Lembro do tempo quando os filmes de lobisomem me causavam pavor. Às noites de lua cheia esse sentimento aumentava. A casa era de madeira e chão batido, possuía frestas pelas quais eu via a lua, imensa, branca, brilhante. No quintal as folhas de açaizeiros movimentando-se ao vento e o barulho das palmas roçando umas nas outras aumentavam o clima de suspense, como se a qualquer momento um lobisomem fosse derrubar a porta de casa e me devorar!
Pela manhã, aliviado por estar vivo, voltava a alegria peculiar a uma criança de mente criativa. Sabia que logo tomaria o caminho da rua. Meu destino era a vacaria, local amplo, cheio de arbustos e chacos, cujo nome não conseguia entender, porque não existia nenhuma vaca por aquelas bandas. Sendo férias, tempo de empinar papagaios, sabia que iria encontrar os ricos frequentadores do lugar com seus objetos voadores, vermelhos, lindos, flanando no ar. Uma ou outra vez me perguntavam se valia a pena ser um menino de rua. Em parte, respondia, sem saber exatamente qual parte era boa e qual a ruim.
Hoje, bem distante daqueles dias, sei que os lobisomens são criaturas inofensivas e que os papagaios se fazem agora com plástico; posso afirmar que a parte boa do fato de eu ser um moleque das ruas é que naquele tempo eu não queria fugir de monstros malvados que comem criancinhas simplesmente porque era medroso.
A razão de eu me sentir tão oprimido pelas fantasias, pelo medo de ser devorado era apenas uma forma inconsciente de aumentar o gozo infantil, a felicidade que não precisava de suportes materiais, computadores nos quartos ou "nikes" nos pés; era uma alegria pura pelo fato de me sentir completamente salvo dos perigos, completamente livre dos monstros que perseguem as crianças, pronto a olhar o céu e mirar aqueles objetos vermelhos, seguindo suas rápidas guinadas de um lado para o outro no infinito azul, sentindo-me um deles, querendo ser um deles, que lá de cima tinham o mundo inteiro à vista. Eu queria ser o dono do mundo, e ele já foi meu um dia...
|