
- É sempre assim. Depois você se acostuma.
- Como posso estar aqui, falando essa língua estranha?
- Eu não sei. O que sei talvez não explicasse coisa alguma. Mas isso também não importa. Além do mais, esta é uma entre tantas coisas que esqueço quando venho para cá. Como os traços do rosto desse homem no quadro. Sei que sou capaz de reproduzi-los, mas não consigo.
- Talvez seja suficiente começar a misturar as tintas para a lembrança voltar.
- Você pode estar certo. Vou tentar enquanto conversamos. O que há com você?
- Sinto frio.
- Meu filho deve estar sonhando com trenós e neve novamente.
- Você tem filhos?
- Sim. Acho que tenho dois.
- Por que sou sempre eu quem vem para cá?
- Porque você é livre. Estou preso a este lugar até terminar o que devo fazer.
- Os quadros?
- Talvez.
- Vindo para cá atravessei um bosque. Havia uma placa dizendo: “Vós que entrais, deixai aqui todas as esperanças”.
- Talvez não se referisse a este lugar, mas a outro, além daqui. Não lhe ocorreu que outro viajante possa ter trocado a placa de lugar?
- Mas por que alguém faria isso?
- Diversão.
- Isto é um sonho, não é mesmo?
- Talvez.
- Eu sei que é um sonho, mas sei que você e este lugar são reais. Meu corpo está adormecido em algum lugar longe daqui, noutro país, talvez, mas eu estou aqui falando com você, e isto também é parte da realidade.
- Então eu também sonho.
- Sim.
- Sonho com minha casa, meus filhos, com Gilbert, com os quadros que não consigo terminar, com o mar. Sonho com você, também.
- Sim.
- Ouça, isso é familiar: I have been here before, /but when or how I cannot tell: / I know the grass beyond the door, / the sweet keen smell, / the sighing sound, the lights around the shore...
- Rossetti.
- Você conhece.
- Acho que sim.
- Veja, ele tem olhos verdes.
- Mas não se pode ainda ver com clareza.
- Não, mas agora sei que seus olhos são verdes.
- Não ouço o piano hoje.
- Ela está tristíssima.
- Gostaria de falar com ela.
- Eu não sei como.
- Longe daqui, sempre que ouço alguém tocando piano, tenho vontade de correr e perguntar se é ela, mas nunca lembro seu nome.
- Chama-se Lydia.
- Agora eu sei. Mas quando me for, esquecerei.
- É uma pena.
- Sim, é uma pena.
- Por que você me quer aqui?
- Eu não sei. Preciso de você. Você precisa de mim.
- Eu preciso dela, de Lydia.
- Não. Não ainda. Ou você estaria com ela e não aqui comigo. Se isto é um sonho, sou eu quem sonha com você. E você sonha comigo. Por que você sonha comigo?
- Você me chama para cá. Sinto-me atraído pelo bosque, pela placa, Gilbert me recebe cordialmente dizendo sempre: “Seja bem-vindo senhor Corelli. Estávamos esperando pelo senhor”.
- Ele diz isso?
- Sim. E diz: “O senhor DeCrecenzio o espera no lugar de sempre. Deseja beber algo?” Hoje eu pedi que trouxesse chá.
- Está ali, sobre aquela mesa. Sirva-se.
- Quem é Gilbert?
- Não é quem; é onde.
- Sei. Veja: você pintou um dos olhos.
- Sim. Parece tão familiar, não parece?
- Parece. Talvez você consiga conclui-lo hoje. Ainda é cedo, falta muito tempo até o amanhecer. Mas não tenha pressa. Quanto mais pressa temos, menos eficientes nos tornamos.
- Você é feliz?
- Eu não sei o que é ser feliz.
- Você quer ser feliz?
- E se não houver nada depois disso?
- Então você não quer?
- Eu não sei, é isso o que disse.
- Você espera encontrar alguém.
- Como Lydia.
- Sim, alguém como Lydia.
- Às vezes penso que sim; mas às vezes penso que apenas quero querer, como alguém que ama o amor e não a pessoa que pensa amar.
- Você é confuso.
- Completamente. Mas sobre isso penso que talvez o que eu procuro, ou penso procurar, não está fora de mim. Acontece que eu nunca olhei direito. Então, quando olhar, não vou precisar seguir procurando porque eu sou a resposta. A metade que supostamente sou é o todo que me basta. Então, nesse dia, mergulharei na vida como um deus que desperta.
- E Lydia?
- Lydia é um sonho. É um rosto perfeito, um corpo perfeito, um par de seios perfeitos; é a dona de uma vez perfeita e de um talento musical inigualável. Lydia é tudo com que sonho.
- Ou tudo com que você pensa sonhar.
- Sim. Ela é tudo o que eu quero que seja. Mas nem sequer a vejo em meu sonho. Ouço a melodia com que me encanta e a crio em minha mente, como você e suas tintas. Poderia ser ela diante de mim todas as noites em sua sala de perfeita acústica, vestindo um vaporoso e esvoaçante vestido de fada, a olhar sorrindo para mim enquanto toca, mas cá estou e tenho você diante de mim e este cheiro de mar a minha volta.
- Rebele-se.
- Rebelar-me? Você não entende? Isso é tudo o que posso ter dela: ouvi-la à distância enquanto você pinta.
- Você já tentou sonhar com ela?
- Não.
- Por quê?
- Porque é você quem sonha comigo. Se sonhar com ela e ela acordar, o que faço, para onde vou?
- Você é livre, Corelli. Vá para onde quiser.
- Mas é você que sonha comigo.
- Ou talvez seja você quem sonha comigo...
- E Lydia talvez seja apenas uma menina que sonha ser uma mulher que toca Debussy durante a madrugada. Talvez seja sua filha.
- Talvez eu não tenha filha alguma.
- Talvez não estejamos sonhando.
- Talvez sejamos o sonho de alguém que, desperto, sonha conosco e especula sobre si e outrem através de nós.
- Seu quadro continuará inconcluso.
- Meu quadro, a música, o som do mar... Chegamos antes do início e partiremos antes do fim. Também ele que nos sonha, se nos sonha, sabe disso.
- Gostaria de lembrar desta noite quando acordar.
- Gostaria de não acordar.
- A separação é o destino do viajante. Quando amanhecer eu estarei longe daqui.
- É sempre com adagas nos lábios que você me diz adeus.
Então ele me olhou e o verde dos seus olhos brilhou, a música cessou, a casa pôs-se em movimento para receber a manhã, janelas e porta se abrindo. O quadro estava terminado, mas não lhe prestei atenção porque olhava Corelli entrar na água lentamente, como quem vestisse o mar.

Para Murilo Coradini.
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