CULTURA POPULAR X CULTURA ERUDITA
Autor: José Virgolino de Alencar
A consagrada e disseminada dicotomia que divide cultura em popular e erudita é um equívoco cometido pelos próprios operadores dos vários extratos culturais. Na verdade, os dois segmentos, popular e erudito, seguem juntos, sem hierarquia de qualidade de um sobre o outro. Aliás, ouso dizer que, na essência, não há separação entre popular e erudito. As pessoas é que vêem ou pensam ver duas formas distintas de cultura e não enxergam o entrelaçamento da criação artística que vem de uma raiz popular com a obra erudita, vista como uma árvore florida. Só que essa árvore frondosa é, sim, resultado da raiz que germinou e floriu.
Segundo o Dicionário Aurélio, erudição é “instrução vasta e variada, adquirida sobretudo pela leitura”. Vejam que erudição não é sofisticação, não é o sangue azul da cultura. Do Aurélio se conclui que erudição é volume de conhecimento. Assim, erudito é quem tem vasta e variada instrução captada na leitura, na acurada e ampla observação do conhecimento humano, na visão inteligente das coisas da vida.
Por esse prisma, quem constrói uma obra artística diversificada, eclética, vasta, fruto da leitura e de estudo das manifestações do povo, é popular e é erudito. No fundo, o que existe mesmo é gente culta e gente esnobe. De gente culta, a criação. De gente esnobe, sai malcriação. Gente culta estabelece preceitos. Gente esnobe destila preconceitos.
Tudo isso que falei acima vem a propósito da indiferença e da discriminação que sofrem grandes nomes da cultura dita popular e que são indiscutivelmente cultos e com extensa e variada obra que pode ser inserida no contexto da cultura dita erudita.
São muitos os nomes que poderia citar e sobre eles falar, mas o espaço aqui é limitado. Cito entre os que tenho escutado e lido, o nome de DAUDETEH Bandeira, cuja obra toca meu gosto pessoal, gosto razoavelmente diversificado, mas não esnobe.
Falarei do mestre, poeta, compositor, escritor e advogado, com volumosa obra e obra de qualidade, aquém DEUS deu o dom e nós devemos dar-lhe a cátedra, como professor que é. DAUDETEH Bandeira, nascido Manuel Bandeira de Caldas, vem de uma linhagem sertaneja de artistas, criadores natos.
DEUS colocou no seu gene esse incrível dom de construir um poema de improviso com a perfeição do ritmo, da rima e da métrica, além do conteúdo de qualidade. É poema, poesia pura, arte que encanta e emociona o leitor ou ouvinte. DAUDETEH tem um acervo de criação cultural digno de merecer troféu, comenda, láurea e até de ter portas de academias abertas para ele entrar.
Sem falar na imensa quantidade de versos cantados de improviso e não registrados, DAUDETEH conta com criações gravadas em papel e em disco suficientes para formar ou robustecer uma biblioteca. Desses milhares de criações, destacarei umas poucas, contornando a enorme dificuldade de selecionar o que é melhor, porque só tem coisa boa. Transcrevo, a seguir, partes de poemas catados aleatoriamente:
“BRASIL VIRGEM”
Pedaço de terra fértil
na última curva do globo,
habitada pelo índio,
pelo tigre e pelo lobo,
por letárgicos peçonhentos,
que faziam sonolentos,
suas costumeiras rondas
à margem dos grandes rios,
que exalavam nos baixios
hálito puro das ondas.
“ARRANHÕES DE SAUDADE”
O luar descamba a serra
e banha a montanha de prata,
o peixe pula no poço
desce a ÁGUA na cascata
e o vento faz um acorde
no realejo da mata.
“O PREÇO DO NOSSO AMOR”
Vou curtir minha saudade
nas brancas noites de lua.
Fazer como o Gaturamo
na alva cascata nua,
vou erguer os meus quiosques
entre os paredões dos bosques
e nunca mais vir à rua.
“CONVERSANDO COM AS ÁGUAS”
Minha esperança se esconde
pois a ÁGUA não responde
as perguntas que lhe fiz,
e ficou mais orgulhosa,
ÁGUA forte ambiciosa
só você é poderosa
só eu que sou infeliz.
“MINHA REDE”
A rede é um objeto
de primeira qualidade.
De se deitar numa rede
todos nós temos vontade,
até um casal segura.
Só que fica uma mistura
que nem feijão com arroz,
mas não há nada incomum,
a rede é feita pra um,
mas quebra o galho pra dois.
“A VERDADE”
Falar a verdade é bom.
Maria, sabendo disto,
passou ilesa com Cristo
pelas tropas de Abadom,
nos é dada como um dom,
pra não cometer-se engano,
benção do Pai soberano,
porque: falar a verdade
é a maior faculdade
que existe no ser humano.
“TROVAS”
Não há dor que doa mais
de que quando uma mulher
não quer o que a gente faz
e nem faz o que a gente quer.
No mundo do Criador
nós somos dois passarinhos,
que se unem no amor,
mas se separam nos ninhos.
“FOME”
Seu doutor, pensando bem
essa tal de dona FOME
é tão amedrontadora,
que faz medo o nome;
magra, alta, feia e rouca
tem uns dois palmos de boca
e meio metro de nariz,
essa figura sinistra
hoje é quem administra
a pobreza do País.
Apesar de horripilante
é a única entidade,
que mais consegue adesões
no seio da humanidade;
é dona da maioria,
favela e periferia
são seus melhores recintos,
e os seus associados
são assalariados
intitulados: FAMINTOS.
DOM DO IMPROVISO:
DAUDETH BANDEIRA tem
O santo dom do improviso,
Para ele bem cantar
Decorar não é preciso,
De sua memória sai
Ditado pelo DEUS pai
O verso puro e conciso.
ACRÓSTICO:
Divinas poesias jorram
Arremessadas em cascata
Uma boa, outra melhor,
De sua inventividade nata;
E na viola seresteira
Tocada bem por Bandeira
Há, sim, um quê de sonata.
Belas canções ele canta,
Alma de inspirado artista,
No regaço de uma donzela
Descansa a mente e a vista,
Esquece o mundo lá fora,
Intempérie ele despista,
Romântico, com a poesia,
Amada e amante conquista.
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