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Artigos-->SOBRE A NATUREZA DA LITERATURA E DA ESCRITA -- 26/11/2001 - 16:48 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


SOBRE A NATUREZA DA LITERATURA E DA ESCRITA





Jan Muá

26 de novembro de 2001







Amiga Janete



Li sua carta de 25 de novembro dirigida ao Fernando Tanajura e a outros seus amigos. Você conta sua experiência pessoal de escrita e emite opiniões sobre o que é, na verdade, sua concepção a respeito do ato de escrever.

Você convida os amigos para um debate sobre as idéias ali expostas.

Peço licença para me candidatar ao questionamento de alguns aspectos que seu discurso deixa em aberto para melhor entendermos o ato da escrita e a natureza da Literatura.

Para começar, acho interessante estabelecer alguma ordem e propor uma dose de lógica em minhas palavras para que você e os leitores de Usina me entendam melhor. De início, será de muita utilidade organizar as principais teses defendidas em sua carta ao Tanajura, para melhor debatermos. Escolhi cinco pontos: 1. Ritmo e rima;2. O calor e a emoção da escrita; 3. Escrever a mando do impulso; 4. Inspiração e artesanato; 5. A força do inconsciente a forma final da escrita. Pouco a pouco irei comentando estes cinco pontos fundamentais em sua carta.



1.Ritmo e rima



Janete diz:

“Gostaria de esclarecer que ritmo e rima ou verso livre nos poemas que teço são coisas tão naturais que parecem mais idiotices...”



Naturalmente, Janete, todo o escritor, jovem ou não, mais profissional ou menos profissional, tende a escrever com a máxima naturalidade, ou seja, lançando mão das habilidades e características que o tornam muito pessoal. É por isso que todos, ao escreverem, tentam manter sua personalidade própria. Tentam mostrar naturalidade. Exceção à regra são aqueles que, com uma intenção experimentalista ou intuitos inovadores de vanguarda, saem de “seu natural” para tentarem uma coisa diferente, inédita, avançada...

Você sabe que na poesia da modernidade, a rima não faz parte do código teórico da poesia. A rima é livre na poesia contemporânea. Você pode usar ou não usar. Já o ritmo é um elemento essencial da poesia. É o ritmo que dá literariedade e cadência a um poema. Se você experimenta “naturalidade” na rima e no ritmo ao construir sua poesia, como você mesma diz, eu direi que você e muito feliz. Se assim sente, é porque tem poesia no sangue. Nada disso é idiotice. Isso é um dom.



2. O calor da emoção e a escrita



Em outra parte de sua carta, você escreve:

“Eu escrevo no calor da emoção...não me considero um trabalhador talentoso da palavra exatamente por não quebrar a cabeça para fazer algo belo...”

Eu diria para você que é normal que o poeta, e o escritor em geral, ficcionista ou não, escreva em contacto com a emoção. Todavia, há muitos graus de emoção. Sem nenhuma dúvida. Isso não quer dizer que todos os textos produzidos pelos escritores foram escritos “sob o calor da emoção”...Não, necessariamente. Há sempre algo no início da criação. Sim. E por vezes, algo até bem simples, informe, sem significação aparente. O início representa o arranque para a escrita. É algo assim que move o escritor, um“motivo”, mesmo que indefinido. A tradição, quando queria referir o clima de concentração e aquecimento inicial do poeta disposto a escrever, chamava a tal estado de espírito inspiração. Vamos pensar que “inspiração” no fundo, é uma pressão sensorial, por vezes sanguínea, por vezes volitiva, até inteletiva ou outra...Tudo começa por uma intuição, por uma carga emocional, por exemplo, que pode nascer da observação ou do presenciamento de um fato...Fato que pode ser uma ação humana, um fenômeno da natureza, ou até um desejo íntimo de escrever, uma lembrança, um fio de monólogo interior, tão freqüente em pessoas introspectivas. Tudo isto são “pressões”, são “motivações” para escrever. A verdade é que hoje não estamos mais no tempo em que o poeta aguarda a inspiração dos deuses para escrever seus versos. Em sentido figurado, pode sim, aproveitar certa “carga emocional” de seu deus-namorado, de sua deusa-namorada ou de seus motivos-namorados para escrever belas dicções lírico-poéticas...A simbologia divina pode estender-se ao elemento atuante sobre a emoção para que o escritor ou poeta produza seu escrito... Nossa inspiração, hoje, é simplesmente uma “motivação”, uma “força” que chega ou se instala em nós e que sentimos quando unimos na nossa mente várias idéias ou quando recebermos a “aragem” ou a “brisa” confortante de uma intuição. Mas para que a “inspiração” se materialize, o escritor precisa de se concentrar e de articular suas forças íntimas a fim de que torne mais efetível seu ato de escrita. Quando você diz que escreve no calor da emoção, eu entendo..Mas eu pergunto..E daí? Isso não quer dizer que os que não escrevem diretamente “no calor da emoção” tenham de quebrar a cabeça para produzirem um texto esteticamente belo. Ninguém tem que quebrar a cabeça, querida Janete. Porque a inspiração não compromete a espontaneidade. A pressão ou inspiração são forças de concentração psíquica e não atuam contra a inspiração. Só mais tarde virá a racionalidade em ajuda, para acalmar as coisas e tentar uma via expressiva que proteja o escritor na hora de sua expressão se tornar também comunicação...

Todo o escritor, portanto, tem uma motivação. E as motivações são diferentes. Com mais calor ou com menos calor, cada um parte à procura de sua expressão...uma expressão tão trabalhada que lhe dê o máximo de verdade na sua relação com as coisas e um crédito na sua relação com os leitores.



3. Escrever a mando do impulso



Noutra parte de seu escrito você diz: “Meus contos e crônicas são escritos assim de impulso..”

Como comentário, eu diria para você o seguinte, Janete: Desde que um escritor, ficcionista ou não, se prepara e resolve atender a pressão da escrita para se concentrar e escrever, ele entra na rota do impulso. A psique humana é tão complexa que difícil seria alguém determinar qual é o mecanismo perfeito da escrita... Os surrealistas, sim, falam, de certo automatismo da escrita...Acredito que na maior parte das experiências o escritor não domina, passo a passo, numa primeira fase, todo o andamento da escrita.. Dizem alguns experimentados escritores que o bom é seguir este impulso nas primeiras manifestações. Temos nossa arca do inconsciente onde se armazenam nossas sensações proibidas, marginais, deletadas, libidinais. Sabemos que é lá que residem nossas pulsões primordiais, nossas insatisfações. Fica claro que na genética da escrita todo o escritor, age inicialmente em sua globalidade, até que o ato da escrita se torne algo racional. É por isso que o primeiro momento é o genoma da escrita e também primeiro vagido que anuncia a nova vida que irá se auto-afirmar. Nesse primeiro momento, escrevemos sem censura, com espontaneidade, com sofrimento ou satisfação e naturalidade. Só depois é que aparece a racionalização e é quando voltamos ao tabuleiro da escrita textual e aplicamos ao texto a técnica racional e operacional, analisando a lógica das expressões, a significação e a disposição frasal. Ou seja, nos escritores socializados há um comportamento mais ou menos comum que está representado naquilo que Ciro dos Anjos e outros ficcionistas brasileiros chamaram de “artesanato literário” ou “artesanato da escrita”. Nessa fase você vai pulir, buscar o equilíbrio, a expressão perfeita, a adequação e o ajustamento da palavra.



4. Inspiração e artesanato



Há mais uma passagem importante em sua carta que nos obriga a fazer um outro comentário:

“Sou tão básica que acho um crime eu tentar melhorar por achar que vou artificializar o que a inspiração me deu...”

Se você me der licença, vamos substituir o termo “artificializar o texto” que você empregou por “submeter o texto a um artesanato”. São duas coisas diferentes.

A primeira coisa que eu diria a você é que não é crime você melhorar. Ruim é alguém ficar parado ou regredir. O simples desejo de melhorar o texto, aplicando-lhe o chamado “artesanato da escrita” não será nunca “artificializar”. Tornar o texto um artifício seria ruim,sim. Seria forçá-lo contra a naturalidade. Seria horrível. Mas nós falamos de artesanato, não de artificialização. Tornar o texto artesanal, aplicando-lhe um pulimento, é não só natural, mas necessário. Eu acredito que nem você nem ninguém vai admitir que um texto literário seja “artificializado”. Mas acredito você goste de um texto revisto, pulido, expressivo, “artesanado”, mas não “artificializado”.

Neste sentido, eu lhe diria que todos os bons escritores brasileiros e não brasileiros admitem que o texto deve sofrer uma revisão artesanal. Aliás, em todas as artes, incluindo a arte literária, o artesanato é necessário. O escultor, o pintor, o designer, submete sua obra a um artesanato, a uma marcenagem ou pulimento final.

Se você me permite um aparte, eu diria que isso é uma coisa parecida com os vários estágios de evolução humana. Sem negarmos os direitos da natureza e a espontaneidade do ser humano, as civilizações vieram se impor aperfeiçoando a natureza primitiva e hoje há um pacto em que pela educação o homem pode ser levado e elevado a um status cultural e civilizacional que lhe dá algumas vantagens de saúde, de vida social, de ciência e de cultura. O artesanato do texto compara-se a este estado civilizacional. Você o faz não para matar a espontaneidade, o estado natural, mas para aperfeiçoar as tendências e as forças latentes que o próprio homem tem em seu ser...

Entretanto, as observações da Janete nos convidam a colocar, de um lado, a parte emocional e, da outra, a parte racional do discurso ou do texto. Concordando, eu diria que há, certamente, duas forças interventoras na construção discursiva. O escritor começa construindo a parte espontânea, emocional, que brota do inconsciente. Esse estágio mostra uma forma ainda pouco definida. São balbucios, sinais. Mas vem depois, na maior parte das vezes, a parte racional que cuida da expressão correta, adequada, revisada, do artesanato, enfim, do texto literário. É aquela fase ou aquele artesanato de que nenhum grande escritor passado ou presente, velho ou novo, desde que escritor profissional, se livra.

Analisando o quotidiano de nossos escritores maiores, verificamos que quando ele não faz esse trabalho pessoalmente, ele consulta um amigo ou entrega o texto a um redator-revisor de sua inteira confiança ou de seu nível para que sobre ele exerça sua crítica e o coloque em termos de redação final.



5. A força do inconsciente e a forma final da escrita



Há ainda, Janete, um último ponto que eu gostaria de comentar. É quando você diz:

“...Eu escrevo o que sinto, a forma que surge é a que já ficou formatado no meu inconsciente, o que vem à tona quase que sem minha permissão...”



Para discutir este assunto, voltamos a nos encontrar com algumas idéias que já expusemos. Mas a idéia fundamental que aqui aflora é exatamente a da relação entre a força do inconsciente e a expressão final da escrita. A sua carta dá valor à sensibilidade e ao inconsciente. Não há dúvida de que tanto a sensibilidade quanto o inconsciente são fundamentais para explicar o ato da escrita. Mas não devemos esquecer ao mesmo tempo que a coisa é muito mais complexa ainda. Há outras ruas e outras esquinas na travessia.

Em primeiro lugar, você como escritora, para elaborar um texto, faz vários textos. Não é muito importante responder que a maior dos textos em certos escritores saem já quase prontos. São raros e depende muito do gênero. O que é comum é que os escritores, mesmo quando conseguiram um texto realmente limpo na primeira tentativa de redação, se são escritores dotados, autênticos e com profundidade, eles sempre retornarão ao texto. A refundição, a revisão dão ao texto o status de uma metamorfose contínua. Tudo evolui. E um escritor que escreveu aos vinte anos uma obra prima, quando chega aos sessenta e cinco vê com outros olhos essa redação. As formas de escrita e de expressão são variadas como os cérebros que as produzem. Todos trabalhamos com borrões. Todos admitimos etapas. Todos admitimos formas intermediárias. Todos chegamos a um texto final. Embora o final seja sempre relativo... como sabe... Mas são os Mestres como Machado de Assis ou Eça de Queirós, Fernando Pessoa ou Guimarães Rosa que mostram como é a qualidade do parto da escrita. Eles também selecionaram as imagens e os dados de sua sensibilidade, também eles dependeram e valorizaram as vozes de seu inconsciente. Apesar de tudo aplicaram às primeiras formas de escrita um artesanato técnico-literário. Eles não acharam que o inconsciente já lhes entregava formatadas as formas, não. Eles admitiam que o inconsciente é uma bela sentinela de fundo que os avisava e lhes entregava “sinais” úteis para a escrita. E eles, racionalizando, aproveitaram para modelar personagens e ajeitá-los em forma de gente. A escrita tem o percurso de um projeto. O projeto se organiza a partir de uma intuição ou de um motivo. Depois se racionaliza. E quando racionalizado, se executa em etapas, ganhando formas...A escrita não é muito diferente. Também ela é um projeto que pode ser executado...





Jan Muá





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